O argumento “salvamos as duas vidas”, que virou slogan da campanha contrária à legalização do aborto na Argentina, é desmontado a cada morte por abortamento inseguro. Em menos de uma semana da votação que repudiou a legalização da prática no Senado, uma mulher de 34 anos morreu após ficar dois dias internada, por tentar interromper a gravidez com um talo de salsa. Elizabeth, conhecida como Liz, tinha um filho de dois anos e vivia em um bairro pobre de José León Suárez. No último domingo, a jovem chegou ao Hospital Belgrano, em San Martín, com uma infecção generalizada. Ali retiraram o seu útero para que a infecção não continuasse avançando, e depois a levaram para um hospital de alta complexidade em Pacheco, onde foi internada em terapia intensiva até a morte na última terça-feira (14). No mesmo dia, manifestantes do Ni Una Menos fizeram um ato na Casa da Província de Buenos Aires em homenagem à vítima.
“Essa morte por aborto feito nessa circunstância, com um método muito antigo e precário, impactou a todas no movimento de mulheres. Imediatamente passamos a verificar aquilo que dissemos que ia acontecer: eles (contrários à legalização) vão pagar o custo político de cada morte que se produz por aborto clandestino. Os anti-direitos, ou autorreferenciados pró-vida, fizeram uma campanha muito forte que se chamou “salvamos as duas vidas”, mas a clandestinidade não salva nenhuma vida. Mais mortes por aborto clandestino se somam em nosso país”, afirmou ao Catarinas Monica Menini, advogada que integra a organização Católicas pelo Direito de Decidir.
Um dia antes da sessão, outra mulher, de 34 anos, tinha sido internada em Mendoza com hemorragia, febre e infecção avançada. Ela também passou por uma histerectomia e segue internada. Três dias antes, Liliana Herrera, 22, também morreu por recorrer a um aborto inseguro, em Santiago del Estero.
“É muito angustiante saber que uma mulher de 34 anos morreu por se negar à maternidade obrigatória. Mortes por aborto clandestino são parte da responsabilidade do Estado e de suas leis restritivas, e dos senadores que votaram contra a legalização do aborto com o argumento de salvar duas vidas. Eles precisam saber que aqui não salvaram nenhuma vida. Ao contrário, pessoas, mulheres com histórias perdem a vida nessa tentativa”, argumentou Nadia Mamani, integrante das Socorristas em Rede – feministas que ajudam mulheres a acessar um procedimento seguro.
Em quatro anos, desde que começaram a sistematizar os dados, as socorristas já acompanharam mais de 12 mil mulheres. “Lamentavelmente não conseguimos ajudá-la (Liz). Nós não conseguimos ajudar todas. E isso é difícil também”.
O procedimento de interrupção voluntária da gravidez só é permitido na Argentina quando a vida ou a saúde da mulher está em risco, em situação de violência sexual e em caso de inviabilidade do feto. Estima-se que a cada ano 500 mil mulheres recorram à prática clandestina, um número duas vezes maior que o do Brasil, se levarmos em conta a população dos dois países. Segundo dados recentes do Ministério da Saúde da Nação, as complicações por aborto inseguro continuam sendo a primeira causa direta de mortalidade materna, representando 18,2% das mortes maternas no país. Entre 2011 e 2015, 254 mulheres morreram por esse motivo, o equivalente a 50 mortes por ano.
Na opinião de Cecília Palmeiro, integrante do Ni Una Menos, se a lei atual fosse cumprida, a prática não poderia ser criminalizada no país. Ela refere-se ao permissivo legal que garante o direito ao aborto em caso de risco à saúde da mulher. “Se você não quer uma gravidez já se enquadraria. Trata-se da saúde física, psicológica, social e emocional. De fato se entende assim em alguns hospitais, mas isso depende da equipe médica”, explica a ativista.
Redes de profissionais da saúde e organizações da sociedade civil lançaram a nota “Aborto clandestino mata: nós lamentamos a morte de uma mulher por um aborto inseguro após a rejeição do Senado”. “Se os senadores e o governador não tivessem feito ouvidos moucos às nossas reivindicações, se eles não tivessem virado as costas para aqueles que garantem abortos seguros, Liz estaria viva. Porque é disso que se trata, de evitar mortes evitáveis. Em um país onde já se produz misoprostol, onde as equipes de saúde são treinadas para garantir práticas seguras, os representantes e o governador continuam a escolher a clandestinidade, exclusão e mediocridade”, diz parte do texto assinado por organizações como Federação Argentina de Medicina Geral (Famg), Socorristas em Rede e Ni Una Menos.
