No quinto dia da Campanha 16 dias de ativismo pela não violência contra a mulher, em 30 de novembro, a primeira turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que aborto não é crime quando praticado até os três primeiros meses de gestação. Com base em argumentos forjados nos movimentos feministas, o ministro Luis Roberto Barroso trouxe à tona em seu parecer a face da desigualdade de gênero por trás da criminalização. Foi simbólico para a luta pelos direitos sexuais e reprodutivos no país.

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No dia seguinte à decisão, porém, o presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia (DEM-RJ) apressou-se em criar uma comissão para revertê-la e o deputado federal e pastor evangélico João Campos, protocolou um requerimento com caráter de urgência para apreciação do Projeto de Lei (PL) 478/07, batizado como Estatuto do Nascituro, que privilegia os direitos do feto desde a concepção. Maia afirmou que não cabe ao judiciário legislar.

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Para a cientista política e jornalista Télia Negrão, no entanto, é dever do órgão máximo da justiça brasileira garantir os direitos fundamentais das mulheres – sonegados historicamente por uma sociedade patriarcal, machista e misógina. Coordenadora do Projeto de Monitoramento da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação à Mulher (CEDAW) da ONU e do Coletivo Feminino Plural, ela lembra que foi por meio de decisão do supremo, por exemplo, que o aborto de feto anencéfalo passou a se permitido“Não é possível conviver com mortes evitáveis ao longo dos tempos. Temos que ultrapassar essa etapa para um momento em que mulheres possam exercer a escolha como direito de cidadania”, afirma em entrevista exclusiva.

Cerca de 800 mulheres recorrem ao aborto clandestino e 200 morrem ao ano no Brasil, segundo estima a Organização Mundial de Saúde (OMS).

Catarinas: Como você avalia essa decisão da primeira turma do Supremo Tribunal Federal de não criminalizar o aborto nos três primeiros meses de gestação?
Télia: O judiciário brasileiro tem tido posições bastantes controversas. Ora apresenta-se como poder mais conservador, ora com poder de assegurar direitos importantes. Nessas últimas três décadas, o poder executivo diz que o aborto é um problema do legislativo. O legislativo barra todas as tentativas de fazer-se qualquer avanço. Em 2005, o projeto tripartite, encaminhado pelo primeiro governo Lula, foi enterrado e com ele todas as possibilidades de avanço da matéria, graças ao relatório do então deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ). Hoje são mais de 30 projetos contra os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.

Catarinas: O presidente da Câmara dos Deputados já se posicionou contrário à decisão do STF, afirmando que tal poder não tem competência para legislar. Em sua opinião, o judiciário legislou ao decidir pela não criminalização?
Télia: O STF ocupa um lugar importante para garantir o direito das mulheres de viverem – estão em jogo a vida, a dignidade e a saúde das mulheres por tomarem decisão reprodutiva sem nenhuma segurança no campo da saúde. O STF tomou a decisão que tinha obrigação, em defesa da vida e dignidade mulheres. É dever do supremo interpretar a realidade brasileira que está completamente defasada em relação ao ambiente internacional, levando em conta que grande parcela dos países já legislaram sobre a interrupção até as doze semanas.

Catarinas: O parecer do ministro reafirma a necessidade de garantir os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Ele cita inclusive tratados internacionais, dos quais o Brasil é signatário, que foram marcos para esse campo. A decisão vai ao encontro das pautas construídas pelos movimentos?
Télia: O movimento pela descriminalização luta há 30 anos para reafirmar a identidade dos direitos sexuais e reprodutivos e assegurar a possibilidade das mulheres de exercerem sua autonomia, garantir integridade física e psíquica e observar a igualdade de gênero. A campanha 28 de setembro pela Descriminalização do Aborto alerta para as condições nas quais o aborto é realizado na América Latina e Caribe, cujos países apresentam os piores dados relativos ao aborto inseguro em todo o mundo. Segundo a campanha, a gravidez indesejada traz sofrimentos psíquico e físico que se aproximam da tortura. Nesse sentido, é uma das violações dos direitos fundamentais e da dignidade humana. A decisão vai ao encontro de demandas internacionais que foram interpretadas e construídas pelos movimentos de mulheres, incluindo a Rede Feminista de Saúde, da qual faço parte, e de maiores garantias de direitos, quase na contramão desse ambiente de violações que nós temos vivido no Brasil.

Catarinas: Barroso afirmou que o ônus total da gravidez fica por conta da mulher, e só haverá igualdade plena se ela decidir pela manutenção ou não. Podemos dizer que obrigar uma mulher a manter a gravidez (até os três primeiros meses), além de inconstitucional, é imoral?
Télia: Vivemos em uma sociedade tão desigual em termos de gênero, que posições de poder masculino e patriarcal predominam. A manutenção faz parte de um sistema de controle das mulheres, a partir do próprio corpo, da sexualidade, da reprodução, da tentativa de manter uma enorme parcela da população subjugada a um tipo de pensamento que está por dentro das igrejas e religiões, em um sistema de disciplinamento. Não que todas as igrejas sejam conservadoras e se coloquem contra os direitos.

