Após 21 meses de espera, o inquérito sobre as denúncias de estupro de Mariana Ferrer teve uma sentença: a Justiça catarinense considerou o empresário paulista André Camargo Aranha inocente em decorrência da “ausência de provas contundentes” e do acusado, um homem adulto com mais de 40 anos, não conseguir discernir se Mariana “poderia estar sob efeito de droga ou embriagada”. A sentença causou indignação social e novamente mobilizou o movimento #justiçaporMariFerrer, amplamente divulgado nas redes sociais. O Portal Catarinas conversou, nesta tarde (10), com Isabela Del Monde, advogada e coordenadora do Me Too Brasil, movimento que apoia vítimas de violência sexual, para compreender como apesar das inúmeras provas apresentadas pela influencer digital o réu foi absolvido.
“Pelo que indica a investigação, com base nas provas materiais, exames, perícias e testemunhos, o que poderia ter ocorrido seria a possibilidade daquilo que a lei enquadra como “erro de tipo essencial”, ou seja, o acusado teria se envolvido sim com a vítima, mas sem a intenção ou consciência de que seu ato seria um crime e também não teria como saber, neste caso específico, se ela poderia estar sob efeito de droga ou embriagada, a ponto de não ter discernimento sobre os seus atos. Dessa forma, o MPSC se manifestou e o Judiciário determinou a absolvição do réu”. Trecho da nota oficial do Ministério Público de Santa Catarina sobre o caso de Mariana Ferrer.
Na entrevista, a advogada foi categórica ao afirmar o caráter seletivo do Ministério Público (MP) e do Judiciário de Santa Catarina, cuja atuação estaria fundamentada no machismo e no racismo que operam na sociedade brasileira. “Essa absolvição por ausência de provas é um deboche”, ressaltou. Isabela Del Monde também recordou o quanto é difícil para uma mulher comprovar que sofreu violência sexual e quando consegue, ainda assim, ela surge como principal culpada da violência que sofreu.
“Você sabe como uma pessoa da favela vai presa por tráfico de drogas, por exemplo? Apenas com o depoimento do policial. Não precisa de vídeo, sem coleta de impressão digital ou qualquer outra prova. Agora, para crimes de violência sexual, assim como os crimes baseados no gênero, é aplicado um rigor probatório que não é aplicado nos outros crimes. E, mais, os crimes envolvendo violência sexual são dos mais difíceis de comprovar. Geralmente, não há testemunha e o ambiente é fechado. Além disso, existem muitos mitos de cunho machista”, explicou.
Apesar dos desfechos negativos, a advogada e ativista destacou a importância das denúncias continuarem e pediu para que as mulheres não desistam.
“É a partir da denúncia que transformações podem ocorrer, é a partir da nossa luta. Da nossa coragem contra o Judiciário, o Ministério Público, o Legislativo”, pontuou.
Confira a entrevista de Isabela Del Monde na íntegra.
Catarinas: A alegação para absolvição é que não houve provas, mas desde o início parecia que as provas nunca eram suficientes, como, por exemplo, houve um exame pericial que confirmou a verossimilhança entre os materiais genéticos confrontados e ainda assim o habeas corpus veio depois. Estamos tentando entender como pode essa alegação de que não houve provas. Como vê isso?
Isabela Del Monde: Me parece que houve aí uma descredibilização da palavra, do depoimento da vítima. Dos elementos comprobatórios que a vítima expôs. Foi alegado estupro de vulnerável. Ou seja, ela estava incapaz de consentir, estava sob efeito de uma droga na bebida dela. O Ministério Público fala que não houve vestígio no exame toxicológico. Entretanto, sabemos que: 1) há uma infinidade de drogas que levam a esse tipo de apagamento/sedação. É fundamental saber qual exame foi feito, qual substância testada, a metodologia do teste. Inclusive, porque tem drogas que a característica é justamente desaparecer rápido do organismo; 2) ainda que não se tenha encontrado vestígios, não se pode descartar outros elementos comprobatórios. Temos um vídeo com o acusado, a confirmação de um quarto (uma instalação para isso, dentro do ambiente), foi encontrado sangue, sêmen, rompimento do hímen, ela era virgem e temos os próprios depoimentos dela. Tem todo um conjunto comprobatório que corrobora com o depoimento da vítima. O Ministério Público, e é importante negritar isso, o Ministério Público pediu absolvição e ele tem a função de acusação. Quem estava acusando pediu absolvição, ignorando todos os demais elementos de prova. A minha análise é de que a gente está diante, mais uma vez, de homens brancos com condições financeiras decidindo sobre a situação. Não dá pra descartar esses elementos de raça, gênero e classe presentes neste caso. O que estamos vendo é o reflexo das nossas estruturas de opressão de gênero. O machismo e o racismo sendo refletidos numa decisão do Judiciário, um espaço composto majoritariamente por homens brancos. Isso é fundamental para a compreensão do tipo de decisão que se tomou no caso da Mariana Ferrer.
