No começo do mês, ao menos quatro vereadoras de diferentes cidades de Santa Catarina foram ameaçadas de morte, após se solidarizarem com a parlamentar Maria Tereza Capra, que teve seu mandato cassado após repudiar um gesto semelhante à saudação nazista. As ameaças via e-mail se estenderam à própria parlamentar destituída. As autoridades ainda investigam o caso, oferecendo pouca ou nenhuma proteção às vítimas de violência política.

“É um momento crítico, que demonstra um enfraquecimento, não só da democracia, mas das nossas instituições enquanto lugares seguros para as parlamentares. Eu tenho um objetivo, que acredito ser comum com as outras vereadoras: estou organizando esta mobilização para que possamos protagonizar o combate à violência contra as mulheres e a violência política, em especial aqui no estado. Não queremos que outras mulheres olhem para esse episódio, se assustem, e não queiram estar aqui”, afirma Giovana Mondardo, uma das vereadoras vítimas de violência do município de Criciúma, sul de SC. 

As legisladoras que receberam e-mails com ameaças e ofensas racistas, misóginas, lesbofóbicas e gordofóbicas foram Ana Lúcia Martins (PT) de Joinville, Carla Ayres (PT) de Florianópolis, Giovana Mondardo (PCdoB) de Criciúma, Maria Tereza Capra (PT) de São Miguel do Oeste e Marlina Oliveira (PT) de Brusque. As cinco têm em comum a trajetória política vinculada à defesa dos direitos humanos, de grupos minorizados como a população negra, periférica, LGBTQIA +, etc. 

A doutoranda e mestre em democracia e direitos humanos pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Juliana Bertholdi, explica que a violência política possui diversos significados dentro do campo do direito, da ciência política e da sociologia. “O que há de central entre esses conceitos é a tentativa ou o objetivo de se tolher a liberdade e agência política de determinado indivíduo ou grupo. Esta violência política pode envolver a agressão física, psicológica, econômica, simbólica ou sexual, sendo especialmente presente contra as mulheres, pessoas negras, povos tradicionais, LGBTQIA+”, complementa. 

As ameaças e ofensas constantes acabam interferindo no trabalho e na vida pessoal das parlamentares, que não encontram respaldo e resposta institucional à altura da violência cotidiana.

“A gente está realizando nosso trabalho, falando por mim, com dedicação, com empenho, sonhando, protocolado, mobilizando. E, de repente, vem isso e nos bloqueia por um período. A gente precisa respirar, parar tudo o que a gente está fazendo de propositivo, para reagir a essas ameaças, para visibilizá-las, para procurar medidas contra elas. É como se a gente tivesse sempre o nosso trabalho interrompido de alguma forma”, lamenta a vereadora da capital catarinense Carla Ayres.  

Na última semana, lideranças políticas e movimentos sindicais se reuniram em um ato simbólico na Câmara de Florianópolis em solidariedade às vereadoras ameaçadas e em resposta à cassação do mandato da Maria Tereza Capra. Três das parlamentares se encontraram com a superintendente regional da Política Federal de Santa Catarina, Aletea Kunde, para pedir proteção, no entanto a instituição ainda não deu retorno. 

Em nota, a Polícia Federal disse estar analisando a existência de ilícitos penais e a sua atribuição para atuação como polícia judiciária da União: “Nesse primeiro momento, trata-se de averiguar se os relatos apresentados constituem crime e, caso existam, se estes são de competência para apuração por parte da PF. Se confirmadas as duas situações, então é que um inquérito será instaurado iniciando de fato as investigações”. Inicialmente, a Polícia Civil disse já ter ouvido as vítimas e estar apurando a complexidade das ameaças para garantir a segurança das parlamentares, no entanto, o Catarinas não teve respostas ao pedido de informações via e-mail sobre o avanço das investigações.

Carla Ayres (PT), Maria Tereza Capra (PT), Giovana Mondardo (PCdoB) e Marlina Oliveira (PT).
Imagem: Assessoria Vereadora Carla Ayres

Sob medo constante, vereadoras encontram morosidade nas respostas institucionais

A violência política de gênero é um dos principais obstáculos à participação das mulheres na política institucional. Em uma pesquisa feita pelo Catarinas nas últimas eleições, mais de 90% das candidatas a deputada estadual e federal afirmaram ter sofrido violência política na corrida eleitoral. Mesmo quando eleitas, muitas enfrentam dificuldades para manter os cargos conquistados. É o caso da vereadora cassada em São Miguel do Oeste, a parlamentar Marlina Oliveira, que sofre um processo de cassação, e Giovana Mondardo, que teve um pedido de cassação protocolado em novembro de 2022, mas com a abertura rejeitada. 

“Toda violência socialmente experimentada será reproduzida nos locais em que há embates públicos, como é o caso da política. O que se identifica é que as violências, nesses casos, se sobrepõem: as mulheres trans, negras, indígenas, LBTQIA+, estão mais suscetíveis às violências. A objetificação e subalternização a que esses corpos, nossos corpos, foram historicamente submetidos, reservados ao espaço privado, acabou por gerar essa resistência tão importante no espaço público, como se não fôssemos suficientes ou adequadas a esses espaços”, afirma a advogada Juliana Bertholdi. 

