A discussão acerca do aborto está envolta em uma atmosfera de fervor e controvérsia. O assunto ressoa como um rugido de dentes em meio ao cenário político, onde predominam os conservadores fundamentalistas, em sua maioria homens. Tudo isso ocorre em virtude da iminente votação da ADPF 442 no Supremo Tribunal Federal, uma iniciativa que almeja libertar a decisão sobre o aborto voluntário até a 12ª semana de gestação.

A  ministra Rosa Weber proferiu seu voto, em 22 de setembro, posicionando-se a favor da descriminalização do aborto pela igualdade de direitos e pelo fim da discriminação motivada pelo gênero. Um voto histórico. Às vésperas de se aposentar, Weber defendeu que a liberdade reprodutiva das mulheres deve ser tratada como uma questão de saúde pública e de direitos humanos, e não como questão criminal. Um voto pela dignidade e autodeterminação das pessoas que podem gestar. O que virá dos próximos votantes, não sabemos, mas não será fácil na arena das disputas. 

Ainda nos recantos onde a lei concede permissões, o cenário do aborto no Brasil se desenha com tintas sombrias. Mesmo diante das raras exceções que permitem a interrupção da gravidez (como nos casos de estupro, risco à vida da gestante, conforme o Código Penal, ou de anencefalia fetal, segundo decisão da ADPF 54), testemunhamos tragédias que lançam sombras sobre a vida das meninas e mulheres, como o trágico episódio da tortura a uma criança em Santa Catarina.

As forças medievais no poder, com a notória predominância masculina, desferem acalorados discursos contra aqueles que buscam amparo na lei para interromper uma gravidez. Estes mesmos indivíduos se autodenominam guardiões da moral e dos valores, uma ironia, pois muitos deles parecem mais interessados em manter seus cargos públicos do que genuinamente preocupados com o destino dos corpos e vidas das pessoas que sofreram estupro, violência, e padecem sob o peso dessas experiências avassaladoras. Quem poderia acreditar que a sua preocupação transcende o mero jogo político?

As estatísticas mostram o horror destas violências: a cada dois dias uma mulher morre por consequência de um aborto ilegal no Brasil, sendo a quinta causa de mortalidade materna. Uma pesquisa revelou que crenças pessoais impactam nas decisões de juízes onde prevalecem valores morais ditados por regras do sistema racista patriarcal, muitas vezes à revelia da Lei. 

“É como se a mulher não fosse vista como sujeito, mas como um objeto ou como estereótipo de uma mulher má, insensível, de um monstro, de uma homicida. Muitas vezes encontramos esses deslocamentos dos tipos penais, principalmente no Ministério Público”, contou a advogada e professora de Direito Público, Fabiana Cristina Severi. 

Mas, de onde vem os valores morais? Na obra Eunucos pelo reino de Deus: mulheres, sexualidade e a Igreja Católica, a teóloga alemã Uta Ranque-Heinemann analisa documentos desde o paganismo até a modernidade para explicar como os teólogos católicos moldaram a ideia de submissão das mulheres, destinando-lhes um papel de martírio nas mentes e corpos, como se fossem pedaços de carne para servir aos homens e a um deus. Por esse ideário, teríamos cérebros atrofiados que nos fazem inferiores, por isso dadas às luxúrias e pecadoras pelo simples fato de existirmos.

A teóloga explica, detalhadamente, como a Igreja  discorreu sobre a sexualidade, o prazer, a contracepção, o aborto e o infanticídio, o onanismo (masturbação), a virgindade, o pecado, a homossexualidade, o casamento, utilizando esses discursos como ferramenta de policiamento sobre o corpo e normalização de condutas sobre a sexualidade, construindo pensamentos homofóbicos e misóginos. Excluindo quem não se encaixa nos padrões ou parâmetros por ela delimitados. 

Heinemann foi a primeira mulher a obter  doutorado em Teologia Católica, em 1954. Em 1969 tornou-se a primeira professora universitária de Teologia Católica do mundo, vindo a ganhar notoriedade na década de 1970 como teóloga e crítica da Igreja. Também desenvolveu projetos de ajuda humanitária e no campo da política de desenvolvimento. 

Como disse Rose Marie Muraro na apresentação da obra, “pela primeira vez em dois mil anos de Igreja Católica, uma mulher ousa dar nome ao ‘problema que não tem nome’: a sexualidade. Este livro é uma contribuição incalculável à história da sexualidade humana”. 