“A partir de agora, cada mulher morta ou presa por abortar será responsabilidade do Poder Executivo Nacional e dos 40 senadores e senadoras, membros do Poder Legislativo, que se abstiveram ou votaram contra o nosso direito à vida, à saúde e ao reconhecimento de nossa dignidade”, diz em nota a Campanha por Aborto Legal, Seguro e Gratuito, que se prepara para o 28 de setembro, dia que marca a luta por essa agenda política na América Latina e Caribe.
Para a socorrista Nadia Mamani, as mobilizações nos últimos dois meses, que levaram milhares às ruas na capital e províncias, por aborto legal, seguro e gratuito tem aumentado a sensibilidade da sociedade em relação ao tema, e consequentemente, gerado maior visibilidade às mortes por aborto inseguro. “Ante o abandono, mais feminismo, mais informação para garantir direitos, e mais articulação com esse tema da saúde para avançar com as interrupções voluntárias de gravidez. Não vamos dar nenhum passo atrás, não renunciaremos a isso, porque ainda não terminou, vamos conseguir a lei por elas e por todas”.
O que se viu na decisão da maioria dos senadores foi um avanço das forças religiosas na definição das leis, como avalia a advogada. “Não houve laicidade na decisão. Eles trouxeram essas questões religiosas com um grande lobby da igreja. Ou seja, a argumentação dentro do Senado foi muito pobre da parte dos antidireitos. Baseou-se fundamentalmente no que chamaram “minhas convicções”, que são crenças religiosas. A luta segue. As ruas despenalizaram socialmente o aborto no nosso país e revelaram o pensamento e o projeto político de muitos dos que estão, hoje, no governo”.
A ativista das Católicas questiona o posicionamento da presidenta da Câmara dos Senadores, Marta Gabriela Michetti, que também é vice-presidenta do país, que disse estar aliviada com a não aprovação da lei. “O que a alivia? Como pode se sentir aliviada se o que acontecem são mortes? A decisão do Senado foi baseada em crenças religiosas, que não podem se sustentar num Estado laico. Por isso nos voltamos agora para a campanha de separação entre igreja e Estado”.
Confira momentos da entrevista com Mónica:
Mónica, que também integra a Campanha por Aborto Legal, Seguro e Gratuito, lembra que a gravidez indesejada pode ser resultado de múltiplas causas, entre elas a falta de conhecimento de métodos contraceptivos e a violência dentro dos casamentos, a qual não é entendida pelas vítimas como violação. “As mulheres não podem acessar a saúde pública, também lhes negam a possibilidade de ter acompanhamento pré e pós-aborto. A mulher poderia ter conhecimento e informação científica e laica para poder tomar suas decisões sabendo o que vai acontecer. Uma decisão informada, voluntária e plena. Todo o arco que se poderia abrir para a saúde da pessoa é muito importante, e isso é negado, e rechaçado como foi pelo Senado, não há possibilidade de ter a saúde pública de portas abertas”.
No próximo 21 de agosto deve ser apresentado pelo presidente do país, Maurício Macri, um anteprojeto para reforma do Código Penal, que propõe entre outras alterações a descriminalização do aborto. A proposição, no entanto, não agrada o movimento feminista. “Estamos muito cautelosas com essa notícia. Não conhecemos com segurança do que trata o projeto. Nós, como campanha nacional, seguimos pedindo a descriminalização e legalização. Sem legalização, somente as mulheres que podem pagar vão continuar tendo acesso e as outras vão seguir com talo de salsa”, afirma Mónica.
O dia histórico
Chovia forte e a mínima prevista era de seis graus para o 8 de agosto, dia da sessão de discussão e votação do projeto de “Interrupção voluntária da gravidez”. Foi um dos dias mais frios deste inverno argentino. “Mais cedo ou mais tarde, em um dia mais brilhante do que este dia cinzento e chuvoso, as mulheres terão a resposta que precisam”. A fala em tom alentador do senador Miguel Pichetto durante a sessão de votação do projeto alude à potência de um movimento que levou cerca de dois milhões de mulheres às ruas, na capital e nas províncias, em apoio à aprovação.
“Não é menos importante que mesmo com essa condição climática estávamos todas nas ruas. No metrô e em todos os lugares havia manifestantes com o lenço da campanha”, afirmou a socorrista Júlia Burton.
