Jovem foi liberada após policia identificar que ela não cometeu nenhum crime; é o terceiro caso em menos de um mês no Paraná.

Luiza* tem 28 anos e, recentemente, descobriu-se grávida. Uma gravidez indesejada. Desempregada e sem perspectivas de renda, precisou fazer um empréstimo de R$ 1.000 para comprar o Misoprostol, medicamento abortivo, conhecido popularmente como Cytotec. Assim que o carteiro chegou à sua casa com a encomenda de comprimidos comprados pela internet, três policiais que estavam de tocaia apareceram para incriminá-la e a levaram para a delegacia. 

“Quando o carteiro chegou em casa com a encomenda, chegou um carro preto também, e assim que eu peguei o envelope na mão saíram três policiais civis do carro. Um deles começou a falar alto que era policial, perguntou o que era aquilo que eu havia comprado, me mandando abrir o pacote ali na rua mesmo. A mulher com o celular gravando, e os três falando ao mesmo tempo várias coisas que eu nem entendi na hora do nervoso, me mandando abrir logo o pacote. Aí falaram que era para eu pegar um documento que eu ia para delegacia prestar contas disso. Enfim, um terror”, conta a jovem ao Catarinas.

O caso aconteceu em 6 de julho, em Apucarana, interior do Paraná. Ainda que não houvesse nenhuma indicação visual de que, de fato, se tratasse de um medicamento abortivo, policiais a levaram para a delegacia e apreenderam o celular dela e os comprimidos. “Fiquei com medo de ser presa por desacato, por defender minha vontade, o meu direito sobre meu corpo, fiz isso aos prantos na delegacia”, revela. 

Luiza foi liberada após ser interrogada, uma vez que a intenção de realizar o autoaborto não caracteriza o crime previsto no artigo 124 do Código Penal. O delegado responsável pelo caso, porém, lhe informou que ela poderia ser enquadrada no artigo 273, caso não o convencesse de que os comprimidos seriam para uso pessoal e não para comércio. O artigo 273 estabelece pena de 10 a 15 anos a quem “falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais”. Também é passível de criminalização quem importa, vende, distribui ou entrega a consumo produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado. Condutas que a jovem disse que não praticou.

“Quando cheguei lá, fiquei numa sala esperando, enquanto a policial tirava foto das conversas de negociação da compra feita pelo meu celular. Depois veio o delegado e começou falar que eu teria que provar que aquele medicamento não era para comercializar, que a pena era de 10 a 15 anos. Disse que eu teria que agradecer, pois ele estava sendo bonzinho comigo, senão eu já estaria lá dentro (presa). Bons? Eu não pude nem fazer xixi sozinha no banheiro, foi como se eu tivesse matado alguém”, detalha.  

A entrevistada questiona o tom informal adotado pelo delegado durante a inquirição que, segundo ela, foi baseada em julgamento moral.

“O delegado disse que eu tinha repensar a minha vida, brigando comigo como se fosse meu pai ou parente, falei que ele não deveria me julgar. Eu não aceito esse julgamento, sou uma mulher de 28 anos, me sustento, dou meus pulos para sustentar meu filho, aí vem um homem de meia idade dizer o que eu tenho que fazer ou não da minha vida”, indigna-se.  

Como relata, os policiais não explicaram de onde partiu a denúncia. “Eu perguntei várias vezes sobre isso, por que não teria como saber que uma pessoa me enviou um envelope. Além disso, como concluíram que era o remédio? A policial disse que não sabia, que era denúncia que veio de outro estado e que talvez a pessoa que eu comprei já estivesse sendo investigada”.

Luiza saiu da delegacia sem a cópia do documento que lhe fizeram assinar e sem saber ao certo o que vem pela frente. A gestação chegou a oito semanas. Sem condições materiais para sustentar o filho de 9 anos, que vive com a avó paterna, ela se depara com os efeitos da coação à gravidez. “Minha mente está me matando dia após dia desde que descobri essa gravidez”.

O aborto é considerado um direito reprodutivo das mulheres por organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU). A Constituição Brasileira garante o direito à saúde, à informação e ao planejamento familiar sem coação. “Espero estar viva para ver a legalização do aborto no Brasil, para a gente ter o direito, o domínio sobre o próprio corpo”, acrescentou a entrevistada.  

Em junho deste ano, pelo menos outras duas mulheres sofreram o mesmo tipo de tocaia no interior do Paraná, no momento da entrega de correspondência pelos Correios, em um intervalo de uma semana. Os flagrantes ocorreram em São João do Caiuá e o outro em Mariluz; a primeira pode responder por porte de drogas para consumo e a segunda por tráfico de drogas. Os casos revelam a complexidade que envolve as tipificações relacionadas à posse da medicação.

