Chuva e caos: a falta de planejamento urbano e políticas de prevenção em SC
Entrevistamos lideranças e representantes do poder público de Florianópolis para entender como os impactos das chuvas evidenciam as desigualdades estruturais e as vulnerabilidades das comunidades mais empobrecidas.
Na última semana, Santa Catarina viveu um verdadeiro caos: ruas inundadas, carros submersos, encostas desmoronando e inúmeras famílias desabrigadas pelas fortes chuvas que atingiram diversas localidades do estado. Cenários como esse, que se repetem ano após ano em diversas regiões do país, fizeram com que Florianópolis e outras 12 cidades decretassem situação de emergência. Esses desastres escancaram a negligência com o planejamento urbano e a falta de medidas preventivas essenciais para evitar tamanha destruição.
Líderes e representantes do poder público da capital catarinense destacam como a ausência de políticas públicas adequadas agrava ainda mais a situação. Desde o dia 16, enquanto os danos se intensificavam, organizações e membros da sociedade civil se mobilizaram para oferecer apoio aos afetados. O Portal Catarinas conversou com essas lideranças e com representantes do poder público de Florianópolis, revelando como os impactos das chuvas escancaram as desigualdades estruturais e as vulnerabilidades de comunidades já empobrecidas.
O estado chegou a registrar 1.001 desabrigados e 1.305 desalojados, de acordo com dados da Secretaria de Proteção e Defesa Civil. No entanto, no boletim divulgado na manhã desta segunda-feira (20), os números foram atualizados, indicando 32 desabrigados e 60 desalojados. Ainda conforme o órgão, 21 municípios foram afetados por alagamentos e deslizamentos devido à circulação marítima. Uma morte foi confirmada. O pescador José Adalberto Sagas, de 72 anos, morreu após ser arrastado pela correnteza. O corpo dele foi encontrado na sexta-feira (17) em Governador Celso Ramos, na Grande Florianópolis.
O governador Jorginho Mello informou que recebeu ofertas de ajuda tanto do governo federal quanto de outros estados para enfrentar as enchentes e alagamentos. No entanto, o chefe do Executivo estadual agradeceu o apoio e afirmou que as forças de segurança do estado estavam conseguindo dar conta das ocorrências. O governador também destacou que os prejuízos desta vez não foram tão grandes quanto os causados pelas chuvas que atingiram o estado em 2023.
A vereadora Carla Ayres (PT), de Florianópolis, tem acompanhado de perto a situação, tanto na esfera municipal quanto estadual. Ela relatou que, ao longo da última semana, monitorou os impactos das chuvas e atuou de forma ativa, utilizando as redes sociais para informar a população sobre as principais vias interditadas, a situação dos bairros mais afetados e outros aspectos críticos do momento.
A parlamentar também entrou em contato com representantes do governo federal. Ela conversou com o Secretário Nacional de Assuntos Federativos, André Ceciliano, e com a equipe da Defesa Civil nacional, detalhando a situação da Grande Florianópolis e da capital.
“A pauta climática é urgente. Temos cinco projetos sobre o tema tramitando na Câmara de Florianópolis. A proposta, que insere as mudanças climáticas na lei orgânica e estabelece uma série de medidas de enfrentamento e mitigação dos efeitos dos eventos climáticos extremos, está pronta para votação desde o ano passado”, destaca.
Ayres alerta que, com a aprovação do novo Plano Diretor, a situação se tornou ainda mais complicada.
“Nós temos uma cidade que é bastante predada pelo comércio imobiliário. Tivemos uma atuação resistente ao Plano Diretor, aprovado recentemente, e que intensificará, ao longo do tempo, situações como essa, caso obras de infraestrutura macroestruturais não sejam feitas na cidade, como, por exemplo, uma rede de drenagem eficiente. É importante dizer que o PAC do Governo Federal liberou recursos para a drenagem na Bacia do Itacorubi, por exemplo, recentemente”, diz.
Os estragos causados pelas chuvas, como alagamentos e vias interditadas, estão diretamente ligados ao planejamento urbano. Essa é a análise de Lino Peres, arquiteto e urbanista, professor, ex-vereador de Florianópolis por dois mandatos (2013 a 2020) e presidente do Instituto Cidade e Território (ITCidades).