Catarinas: Os fundamentalismos religiosos têm contribuído para o não avanço dos direitos fundamentais das mulheres?
Télia: Os fundamentalismos religiosos no Brasil e na América Latina têm sido responsáveis pela violação de direitos fundamentais, como o direito à vida das mulheres e possibilidade de se constituírem como sujeitos humanos em total possibilidade de dignidade. Nessa perspectiva, consideramos a decisão do STF como avanço importante, mas teremos que lutar muito para mantê-la. Haverá uma disputa no campo político e ideológico.

Catarinas: É preciso ir além da descriminalização?
Télia: Se a descriminalização do aborto até as 12 semanas ocorrer, quem vai assumir a responsabilidade para garantir que a interrupção da gestação ocorra em condições de saúde pública? Isso significará um trabalho no campo das políticas públicas. Existem países que tiveram o aborto legalizado, mas não garantiram que fosse realizado dentro do sistema de saúde. No Brasil, o aborto é quase descriminalizado. Quem pode pagar uma clínica ou comprar medicamento – que é caríssimo – tem acesso ao aborto seguro. Além de tudo, configura-se como problema de injustiça social. É preciso que o sistema de saúde esteja adequado com normativas para que as mulheres sejam acolhidas em serviços que apresentem atendimento acolhedor, respeitoso e adequado, de modo que não sofram violência institucional, pela qual muitas vezes passam no serviço de aborto legal.

Catarinas: Como mobilizar a sociedade para a defesa da legalização do aborto?
Télia: Acompanho esse temos há cerca de 30 anos no congresso. Poucas e poucos se encorajam a assumir a temática, pois trata-se de uma matéria tabu, estigmatizante de quem a toca. Coordenei estudo patrocinado sobre aborto em quatro países da América Latina e Caribe. Analisei como o tema dos direitos sexuais e reprodutivos era tratado em jornais do Brasil e como as pessoas envolvidas se sentiam. Muitas se sentiam demonizadas e passavam a ser vistas como violadoras de direitos, graças ao discurso fundamentalista que defende a vida desde a concepção.

Catarinas: Há esperanças de tratar a legalização no Congresso diante de tantos projetos contrários?
Télia: Nós teremos dificuldades para tratar desse tema no Congresso. Frente a tantas agendas difíceis, não será tratado com prioridade. Mas tenho esperanças que possamos evitar que passe pelo congresso. O tema precisa ser tratado como matéria de saúde pública, de dignidade humana e justiça social como foi no voto do ministro.

Se tivéssemos um governo sério, a questão seria tratada pelo Ministério da Saúde como saúde pública, tendo em vista a morbimortalidade, que é o risco das mulheres morrerem e terem consequências sobre a saúde. Porém, isso dificilmente vai acontecer, já que o ministro mostrou-se contrário até mesmo aos casos garantidos por lei. Quanto mais esse tema ficar no judiciário, mais teremos possibilidades de manter esse ganho que é muito importante.

Catarinas: O Brasil é o quinto país em taxas de feminicídio. Legisladores de outros países concebem a criminalização do aborto como uma face da morte de mulheres em função da desigualdade de gênero. Você concorda com essa visão?
Télia: Criminalização do aborto é criminalização das decisões reprodutivas da vida das mulheres, na medida em que são impedidas de tomar decisões e isso as leva a um caminho de risco a sua vida. Considero válida essa colocação, claro que não queremos que esse tema seja tratado por essa abordagem.

Mas, por outro lado, todas as vezes que vemos a vida de uma mulher em risco pela omissão do estado e criminalização, promovemos o feminicídio.

Catarinas: Há consenso nos movimentos sociais pela legalização?
Télia: A temática do aborto não é de consenso nos movimentos sociais. Todos os temas relacionados à desigualdade de gênero são difíceis. Nós fazemos uma disputa muito forte de uma pauta e para isso precisamos de mais forças capazes de sair para rua . É uma agenda em especial da juventude, das mulheres e homens jovens que têm comprometimento com os direitos sexuais e reprodutivos.

É uma questão de toda sociedade, mas as mulheres que entram em idade reprodutiva precisam ser despertadas para a compreensão de que tudo que conseguimos foi com muita conquista. Nada chegou ao nosso colo sem que tivéssemos lutado muito. É preciso que essas vozes que os jovens levam para as ruas ganhem patamar de maior organicidade e permanência, que possam assumir lutas difíceis e históricas como essa.

Catarinas: É preciso dar algum passo para trás para poder avançar?
Télia: Não é hora no Brasil de abrir mão de nada. Temos que manter altivamente a nossa agenda pensando que as mulheres têm sido as grandes vítimas de um sistema patriarcal, machista, misógino que as coloca frente a frente com a morte. Temos que mudar essa história!

 

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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