Arte: Rafaela Coelho

Não houve crime

Segundo o delegado chefe da 17ª Subdivisão Policial (SDP) de Apucarana, Marcus Felipe da Rocha, ela não foi autuada em flagrante por não haver caracterização de crime de autoaborto, tampouco de venda de medicamentos. Como informa, a jovem foi “conduzida” à delegacia por portar medicamentos abortivos. “Ela assinou a declaração que prestou na unidade policial, onde narra toda a história, o celular apreendido confirma que ela adquiriu o medicamento. Como o aborto estava em meros atos preparatórios, não houve por parte dela inicialmente nenhuma conduta criminal praticada, mas é óbvio ela comprou de alguém, e isso será investigado”, conta o delegado.

Pesava ainda sobre a jovem a suspeita do crime previsto no artigo 273, o que também foi descaracterizado. “O grande problema era a quantidade dos medicamentos, ela foi apreendida com seis comprimidos. É a primeira vez que eu vejo alguém que quer fazer um procedimento abortivo com essa quantidade, normalmente é um ou dois. O que seria, como falei para ela, um risco para a própria saúde dela”, afirmou o delegado.

Informado por essa reportagem de que o número de comprimidos, no caso de Misoprostol, poderia ser duas vezes maior para a realização do procedimento, de acordo com o protocolo da Organização Mundial de Saúde (OMS), ele observou que a tipificação do crime pode ocorrer independentemente da quantidade de comprimidos. “Se ficasse caracterizado que ela teria isso em posse para a venda, mas como ela comprou para ela mesma, eu não visualizei a prática do crime. Ela falou que adquiriu para usar, ela foi bem sincera […] O celular foi apreendido, pois consta o que ela disse. O celular vai fazer provas a favor dela, por isso foi apreendido. Até para justificar a não atuação dela em flagrante”.

Vendido na farmácia até os anos 1990 para tratamento de úlcera gástrica, o Misoprostol passou a ser regulado ao lado de substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial, com a edição da Portaria 344/1998 pela Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde. A compra e disponibilização do medicamento é permitida apenas em estabelecimentos hospitalares previamente cadastrados na Anvisa.

O medicamento figura entre os essenciais em ginecologia e obstetrícia pela Organização Mundial de Saúde, e é utilizado no Sistema Único de Saúde (SUS) para a realização do procedimento garantido pela legislação. O aborto é legalizado em três situações: em gravidez resultante de estupro, em gestação de risco à vida da mulher, ou ainda quando há diagnóstico de anencefalia fetal. 

Defensora pública aponta violação dos direitos das mulheres 

O Catarinas acionou o Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) da Defensoria Pública do Estado do Paraná. A coordenadora do núcleo, Lívia Martins Salomão Brodbeck, informou que a jovem será atendida em conjunto com a defensoria de Apucarana. “Identificamos que essa mulher está numa vulnerabilidade muito extrema, que há uma violência de gênero”, aponta a defensora.

A defensoria ainda não acessou o documento oficial, mas pela abordagem policial relatada pela jovem, verifica que há violações de direitos. A situação de flagrante preparado, por exemplo, pode levar à nulidade das provas e da ação penal. Uma das primeiras ações da defensoria é encaminhar o pedido para liberar o celular apreendido, já que a posse do aparelho pela polícia dá acesso irrestrito às informações pessoais dela.

“A intimidação, a maneira como ela sofreu violência institucional, obrigaram-na a abrir o pacote, além disso não disponibilizaram o acesso à cópia do documento para que ela consiga orientação jurídica. O que me assusta é que a polícia já tinha acesso à informação de que ela tinha comprado, mas não sabiam se seria para ela ou outra pessoa”, assinala a defensora. 

Segundo explica, a correspondência só poderia ter sido apreendida se a polícia estivesse com um mandado de busca e apreensão. “Caso houvesse indícios na investigação de que se tratava de produto de crime, a polícia deveria ter emitido um mandado de prisão ao juiz. Deveria abrir a carta na delegacia e consignar no auto de apreensão o que constava no envelope. Obrigá-la a abrir o envelope na frente deles também é violação”.

Para a defensora, impressiona o fato de haver uma busca ativa por parte da sociedade para criminalizar mulheres que querem interromper a gravidez.

“A gente precisa entender porque existe essa busca ativa pela criminalização dessas mulheres que tentam fazer o aborto, já que não vemos isso em outros crimes. Geralmente, aguarda-se a notícia do crime e aí se investiga. Nesses casos, isso impressiona, a busca ativa por algo que sequer se sabe se aconteceria”.

A estigmatização das mulheres explica situações de perseguição como essa. “A questão não é existir possibilidade de venda de medicamento, fica muito claro para todo mundo que é um medicamento que ela iria usar sozinha. De fato, expressa como a sociedade vê a possibilidade de a mulher optar pela gestação”, afirma.