A teóloga foi excomungada sendo a censura mais grave imposta para algum membro da Igreja, excluindo-a da comunhão dos fiéis, ou seja, do vínculo jurídico-social com a Igreja. 

Ao analisar a obra, percebemos como o Cristianismo absorveu os aspectos mais negativos das filosofias e dos tratados eclesiásticos relacionados aos corpos e impulsos das mulheres, transformando-os em uma doutrina dogmática. Essa doutrina induz as pessoas a acreditarem na impureza das mulheres, considerando-as dignas de condenação, sujeitas ao inferno e à danação eterna. 

Isso fica claro desde os padres da igreja primitiva até os santos moralistas medievais e os papas mais recentes. As declarações prejudiciais, misóginas e desqualificadoras sobre as mulheres representam uma herança tóxica que continua a nos afetar profundamente. 

Destaco, especialmente, os capítulos intitulados “O século XIII: a idade áurea da Teologia e o apogeu da difamação misógina” e “Tomás de Aquino: à luz da Igreja”. Nestas seções, a autora habilmente costura os discursos normativos que, ao longo da história, têm sistematicamente demonizado, inferiorizado e culpabilizado as mulheres pelos males do mundo. 

Tomás de Aquino, que posteriormente foi canonizado como santo pela Igreja Católica, deixou um legado literário com mais de 60 obras no século 13. Dentre elas, destaca-se a “Suma Teológica”, uma obra que oferece uma exposição sistemática da teologia em sua totalidade, com foco no controle dos corpos e da sexualidade. 

Essa obra acabou se tornando uma espécie de “bíblia paralela” para as decisões posteriores do Vaticano. No entanto, é importante ressaltar que esse tratado, embora seja considerado influente, está repleto de preconceitos flagrantes, promovendo a eliminação daquelas que não se enquadram em suas normas, sendo as mulheres frequentemente alvos dessas restrições.

Ao longo do texto, encontramos diversas afirmações que ecoam a ideia de que as mulheres são consideradas inferiores desde o momento do nascimento. Essas ideias incluem a crença de que a mulher é, por natureza, um fracasso, que seu sangue menstrual é visto como infeccioso, que é percebida como um ser imperfeito, frequentemente associada a uma menor força mental em comparação aos homens.

Além disso, existe a noção de que a existência da mulher é resultado de um erro ou deslize no processo de nascimento, sendo considerada, em outras palavras, um “homem mal gerado e deficiente”. Essas visões misóginas também sugerem que as mulheres são mais propensas à luxúria e têm maior dificuldade em resistir ao prazer sexual, devido à suposta “menor força mental”. Perspectiva misógina assumida pelo ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, ao se referir, pejorativamente, à própria filha como “fraquejada”.

A autora dedica o capítulo “A exaltada campanha contra a anticoncepção” onde detalha as severas penitências para as práticas contraceptivas e sexuais que não fossem exclusivamente feitas para a procriação. Qualquer prática de sexo por prazer, como uso do coito interrompido, masturbação, posições não aprovadas pela Igreja, era considerada indecorosa e pecaminosa, sendo exigido que se resistisse a essas tentações “mesmo até a morte”. “Melhor seria que vós, esposas, morresseis do que ceder”. 

Além disso, qualquer pessoa que fosse acusada de utilizar feitiçaria ou substâncias esterilizantes enfrentava a pena de morte na fogueira. O texto expõe a intensidade da campanha da Igreja Católica contra práticas contraceptivas e sexuais que não estivessem alinhadas com os princípios religiosos estabelecidos, destacando as punições draconianas associadas a esses atos.

As mulheres que abortavam ou ajudavam outra no abortamento eram, para a Igreja, “bruxas parteiras” e enfrentavam uma sentença de morte implacável. Infelizmente, muitas das corajosas parteiras encontraram seu destino nas chamas vorazes, vítimas da força sombria da Igreja Católica. O Tribunal da Santa Inquisição, uma criação sombria datada de 1233, pelo Papa Gregório, continuou a lançar sua sombra sinistra até o final do século 19. Este tribunal julgava, impunha penas e infligia torturas cruéis, condenando as mulheres à ardência das chamas vivas.

Assim, em nome da vida, a Igreja Católica, envolta em sua fúria bestial, perpetrou o mais atroz ginecocídio da História. Homens que não admitiam a possibilidade de qualquer poder feminino, especialmente aquele que residia na capacidade de dar à luz, conduziram essa caçada desenfreada. A paixão, que deveria ser um fogo ardente no coração humano, era suprimida e extinta pela condenação impiedosa da Igreja. 