“O que está ocorrendo é resultado da ação política de omissão, intencional ou não, do poder público em combinação com o setor privado, para os quais há consequências e impactos na natureza”, frisa o profissional em entrevista ao Catarinas.
No artigo “Diante das intempéries, preparar as cidades“, publicado no site do ITCidades, Peres aponta que os planos diretores de 2014 e 2023 abriram condições para o agravamento de alagamentos e deslizamentos nas encostas, ocorridos em vários pontos da cidade nos últimos dias. Além disso, conforme o profissional, esses planos avançaram na verticalização em áreas suscetíveis a alagamentos, como o bairro Santa Mônica, que há décadas alaga e está ao lado do Manguezal do bairro Itacorubi.
“A capital catarinense não tem, pasmem, um plano de drenagem articulado com o plano diretor, sendo que este foi aprovado à revelia, sem debate e estudos sobre a capacidade de suporte da cidade e da região conurbada. Outro fator é que a Defesa Civil não está adequadamente aparelhada, sofre com a falta de pessoal e o município não possui um plano de contingência discutido e implementado com a participação da população”, avalia o ex-vereador.
A última questão também foi mencionada por Ingrid Sateré-Mawé, vereadora em Florianópolis pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que, assim como Carla Ayres, segue acompanhando a situação e garantindo que os dados das pessoas atingidas cheguem à Secretaria de Segurança, responsável por encaminhá-los às demais secretarias.
“A gente tem pouco efetivo da Guarda Municipal, pouco efetivo da Defesa Civil, então não temos um planejamento de fato para atender às necessidades que as mudanças climáticas estão exigindo”, afirmou a parlamentar em entrevista ao Portal Catarinas.
Ela relatou que, no dia seguinte às enxurradas, sua equipe encontrou duas unidades do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), localizadas no Saco dos Limões e no Centro II, que atendem comunidades periféricas, fechadas.
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Enquanto conversava com a reportagem, a parlamentar realizava um levantamento no bairro Monte Verde, onde, segundo ela, diversas pessoas foram afetadas. Os dados coletados no local foram encaminhados aos órgãos competentes para garantir a assistência necessária. “Muitas mães solteiras, idosos, crianças, tiveram suas casas completamente cheias, perderam todos os móveis. Elas ficaram sem nada, estão precisando de materiais de limpeza, alguns remédios, comida, de onde dormir”, ressaltou a vereadora na ocasião.
A chuva também prejudicou os moradores da Ocupação Marielle Franco, no Alto Caieira, no Maciço do Morro da Cruz. Lá, onde vivem mais de 230 famílias, diversas casas foram alagadas e uma delas desabou, como destaca Samara de Oliveira, uma das lideranças da Ocupação, iniciada em 2016, e membra do Movimento Nacional de Luta Pela Moradia (MNLM).
“Pedimos ajuda à Defesa Civil, que trouxe 20 metros de lona, suficientes para cobrir no máximo três casas. Alegam que, por sermos uma comunidade irregular, não podem ajudar. Mas se fosse assim, o restante das comunidades, supostamente regulares, não estariam passando pela mesma situação”, salienta.
Ela acrescenta que a ocupação não possui saneamento básico e que falta assistência por parte da administração municipal. Segundo Oliveira, as melhorias conquistadas até hoje são fruto da mobilização dos próprios moradores, com a ajuda da população de fora, gabinetes de esquerda, sindicatos e ONGs.
“O prefeito gosta de fazer vídeos na Beira-Mar, gosta de arrumar as praias para receber os turistas, porque é isso que ele vende para fora. Mas a realidade, ele não mostra e também não muda. Não vamos encontrar vídeos dele no morro, em uma comunidade, melhorando a rua ou o esgoto”, denúncia.
Pedro Morais, integrante da coordenação estadual do Movimento Luta de Classes (MLC) e do diretório municipal da Unidade Popular Pelo Socialismo (UP), se juntou à brigada de solidariedade encabeçada pelo Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) para prestar apoio às famílias afetadas.
Ele contou à reportagem que esteve na comunidade do Alto Pantanal, no entorno da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde houve deslizamentos. Durante a ação, lona e alimentos foram distribuídos para alguns moradores. Morais também criticou o descaso da prefeitura.