Por 38 votos contrários e 31 favoráveis, o Senado repudiou o projeto de “Interrupção Voluntária da Gravidez”. Houve duas abstenções e uma ausência por licença maternidade da senadora Eugenia Catalfamo. A votação foi uma oportunidade histórica de descriminalizar o aborto e garantir que o Estado ofereça acesso gratuito ao procedimento. Desde 2017, sete propostas de legalização foram apresentadas à Câmara dos Deputados, mas nenhuma sequer chegou a passar pelas comissões da casa. Até que 7 de abril deste ano o projeto foi novamente proposto à Câmara e em 13 de junho, com o apoio do presidente Maurício Macri, foi aprovado. “Estivemos muito perto de conseguir. Perdemos por sete votos e isso não é tanto. Dizer que ainda assim ganhamos, por promovermos a despenalização social, não traduz a complexidade desse momento. Perdemos a batalha institucional. Ainda estou processando essa angústia”, disse Júlia.
Os 13 anos de Campanha Nacional por Aborto Legal, Seguro e Gratuito foram construídos a partir da interação entre organizações e ativistas no Encontro Nacional de Mulheres, que ocorre anualmente desde 1985 (logo após a redemocratização do país), e hoje chega a reunir mais de 50 mil participantes. Cerca de 500 organizações integram a campanha com o propósito de instituir “educação sexual para decidir, anticonceptivos para não abortar e aborto legal para não morrer”.
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“O Encontro Nacional de Mulheres tem se fortalecido como uma instância de discussões e empoderamento de mulheres e feministas muito grande no país. Nesses encontros tem saído as melhores reformas e estratégias de legislação relacionadas aos direitos das mulheres em sentido amplo, não só sobre aborto. No último ano houve um crescimento do feminismo entre as mais jovens, o que inclui meninas de 12 anos, e isso é espetacular. O feminismo conseguiu esse avanço não só porque pedimos a legalização do aborto, e sim porque é um grande movimento político, cultural e social que também tem uma perspectiva econômica. Como grande movimento conseguiu mobilizar uma grande quantidade de mulheres e homens que veem nele uma luta ideológica e política. Isso é muito importante, ainda mais em país com uma crise política”, avalia advogada Monica Menini que participou das primeiras edições.
A proposta “Interrupção Voluntária de Gravidez” altera os artigos 85, 86 e 88 do Código Penal de 1921 para descriminalizar e legalizar a prática de aborto provocado pela gestante ou com o consentimento dela até a 14ª semana de gestação. Hoje, na Argentina, a mulher que interrompe a gravidez e a pessoa que realiza o procedimento com o seu consentimento podem ser condenadas a uma pena de reclusão de um a quatro anos. O projeto também propõe a redução dessas penas para até um ano. O texto inclui a penalização dos profissionais de saúde que se negarem a realizar o procedimento nos casos previstos em lei, com até um ano de prisão e inabilitação profissional pelo dobro do tempo da condenação.
“Este não é um debate de menor valor. É um debate estrutural que tem a ver com a Argentina moderna e de atraso. Essa discussão é entre aborto clandestino, ilegal ou entre aborto seguro, gratuito e legal (…) Estou surpreso que legisladoras votem contra essa lei. Não seria melhor exigir uma política de saúde pública para impedir essa injustiça? Por que seguem insistindo com isso? Porque seguem tendo uma concepção patriarcal da mulher descartável, tutelada, infantilizada, incubadora”, provocou o senador Fernando Solanas durante a sessão de votação.
Em um discurso apaixonado, o senador argumentou pelo exercício da sexualidade das mulheres.
“Falo em nome de outra Argentina que quer acabar com os medos, que sofreu durante a repressão, que não quer a juventude reprimida. Aí está essa fabulosa juventude nas ruas de Buenos Aires. Essa onda verde está expressando uma marcha de mulheres que pede nada menos do que o reconhecimento igualitário de seus direitos. Não só o direito à vida, como também o poder de decidir sobre seu corpo. E por que não, por que temos medo de dizer, direito à vida e a gozar de seu corpo”.
A ex-presidenta, senadora Cristina Kirchner, que durante o seu governo não aceitou apoiar o projeto, mudou de lado e votou favoravelmente. “Quem me fez mudar de opinião foram as milhões de garotas que saíram às ruas para abordar a questão feminista, e vê-las criticarem e questionarem a sociedade patriarcal. Quero dizer às jovens que esse feminismo que estão construindo deve incorporar outras questões, que em definitivo são sempre econômicas, de relação de insubordinação e de poder”, afirmou durante a sessão.
“A morte por aborto clandestino é um feminicídio por omissão do Estado. É parte de uma violência institucional que não podemos seguir permitindo. Aqui está em debate também o corpo da mulher, que é o primeiro território soberano. É uma disputa sobre o corpo da mulher, sua autonomia e faculdade de decidir. Fizeram-nos objeto ao largo da história, objeto de tutelagem, sempre fomos consideradas incapazes (…)”, colocou a senadora María de los Ángeles.
