Neste 28 de maio, Dia Internacional de Luta pela Saúde da Mulher e Dia Nacional da Redução da Mortalidade Materna, artigo aborda as restrições aos direitos reprodutivos durante a pandemia

No Brasil, o cenário de desigualdade social tem sido agravado pelas necropolíticas de um governo perverso durante uma pandemia global. Neste contexto, as mulheres sofrem os efeitos cruéis das decisões políticas de contenção da crise também no âmbito de seus direitos sexuais e reprodutivos, por meio da ausência de medidas específicas que garantam seus direitos básicos neste período. Essa ausência é a expressão do lugar ocupado pelas nossas demandas, materializada na dificuldade de acesso a métodos contraceptivos, realização de exames, ao aborto legal, ao atendimento de qualidade no pré-natal, parto, puerpério, aborto e pós-aborto, entre outros serviços.

Dentre os direitos sexuais e reprodutivos que, de fato, nunca foram concretizados plenamente no país, está o direito ao aborto legal e seguro. Desde 1940, o Código Penal brasileiro tipifica o aborto como crime, que pode ser punido com prisão. Inicialmente, o aborto legal foi previsto apenas em caso resultante de estupro ou em caso de risco à vida da mulher. Em 2012, foi acrescentada uma terceira exceção, os casos de anencefalia fetal.

Coletivo lança informativo on-line sobre os direitos reprodutivos em tempo de pandemia

No entanto, embora o aborto legal previsto em lei deva ser garantido pelo Sistema Único de Saúde (SUS), são muitas as barreiras de informação, administrativo-burocráticas e do próprio sistema de saúde, que impedem o acesso a esse direito, sobretudo porque são atravessadas por preconceitos de gênero, raça e classe, e pela moral religiosa, contrariando o princípio de laicidade do Estado.

Dados levantados por uma pesquisa realizada pela Artigo 19 em 2019 apontam que apenas 76 das 176 instituições indicadas para a realização do serviço de aborto legal no Brasil, de fato, o realizavam até o momento da pesquisa.

Referência no serviço de aborto legal no Brasil, o Hospital Pérola Byington, localizado na cidade de São Paulo, interrompeu temporariamente esse serviço no final de março deste ano. A justificativa para a suspensão dos atendimentos foi a necessidade de reduzir a circulação de pessoas e prevenir o contágio pela Covid-19 durante a internação e o procedimento, indo na contramão das recomendações internacionais de adequação dos atendimentos de saúde ao contexto da pandemia. Após a pressão de movimentos feministas, da população e órgãos de defesa dos direitos das mulheres, o hospital retomou os atendimentos dias após ter suspendido o serviço de aborto legal.

Nesse sentido, em razão do novo coronavírus e da Covid-19, o distanciamento social e as quarentenas no mundo todo, cresce a preocupação em relação à garantia do direito ao aborto, tanto nos contextos de legislações mais restritivas quanto nos contextos de legislações mais permissivas. Embora seja uma questão de caráter urgente e inadiável, muitos países aproveitaram o momento para restringir suas leis, avançando com suas agendas conservadoras e anti-aborto, sob justificativas que pretendiam a proteção da vida de pessoas, mas que nada tem a ver com a proteção da vida das mulheres.

Clínicas, hospitais e outros serviços que atuam na saúde sexual e reprodutiva das mulheres foram fechados por não serem considerados essenciais, mesmo após a recomendação feita no início de abril pela OMS e por outras organizações internacionais no sentido da manutenção desses atendimentos, que incluem o aborto legal e seguro, como essenciais. O Guttmacher Institute e Marie Stopes International, são exemplos de organizações internacionais que apresentaram dados e consequências alarmantes, a curto e longo prazo, em relação à interrupção dos serviços de contracepção e aborto seguro, e da interrupção na fabricação e distribuição de medicamentos e outros insumos destas ordens.

Além disso, adiciona-se o fato de que as mulheres em isolamento social estão expostas a uma maior possibilidade de violência doméstica, como tem sido confirmado pelo aumento considerável do número de denúncias aos órgãos competentes no mundo todo, o que pode resultar em um aumento de gestações indesejadas decorrentes de violações sexuais.

No Brasil, estima-se que sejam realizados milhares de abortos ilegais por ano. De acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto de 2016, o aborto é um acontecimento comum na vida das mulheres brasileiras, ou seja, faz parte da vida reprodutiva de mulheres de todas as realidades sociais, sendo reconhecido através de tratados internacionais como uma questão de direitos humanos, saúde pública, justiça reprodutiva e autonomia. Sendo assim, suas três exceções legais estão totalmente distantes da demanda real pela interrupção de gestações no país, e sua criminalização é uma política que não impede que abortos sejam realizados, mas que lança as mulheres para todos os tipos de consequências implicadas da clandestinidade, afetando mais gravemente as pobres e não-brancas.

Nos dias de hoje, o método medicamentoso (ou farmacológico) é amplamente utilizado pelas mulheres para a indução de abortos ilegais em contextos restritivos. No Brasil, o medicamento mais utilizado é o misoprostol, mais conhecido por um de seus nomes comerciais, o Cytotec. Recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como medicamento essencial para a saúde das mulheres e como método seguro para a interrupção da gestação, o misoprostol tem substituído cada vez mais o uso de métodos inseguros como sondas, venenos, soda cáustica e objetos perfurantes, diminuindo a mortalidade e a internação de mulheres por complicações de aborto no país.

Ainda assim, por ser um medicamento de venda e circulação proibidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), geralmente é vendido a altos preços no mercado ilegal, que muitas vezes expõe as mulheres a outras situações de insegurança decorrentes do contato com o tráfico de drogas. Além disso, as informações seguras sobre seu uso costumam ser escassas, equivocadas e muitas mulheres não contam com uma rede de apoio e acolhimento quando vivenciam o processo. Essas dificuldades influenciam de maneira desigual o desfecho dos itinerários abortivos de mulheres de realidades sociais distintas

No cenário pandêmico em que os serviços de atendimento aos direitos sexuais e reprodutivos não estão funcionando normalmente, em que a fabricação e distribuição de contraceptivos e medicamentos abortivos não estão acontecendo como deveriam e em que o fechamento das fronteiras restringe o deslocamento de pessoas e de mercadorias, fica evidente que as políticas de contenção da pandemia que não levam em conta a necessidade de garantia dos direitos básicos das mulheres, bem como a ilegalidade do aborto em muitos países, podem impactar gravemente na saúde das mulheres do mundo todo.

A negação do acesso a estes direitos afasta as mulheres da sua dignidade, da sua autonomia e de seus direitos humanos, aprofunda as desigualdades de gênero e amplia os projetos necropolíticos globalizados, indicando quem são aquelas que devem viver ou morrer e de quais formas. Em decorrência disso, estima-se que ainda este ano haja um adicional de milhões de gravidezes indesejadas e abortos inseguros pelo mundo, bem como um grande aumento da mortalidade de mulheres, sobretudo nos países considerados subdesenvolvidos. Aborto legal e seguro é um imperativo para garantir o acesso à saúde e aos direitos das mulheres!

*Ana Claudia Delajustine é feminista, psicóloga e mestra em Direitos Humanos. Gabriela Lauterbach é feminista, cientista social e ativista pelo direito ao aborto seguro.

 

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