É justamente dessa forma que a primeira vereadora negra de Brusque diz se sentir. “Nós somos as inadequadas, indesejadas, lidas como brabas e objetos da violência cotidiana”, analisa. A parlamentar destaca a diferença de tratamento com outros colegas parlamentares. “Em Santa Catarina, existem muitos homens progressistas de esquerda atuando como vereadores e, no entanto, nós não temos notícias de que nenhum tenha sido alvo de tamanha violência como nós, as vereadoras”. 

A lei n. 14.192/2021, em vigência desde agosto de 2021, avançou em estabelecer normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher. Na prática, no entanto, ainda faltam mecanismos para fazer valer a legislação e assegurar a proteção das candidatas e/ou detentoras de mandatos eletivos, visto que as violações, inclusive, representam um risco para as suas vidas, como no caso emblemático do assassinato da vereadora Marielle Franco. 

Desde que começou a sofrer perseguições, no dia 2 de novembro, Capra teve que sair da sua cidade por questões de segurança, ficando impossibilitada de exercer o seu mandato e a sua profissão de advogada. “Depois desse dia, eu não saí mais de casa, até o dia 6, quando eu fui para Porto Alegre e fiquei quase noventa dias autoexilada. Mudou radicalmente a minha rotina, a minha vida e o meu trabalho”, conta a vereadora cassada. 

Atualmente, ela recebe assistência do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania. “O Ministério atua firmemente para preservar a integridade física, bem como os direitos civis e políticos da parlamentar. Maria Tereza Capra tem sido atendida no âmbito do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), e está sendo monitorada pela equipe federal, que adotou medidas emergenciais no intuito de mantê-la em segurança”, disse em nota o ministro Silvio Almeida. 

Outra parlamentar ameaçada, Ana Lúcia Martins, de Joinville, também está incluída no Programa. Ela recebeu ameaças de morte e ataques racistas após a divulgação do pleito em 2020, no qual foi eleita como a primeira vereadora negra do município. Mondardo, de Criciúma, também disse que vai entrar no mesmo Programa. Embora o MDH ofereça proteção em alguns desses casos, essa ainda não é uma política institucional para parlamentares que sofrem com violência de gênero, a proteção é uma alternativa para não deixar as defensoras de direitos humanos desamparadas. 

Em nota enviada ao Catarinas, o MDH informou que duas das parlamentares recebem atendimentos da equipe técnica federal do PPDDH, que envolvem requerimento de escolta, análise de risco e interlocução com órgãos de segurança pública e de justiça. Nos demais casos, ainda não se deu a inclusão formal das vereadoras, mas a equipe está em diálogo para definir os atendimentos.  

“Sobre a inclusão no PPDDH, importa explicar que os casos obedecem a um procedimento, que conta com etapas de verificação dos requisitos (como o nexo de causalidade entre a ameaça sofrida e a ação em defesa dos direitos humanos) e decisão pelo Conselho Deliberativo. Nesse sentido, ainda não se deu a inclusão formal das vereadoras no Programa. Apesar disso, em situações graves, a ausência desta inclusão formal não impede que medidas emergenciais sejam tomadas, como tem sido feito nos casos mencionados”, esclarece o texto.

A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, repudiou a cassação e as ameaças feitas às vereadoras nas suas redes, também participou do ato simbólico organizado pelo Movimento Humaniza Santa Catarina em apoio às parlamentares. Em nota, a assessoria do Ministério informou haver a intenção de  estabelecer uma mobilização social incitada pelo Ministério, como oitivas, audiência pública no Congresso e uma agenda em Santa Catarina, liderada pela ministra Cida Gonçalves e sua equipe de governo. 

“A ministra e a secretária de articulação institucional, ações temáticas e participação política do Ministério, Carmen Foro, também receberam na segunda-feira (13) integrantes dos Ministérios da Justiça e Segurança Pública, Igualdade Racial e Direitos Humanos e Cidadania, com a presença da vereadora cassada Maria Tereza Capra e articulação da ex-senadora Ideli Salvatti, para pensarem juntos em ações do Governo Federal pelo combate e prevenção à violência política e propõem a criação de um grupo de trabalho voltado ao tema”, informou. 

Para Carla Ayres (PT), a primeira vereadora lésbica a assumir um mandato em Florianópolis, desde o assassinato da Marielle Franco, o maior avanço que tivemos foi a lei que criminaliza a violência política de gênero. No entanto, ela lamenta a morosidade das instituições ao reagirem a essas situações. Há um caminho muito longo para que abram investigação, para que ouçam a gente, para que respondam, para que apresentem soluções. Isso vai cansando cada uma de nós. Vai fazendo com que a população que, no primeiro momento, se indigna com tudo isso, vá entrando novamente no cotidiano corriqueiro de todos os indivíduos e vá esquecendo, de alguma forma”, fala.

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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