“Queremos salvar as duas vidas e não estamos salvando nenhuma. Todos sabemos de que se tratam de morte evitáveis e não podemos esperar nem um minuto mais”, afirmou a senadora Gladys González, em discurso emocionado.
Em um dos discursos mais repudiados pelas feministas, o senador Rodolfo Urtubey defendeu que uma modificação do Código Penal deveria vir acompanhada de “uma implementação séria e responsável do aborto causal” (casos já permitidos pela lei). “Teremos que discutir quais são as causas e sair da interpretação extensiva. Eu creio, senhora presidente, que realmente teríamos que avaliar aqueles casos em que a violação não tem essa configuração clássica de violência sobre a mulher. Casos em que a violação é um ato não voluntário com uma pessoa que tem inferioridade absoluta de poder frente ao abusador, como, por exemplo, no caso infrafamiliar. Que não se pode falar de violência, tampouco de consentimento”, afirmou ele.
A senadora Anabel Fernández Sagasti o qualificou como “uma bestialidade da época das cavernas”. Para Cecília Palmeiro, do Ni Una Menos, a colocação do parlamentar demonstra a perspectiva patriarcal que sustenta o posicionamento contrário. A ativista assinala que há leis muito avançadas na Argentina, como a lei de identidade de gênero e matrimônio igualitário, o que demonstra o atraso em relação à pauta.
“A vida das mulheres não é possível dentro desse sistema que atenta contra nós. Queremos mudar o país num sentido muito básico, porque a legalização do aborto não é nada revolucionária, aliás é uma questão de saúde pública que já é direito em vários países há décadas. Eles não querem apenas ficar no passado, mas voltar além da lei de 100 anos atrás, porque a gravidez por estupro pode ser interrompida legalmente e as falas vão para além disso”, disse a ativista.
Enquanto os senadores discutiam no Senado, o grito das manifestantes ecoava nas ruas:
O fenômeno “pañuelazo”
Com danças, palavras de ordem, batucadas e pañuelazo (como ficou conhecida a intervenção com os lenços verdes), manifestantes acompanharam as 17 horas de discussão. Estavam avós, mães e filhas unidas por um desejo que não pode mais ser adiado: “que seja lei!”. A grande maioria, no entanto, mulheres jovens. Havia também muitas crianças e adolescentes. Com um número significativamente menor, manifestantes contrários ao projeto vestiram lenço azul e assistiram à votação em frente a um telão nas proximidades do Senado.
Meninas gritam “aborto legal para não morrer, anticoncepcional para não morrer”:
“Sabemos que temos avançado muito, que todo debate e mobilização, a quantidade de ações que temos feito como festivais e ‘pañuelazos’, têm nos fortalecido enquanto movimento feminista e nos têm articulado, envolvemos todas as gerações, porque neste movimento temos muitos jovens muito jovens e velhas muito velhas. Então estamos neste grande abraço de sororidade que podemos construir apesar das diferenças políticas e partidárias, lutando por um direito que é poder decidir, e não ter que aceitar a maternidade obrigatória”, assinala Maria Teresa Bosio, presidenta das Católicas pelo Direito de Decidir.
Para Cecília Palmeiro o resultado no parlamento é reflexo da crise democrática que vive o país, onde pelo menos 60% da opinião pública é favorável à proposta. “Há um desejo coletivo pela legalização do aborto. Na rua, nas redes, na mídia, na opinião pública, a legalização já ganhou. O aborto não vai ser mais secreto, ninguém mais vai ter vergonha de falar. Então o rechaço é uma crise da democracia e da ideia de representação. Trinta e oito pessoas desconectadas com a história, que atrasam muito, que não têm problema em falar que nem leram o projeto e que o estupro não é violento. A mediocridade do debate nos deixa preocupadas e mostra uma falta de representatividade do Congresso em relação à sociedade. Esses senadores representam interesses de uma minoria repressora, como são os donos das terras, e a igreja que valida essa concentração de poder e propriedade e que não tem nada a ver com as necessidades do povo e das mulheres de todas as classes sociais”, avalia.
Intervenção alude à inquisição contemporânea contra mulheres que abortam:
Cecília analisa o momento político e afirma que as mobilizações vão se concentrar em denunciar o contra-ataque das forças religiosas ao se infiltrarem no discurso do legislador. “O governo está num momento muito fraco, de baixa popularidade. A rejeição da lei vai criar mais tensões e conflitos sociais. O nível de machismo nas autoridades e funcionários do Estado é insuportável. O movimento de mulheres, que é o maior movimento social que há na Argentina e América Latina, agora, vai lutar com mais força e atacar a raiz do problema, que é a separação entre igreja e Estado. Vamos lutar com mais radicalidade.”