O réu se parece com as pessoas que o julgam. O réu lembra, fisicamente e socialmente, os filhos do juiz, por exemplo. E os filhos dos juízes jamais fariam algo assim. Os filhos do juiz, homens brancos e classe alta, não podem ter cometido o crime. Há seletividade do Judiciário que se vê refletido no réu.
Esperamos que a advogada da Mariana leve o caso para o Tribunal de Justiça para que possamos ter desfecho mais condizente com o caso, porque essa absolvição por ausência de provas é um deboche.
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Como você vê a posição do MP catarinense? Que inicialmente foi responsável pela acusação e depois corroborou com a inocência do acusado?
Vamos esclarecer. Não é errado o Ministério Público pedir absolvição. Ele faz parte do sistema público Judiciário brasileiro e tem como princípio ser o guardião da Constituição, dos direitos dos cidadãos. De fato, o Ministério Público tem a função de acusar, mas não havendo as provas o MP, como um protetor dos direitos do cidadão brasileiro, pode pedir absolvição. A questão aqui é: por que ele está pedindo absolvição nesse caso com tantos elementos comprobatórios? Fica clara a seletividade do órgão com essa atuação. Nunca vi nenhum Ministério Público, por exemplo, pedindo a absolvição de um garoto de 19 anos com um baseado de maconha. Nesses casos, ele é um grande traficante de altíssima periculosidade. O Ministério Público é contra o punitivismo do Estado em determinadas situações, com alguns determinados sujeitos e não são os sujeitos pretos e pobres da periferia. Este caso da Mariana Ferrer revela, na verdade, a seletividade do próprio sistema penal em si. Se você é um empresário, branco, rico, com poder de influência, ainda que existam inúmeros elementos probatórios, o Judiciário e o Ministério Público vão conseguir proteger o seu caso. Temos aquela fala do juiz, “Melhor absolver cem culpados do que condenar um inocente”, e eu nunca vi um juiz falando isso para uma decisão que fosse de uma pessoa negra. Nós temos a terceira maior população carcerária do mundo, se o juiz falasse isso pra todos os casos a realidade brasileira seria diferente, certo? A questão é, como já disse, há uma seletividade absurda no sistema penal brasileiro que fica claro no caso da Mariana Ferrer.
O olhar de um promotor, de um juiz, de um policial não vê como bandido pessoas brancas que se parecem seus filhos, seus netos. No Brasil, homem branco não é bandido. É um reflexo claro do patriarcado e do racismo que coloca também as mulheres como seres de segunda categoria de cidadania.
Você pode falar mais sobre esse olhar machista no caso da Mariana…
Sim. Havia sobre ela esse olhar. Inclusive, foi mobilizado contra ela. A Mariana era promoter. Houve comentários insinuando que ela usava roupa curta, tinha fotos sensuais no instagram. O tipo de pensamento que tira a credibilidade da vítima no âmbito social e no próprio Judiciário. E esse tipo de pensamento do senso comum só é mobilizado para o que interessa. A Mariana era uma menina de 21 anos virgem, quando as violências ocorreram. Ela prezava por esse valor que é algo raro atualmente. Ela iria querer perder a virgindade dela bêbada com um cara que ela nunca tinha visto? Para isso, o senso comum não olha. Não interessa. Vou ressaltar de novo: nosso Judiciário é parecido fisicamente e socialmente, com esse réu.