De tempos em tempos, a Igreja Católica reúne o alto clero para decidir para deliberar sobre as regras do exercício da sexualidade. Desde Tomás de Aquino, os grandes eventos capitaneados pelo Vaticano têm moldado a forma como os corpos humanos são vistos, objetificados e, muitas vezes, condenados por se entregarem ao ato sexual, rotulado como “antinatural”. Independentemente das circunstâncias, ele sempre foi considerado pecado, seja ele original, mortal ou venial.

Para as mulheres, o próprio fato de terem um corpo era suficiente para que fossem vistas como pecadoras da carne. A elas era atribuída uma série de pecados, tornando-as, por excelência, pecadoras. A prostituição, impureza, idolatria, feitiçaria, ciúmes e discórdias eram apenas algumas das transgressões que lhes eram imputadas, perpetuando a ideia de que seus corpos eram inerentemente impuros e decadentes. 

O ódio ancestral e celibatário em relação às mulheres é uma chaga que atravessa séculos. O absurdo atinge seu ápice quando percebemos que todo esse ódio misógino foi formalizado e perpetuado por homens do alto clero. Homens celibatários, que se aventuravam a descrever com minúcias as complexidades do amor carnal, as posições do prazer, o êxtase do orgasmo e os segredos do coito. Tudo isso sem jamais terem tocado em uma mulher? Celibatários mesmo? 

A História nos revela as amantes secretas de papas e bispos, assim como os atos de amor entre os próprios membros do clero, e até mesmo os pecados da carne entre padres e freiras. Os registros nos contam sobre a prática de abortos clandestinos realizados para preservar a honra das freiras, das amantes e, ironicamente, dos próprios clérigos. Ditar regras, parece, ser uma tarefa historicamente fácil para esses homens.

Sempre que a Igreja pressentiu um avanço em qualquer direitos das mulheres, tratou de reforçar os dogmas sob ameaças do inferno. A pesquisadora Maristela Moreira de Carvalho mostra que, entre as décadas de 1960 e 1980, a Igreja fomentou uma pedagogia voltada ao policiamento, controle e normalização das manifestações do corpo e da sexualidade. 

Deflagradas a partir da publicação, em 1968, da carta encíclica Humanae Vitae, de autoria do papa Paulo VI, sobrevieram as discussões que serviram de matrizes para outros documentos, como a “Declaração sobre alguns pontos de ética sexual” (1976), a exortação apostólica Familiaris Consortio (1982), e a carta encíclica Mulieris Dignitatem (1988). 

Esses discursos se apresentam como estratégias dentro de um campo de debates em um contexto de intensas transformações de costumes, especialmente no que diz respeito às normas de conduta, valores e escolhas individuais no âmbito da sexualidade nas famílias e na sociedade como um todo.

Segundo esses documentos, havia uma preocupação crescente com o que eles chamavam de “critérios morais”, que estavam sendo desafiados por diversos “sinais de degradação” na sociedade. Nesse contexto, tornou-se imperativo estabelecer diretrizes relacionadas à homossexualidade (vista como depravação), masturbação (desordem moral), sexo antes do casamento (inaceitável), castidade/virgindade (com uma cobrança mais enfática nas mulheres), o aumento das taxas de divórcio (pecado imperdoável), o uso de práticas contraceptivas, controle da reprodução e esterilização (pecados passíveis de condenação ao inferno) e, evidentemente, o avanço dos movimentos pelos direitos das mulheres, como o Feminismo. 

No entanto, é importante destacar que questões críticas, como a violência contra as mulheres, o estupro, as mortes decorrentes de abortos clandestinos e o feminicídio, não foram temas frequentemente discutidos em fóruns dominados por homens. 

Vale ressaltar que estes documentos foram concebidos através do Sínodo dos Bispos, todos homens, cujo tema central foi a família, os corpos e a moralidade sexual. Qual era o problema de então? “Através destes documentos, pode ser percebida a preocupação e a aspiração da Igreja Católica em controlar os corpos – principalmente os corpos femininos – inserindo o sexo e as suas manifestações nos espaços delimitados pela sua tradição, fazendo-o “dizer uma verdade”, buscando constituir subjetividades e normalizar as condutas individuais nos mais diferentes aspectos do exercício da sexualidade”, enfatizou Carvalho

Desde então, os chamados “modismos”, que oferecem às mulheres a oportunidade de controlar seus corpos e suas escolhas, são percebidos como uma ameaça carregada de pecado e um perigo para a sociedade.