“Que sea ley” virou forma de cumprimento nas ruas de Buenos Aires. Assim como no dia da votação, os lenços da campanha continuam a colorir metrôs e espaços públicos, sinalizando que a maré verde, como passou a ser chamado recentemente o movimento pela legalização, não recuou.
“A maré verde não vai retroceder nenhum passo atrás, pelo contrário, já estamos pensando em ações e como vai ser nossa contraofensiva. A força do povo é muito grande e vai chegar até a lei. Foi a maior mobilização feminista da nossa história e acho que até da história do continente. Nunca houve uma massa tão grande pedindo por uma lei. Depois de juntar milhões de pessoas nas ruas, ninguém fica igual”, afirma a ativista.
As integrantes da campanha apostaram no clamor das ruas para sensibilizar os senadores a votarem favoravelmente. “Estávamos seguras de que, tanto para os senadores e senadoras, o risco de não serem eleitos poderia ser um temor muito grande. Sabíamos que o povo na rua seria um fator crucial para a tomada de decisão, isso ajudou muito as negociações que fizemos na Câmara de Deputados. Bem, no Senado não foi suficiente, porque uma câmara profundamente elitista, patriarcal, muito ligada a setores religiosos e, portanto, a decisão tem a ver com isso e com acordos políticos que em geral não estão muito claros”, colocou Maria Alicia, da Campanha Nacional por Aborto Legal, Seguro e Gratuito.
Victória Tesofiero, que atuou na comissão de lobby parlamentar pela aprovação, conta que muitos senadores que se comprometeram com a agenda política mudaram de posição na hora da votação. “Houve muita parcialidade no debate e situações de falta de respeito. Senadores repetiram discussões como se não tivessem assistido nada do debate na Câmara dos Deputados. O processo no senado revela que temos uma classe política muito permeável às pressões do setor fundamentalista das igrejas católicas e evangélicas, que é representativo e não propõe nenhuma solução à problemática que significa a morte de mulheres por aborto clandestino. Temos um senado majoritariamente cúmplice das mortes de mulheres por aborto clandestino. Isso é muito lamentável”, avalia.
Para a ativista há, no entanto um sentimento de vitória em relação à mobilização alcançada nos últimos meses. A despenalização social do aborto, ou seja a aceitação da prática pela sociedade, é considerada uma conquista dessa trajetória de 13 anos. “A vitória é perceber todas as pessoas e coletivos que se somaram a militar pelo tema em nível de inserção social que alcançamos. Nunca havíamos visto uma mobilização de um milhão de pessoas em busca de um direito, como foi em 13 de junho, e quase dois milhões em 8 de agosto. É um processo incrível, o fenômeno do lenço ultrapassou a fronteira do país e levou outros países a retomarem a agenda pela legalização do aborto. Cerca de 80 atividades ocorreram em distintas partes do mundo. Isso é orgulho e me enche de emoção”.
Um novo projeto deve ser apresentado no próximo ano. A campanha também se volta para um movimento de escracho aos senadores que votaram contra. “Descansaremos alguns dias, e seguramente, a campanha lançará alguma proposta mais concreta de apresentação do projeto novamente. Leremos, revisaremos. Faremos essa revisão de maneira coletiva. Pensaremos, discutiremos as estratégias para saber quais foram os acertos e erros, se seguirá o mesmo ou se terá alguma modificação. Temos que organizar uma forte campanha de escracho a todos os que votaram contra o projeto, em função das eleições que ocorrem no ano próximo”, explica Maria Alicia.
Maria Alicia nos concedeu uma entrevista em vídeo:
A articulista da campanha acredita que o movimento pela legalização, impulsionado pelo exemplo argentino, tende a tomar força em toda a América Latina. “Estamos convencidas com a campanha que o aborto vai ser lei na Argentina. Porém, não só na Argentina, porque uma das coisas que creio que produziram com esse processo aqui nesse país foi o enorme impacto na América Latina. Que esse processo que se deu na Argentina avance a possibilidade de legalização é uma contribuição muito forte e potente para a sinergia que pode ocorrer em toda a região”.
Confira trechos das entrevistas em vídeo aqui.
* Esta matéria contou, para sua realização, com apoio financeiro do Projeto Trincheira, uma parceria Cfemea, Ipas e SPW. E também com o apoio indireto das assinaturas do Portal Catarinas.