Quando estamos julgando alguém parecido conosco os crimes “desaparecem”. É, por isso, que precisamos de um Judiciário mais diversificado: preto, branco, mulher, hétero, trans… Também, por isso, estimulamos que apesar desse tipo de resultado o silêncio seja quebrado. Precisamos combater essa situação.
Sempre se cobra mais provas em casos de violência sexual?
Essa é uma pergunta muito boa. Sim, se cobra. Podemos afirmar isso. Você sabe como uma pessoa da favela vai presa por tráfico de drogas, por exemplo? Apenas com o depoimento do policial. Não precisa de vídeo, sem coleta de impressão digital ou qualquer outra prova. Agora, crimes de violência sexual, assim como os crimes baseados no gênero, é aplicado um rigor probatório que não é aplicado nos outros crimes.
E, mais, os crimes envolvendo violência sexual são uns dos mais difíceis de comprovar. Geralmente, não há testemunha e o ambiente é fechado. Além disso, existem muitos mitos de cunho machista. As pessoas inventam que a mulher quer aparecer, quer tomar vantagem, tirar dinheiro dos homens. É um absurdo.
Nenhuma vítima consegue vantagem financeira direta. Também não há na história da humanidade um caso de uma mulher que teve uma ascensão de carreira ou benefício, porque denunciou um estupro. Pelo contrário, a história mostra que as mulheres que denunciam perdem emprego, rede de apoio, relacionamentos, muitas se colocam em risco.
O caso fortalece a cultura de estupro e pode enfraquecer as denúncias?
Sim, esse caso tem uma mensagem grotesca para todas as vítimas de violência sexual sobre a impunidade. E devemos lembrar que a maioria dos casos de estupro são contra mulheres e crianças, como a menina de 10 anos estuprada desde os 6.
Esse caso tem uma mensagem grotesca para mulheres e crianças de que a vida delas não importa. A Mariana é uma vítima que tem todos os elementos a seu favor, tem inúmeros elementos comprobatórios registrados até mesmo o material genético achado é o mesmo do acusado e ainda assim ele foi absolvido. Não temos outra explicação além do caráter patriarcal e machista do Judiciário.
E, infelizmente, a Mariana é um caso que ganhou visibilidade porque ela foi incansável. A luta dela é incrível. Mas temos milhares de casos absurdos como o dela. No Rio Grande do Sul, em 2018 ou 2019, um rapaz estuprou uma mulher que estava embriagada. Ele foi condenado em primeira instância e depois absolvido. O desembargador alegou que se a vítima bebeu e ficou inconsciente, ela se colocou nesta situação de vulnerabilidade. Nós, mulheres, temos nossos direitos tolhidos. No final, se ocorre algo conosco, a culpa ainda é nossa. Os processos de investigação, os processos finais são conduzidos de forma enviesada. É o caso da Mariana: tem sangue, tem vídeo, tem DNA, tem hímen rompido, ainda assim não houve crime.
Algo mais que seria importante ser dito?
Sim, mesmo diante de uma decisão como essa é importante dizer que as vítimas não se desestimulem, não desistam. Sabemos que é difícil e nunca dizemos para uma vítima que ela é obrigada a denunciar. A denúncia é um direito e não um dever. Mas é a partir da denúncia que transformações podem ocorrer, é a partir da nossa luta. Da nossa coragem contra o Judiciário, o Ministério Público, o Legislativo. Infelizmente, todas as mulheres foram ou serão vítimas, precisamos ter coragem de mudar isso. Hoje, no Me Too Brasil, somos mais de 3500 voluntárias agindo por essa mudança. Estamos lá para acolher a vítima, orientar, ofertar apoio psicológico e assistência social. Caso uma mulher precise de ajuda é só entrar no www.metoobrasil.org.br . Dentro do nosso site vai ter o formulário “quero ajudar” para quem quer virar voluntária, “quero desabafar”, “quero ajuda” e “quero denunciar”. Nessa opção, contatamos depois a vítima (seja mulher ou homem, pois atendemos homens vítimas de violência sexual também). A equipe vai atender o caso dela. Contamos com médica, advogada, assistente social e psicóloga. E cada vítima é atendida através de um olhar individualizado. Vamos escutá-la, apoiá-la e se ela decidir denunciar vamos colaborar nos encaminhamentos para isso.