Em casos de violações dos direitos das mulheres como esse, o Nudem do Paraná disponibiliza o telefone (41) 99285-8134 para orientações. O núcleo é voltado para casos coletivos, porém vai atender essa jovem por entender que tem possibilidade de repercussão coletiva. Caso fique caracterizada a violência institucional por parte dos policiais, a defensoria poderá entrar com uma ação de indenização por danos morais e materiais contra o Estado. 

Desinformação sobre Misoprostol é generalizada no Sistema de Justiça

Conforme apontou o artigo científico “Em nome da saúde pública: misoprostol e a nova criminalização do aborto no Brasil”, publicado neste ano, a desinformação sobre o Misoprostol é generalizada no sistema de justiça. Em busca nos bancos eletrônicos de jurisprudência, o levantamento identificou 331 processos penais contendo uma ou mais de uma das palavras-chave “cytotec”, “citotec”, “misoprostol”, “medicamento abortivo”. Em apenas 3 deles havia informação qualificada sobre como funciona o medicamento. 

“A maior parte das decisões judiciais é orientada, por um lado, por alta estigmatização do aborto e por outro,  por uma completa desinformação. Atribuem ao medicamento a mortalidade materna por aborto, afirmam que é inseguro e que produz malformação fetal. Essa desinformação pode ser observada  nas práticas de todos os diferentes agentes do sistema de justiça”, explica a pesquisadora Mariana Prandini, coautora do artigo.

Como contextualiza a professora da Universidade Federal de Goiás e cofundadora do Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular, apesar dos inúmeros estudos sobre a eficácia, segurança e confiabilidade do medicamento, a manutenção dele na lista de substâncias controladas da Anvisa é o que sustenta essa rede de desinformação que já dura mais de duas  décadas. 

“Vivemos ainda em 2021 a herança de um processo de disseminação de informação incorreta, não verificada, e não baseada em evidências científicas que teve início antes da edição da Portaria 344. O abuso de autoridade sofrido pela jovem de Apucarana revela o que acontece na ponta. Como se mobiliza um contingente policial daquele tamanho para um evento tão minúsculo? Esse estado policial que se construiu ao redor do Misoprostol é o que faz com que os inúmeros mitos sobre ele continuem circulando e adquiram aparência de verdade”, analisa Alves.  

Como delimita a pesquisadora, os efeitos perversos à saúde de pessoas gestantes não decorrem somente da falta de acesso ao medicamento em si, mas também de sequer terem conhecimento e informação correta sobre ele.

“Essas barreiras de acesso à informação sobre um medicamento essencial à saúde constituem uma grave violação aos direitos reprodutivos, que no Brasil é, paradoxalmente, perpetuada por agentes que deveriam assegurar sua proteção”. 

Aborto pode ser mais seguro que o parto

O primeiro serviço de aborto por telemedicina do país, oferecido no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (Nuavidas HC/UFU), tem sido pedagógico para mostrar como o autoaborto com medicamentos, quando realizado até a 12ª semana de gestação, é seguro e eficaz. “O aborto com Misoprostol é 14 vezes mais seguro do que manter a gravidez até o fim. As possibilidades de sangramento excessivo, que necessite de atendimento, é de 2 a cada 10 mil pessoas. E se houver esse sangramento excessivo, a mulher precisa ser atendida como emergência”, informa Helena Paro, médica ginecologista e obstetra responsável pelo serviço do Nuavidas HU/UFU.  

Conheça o protocolo recomendado pela cartilha “Aborto legal via telessaúde”. 

São necessários doze comprimidos de Misoprostol para realizar o autoaborto até as 12 semanas de gravidez. O efeito esperado é a contração do útero para descolamento do produto do aborto, como ocorre quando o corpo expele espontaneamente. A restrição do medicamento à clandestinidade leva as mulheres a pagarem um preço alto pelos comprimidos, muitas vezes falsificados. Para a médica, a sobrevalorização do preço pelo mercado clandestino é um dos efeitos mais perversos da criminalização do aborto no Brasil.

“O comprimido de Misoprostol que custa 1 dólar em outros países, aqui no Brasil, no mercado clandestino, pode chegar a R$ 200. Também em relação aos médicos que fazem aborto clandestino, eles se aproveitam e cobram R$ 5 mil ou mais para fazer um procedimento que o SUS paga R$ 150 para o hospital, isso com tudo, com médico, equipamento, com tudo”, coloca a médica. 

* Optamos por usar um nome fictício para proteger a identidade da jovem.

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Paula Guimarães

    Jornalista e co-fundadora do Portal Catarinas. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo, pós-graduada...

Últimas