“Esse é um momento de oportunismo e desinformação, em que políticos, principalmente os mais ricos da cidade, se fazem de salvadores, mas são os grandes causadores dessas calamidades. É hora de compartilhar a informação correta e dar nomes aos bois, denunciando quem durante o ano todo ignorou a preservação e políticas públicas essenciais”, salienta.
Crise climática não afeta todas as pessoas da mesma maneira
Embora os impactos das mudanças climáticas sejam sentidos em maior ou menor grau em todo o mundo, elas afetam de forma desproporcional as populações mais vulneráveis. Cerca de 40 milhões de jovens estão expostos a mais de um risco climático ou ambiental no Brasil, e as mudanças climáticas comprometem a garantia de direitos fundamentais, alerta o relatório Crianças, Adolescentes e Mudanças Climáticas no Brasil, lançado em 2022, pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
“Os efeitos dessa crise afetam desproporcionalmente crianças e adolescentes que vivem em situação de maior vulnerabilidade, já privados de outros direitos – principalmente negros, indígenas, quilombolas, e pertencentes a outros povos e comunidades tradicionais; migrantes e/ou refugiados; crianças e adolescentes com deficiência; além de meninas”, diz o estudo.
Para Ingrid Sateré-Mawé a justiça climática está bem longe de ser alcançada. “Numa situação como essa, que aconteceu em Florianópolis e no litoral de Santa Catarina, a gente vê o quanto os mais prejudicados são as mulheres, mães solo, crianças e idosas. Muitas dessas famílias, lideradas por mulheres, pagam aluguel, não têm rede de apoio e, frequentemente, precisam faltar aos seus trabalhos. A falta de justiça climática faz com que tenham que interromper suas vidas”, diz.
Assim como Sateré-Mawé, Mirê Chagas, assistente social e vereadora suplente pelo PSOL em Florianópolis, destaca a necessidade de fortalecer a integração entre o governo e as comunidades — algo que atualmente é quase inexistente — como um passo fundamental para transformar essa realidade.
“Durante esse período de fortes chuvas é evidente a ausência do Estado nas comunidades periféricas. Áreas que já enfrentam a precariedade da infraestrutura e do planejamento urbano, sendo frequentemente as mais afetadas por deslizamentos, alagamentos, enchentes e destruição de moradias. Isso destaca a necessidade urgente de políticas públicas de prevenção”, enfatiza Mirê Chagas.
Em uma cidade rodeada por morros, Chagas fala com propriedade sobre os desafios enfrentados por quem vive nas comunidades — uma realidade que ela sente na pele, como moradora de uma delas. E lança uma pergunta incisiva: o que a prefeitura tem feito em termos de políticas públicas para prevenir, remediar ou minimizar os impactos cada vez mais graves das fortes chuvas?
“Além da falta de saneamento básico, da perda de bens e moradias, do isolamento e da dificuldade de mobilidade, vemos a ausência de políticas preventivas na cidade e no Estado de Santa Catarina para lidar com essas fortes chuvas e essas calamidades, tragédias que acontecem devido às condições climáticas”, ressalta.
“Essa questão de enfrentamento, de políticas públicas, de enfrentamento às condições climáticas, é algo que precisamos pensar enquanto ativistas, enquanto parlamentares, enquanto pessoas que lutam também pelo bem-viver da sociedade em comum”, conclui Chagas.
Poder executivo
O Portal Catarinas questionou a prefeitura de Florianópolis sobre medidas para enfrentar os impactos das fortes chuvas. Entre os pontos levantados estão: ações para garantir uma rede de drenagem eficiente; o cronograma das obras de drenagem na Bacia do Itacorubi; a existência de um plano de contingência; o efetivo da Defesa Civil municipal; iniciativas para apoiar comunidades afetadas pela falta de saneamento básico e escoamento precário; além das políticas públicas para prevenir e minimizar os crescentes danos causados pelas chuvas. Porém, até a última atualização desta reportagem, não houve retorno. O espaço segue aberto.
Também questionamos o governo estadual sobre as políticas públicas adotadas para prevenir, mitigar e minimizar os impactos cada vez mais graves das fortes chuvas e da crise climática em Santa Catarina. Aguardamos o retorno.