Assim, tornou-se mais comum a perseguição das “bruxas” contemporâneas: aquelas que optam por não se casar, as feministas, as que buscam sua libertação, as que ingressam na esfera pública e política, as que se recusam a viver sob o domínio dos poderes patriarcais e, é claro, aquelas que decidem pelo aborto.

Uta Hanke-Heinemann demonstra como os dogmas criados pela Igreja continuam a influenciar a opinião pública, mesmo nos dias de hoje, abrangendo temas como virgindade, divórcio, casamento, métodos contraceptivos, homossexualidade, aborto e prazer sexual. Isso reflete a persistência do poder de uma instituição sobre os corpos e mentes, destacando a presença contínua da misoginia, homofobia, transfobia e desvalorização das mulheres na sociedade. A associação do prazer sexual ao conceito de pecado e vergonha perdura por dois milênios, afetando os direitos civis, a dignidade e os direitos humanos das mulheres nos dias atuais.

Como isso se relaciona com a perseguição às mulheres que enfrentam a questão do aborto, às meninas que têm sua escolha restringida por questões morais? Os discursos fundamentais do catolicismo são tão profundamente misóginos, e para essa religião, bem como para as neopentecostais, os corpos femininos são vistos como “recipientes do sêmen”, e toda a culpa recai sobre elas por terem cometido o “pecado da carne”, independentemente de quem as engravidou – elas são consideradas culpadas. Fim de história.

Essa obsessão pelo controle da sexualidade permeia as agendas políticas dos fundamentalistas, como mencionei antes, sendo defendida por homens preocupados com seus próprios interesses eleitorais. O aborto sempre foi uma prática presente na história da humanidade, no entanto, nas últimas décadas, ganhou destaque nas arenas legislativas, tornando-se um campo de batalha nas disputas de poder e de mentes.

Nesse contexto, esses discursos continuam a demonizar as mulheres. Ao analisar projetos que focam na chamada “ideologia de gênero”, o que se destaca é a perseguição às mulheres e à educação sexual. É a instrumentalização política dos corpos femininos, transformando-as em criminosas. E quanto aos pecados dos homens, será que eles não existem? Se uma gravidez ocorre, a culpa recai sobre as mulheres.

Por que, então, somente elas que são presas ou até mortas? A gravidez não surge do nada, mas em geral, da união entre um homem e uma mulher, através da introdução do pênis na vagina — isso quando não resulta de inseminação artificial. No entanto, parece que aqueles que possuem pênis — a saber aqui me refiro aos homens assim nomeados no nascimento — acreditam ter o direito de dispor dos corpos das mulheres — também assim definidas desde que nasceram. E assim, as mulheres são criminalizadas, especialmente as meninas vulneráveis, com menos de 14 anos.

O Estatuto do Nascituro, por exemplo, não passa de um projeto que visa revogar a autorização para o aborto em qualquer circunstância, incluindo aquelas já previstas por lei. E, nesse contexto, os homens são, de certa forma, eximidos de qualquer responsabilidade na concepção.

Por que o aborto é considerado um crime? São as mulheres que engravidam, e quando isso acontece, quem é culpabilizado? Parece que, quando uma menina ou mulher engravida, automaticamente ela se torna a culpada, a vilã da história.

Convido a lerem uma poesia de minha autoria, publicada no livro Se pulse, arde e resiste.

O aborto incomoda a quem?

A palavra aborto te incomoda?

O que te incomoda na palavra aborto?

Nunca sentistes o desespero

nem sofrestes do abandono,

do medo, de uma culpa que não é tua.

Não sabes o que é ter o ventre rasgado

e, se gritasses, ninguém te ouviria.

Nunca, em troca de teu silêncio,

Vivestes sob ameaças, e nem fostes

dominado e possuído com barbaria.

Nunca te disseram “esse filho não

é meu”. Os canalhas sempre somem  

 – “o problema é teu” dizem – que covardia!

Não sabes o que é ter o corpo ferido de

de uma dor que consome em sangria. 

Não tens cicatrizes na pele, na alma,

nas carnes por atos de selvageria.

Nunca passastes o pavor dessa torpe

violência, consumindo-te em agonia.

Não, nunca perdestes o sorriso e, assim triste,

ainda te apontavam – “Culpada! Vadia!”

O aborto incomoda a quem, mesmo?

Quem, mesmo, se incomoda com o aborto?

Marlene de Fáveri, historiadora, poeta, escritora, feminista.

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  • Marlene de Fáveri

    Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC....

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