Audiência de conciliação termina sem avanços e revela atuação suspeita da Funai
Na última quarta-feira (16), foi realizada uma nova audiência de conciliação para dar encaminhamento ao processo judicial que determina a construção do Ponto de Cultura e Casa de Passagem Indígena em Florianópolis.
A prefeitura manteve sua posição contrária ao acordo inicial, feito em 2018, de realizar a obra no terreno ao lado do inativado Terminal Integrado do Saco dos Limões (Tisac). Em contrapartida, ofereceu um terreno no bairro Monte Verde, que foi considerado inapropriado pelos representantes indígenas presentes.
Sadraque Lopes, presidente da comissão da Casa de Passagem, defendeu a permanência das famílias indígenas no Tisac. “O terminal está sendo bom, porque muitas vezes estivemos pousando embaixo de um viaduto, de uma árvore. Ali é um lugar ótimo para nós, porque quase sempre viemos da nossa aldeia somente com a passagem do ônibus, chegamos na Rodoviária sem dinheiro para pegar um ônibus ou um táxi, e vamos a pé para o Tisac”, explica o indígena da etnia Xokleng.
Em entrevista ao Catarinas, Analúcia Hartmann, a Procuradora da República que acompanha o processo, explica que todas as propostas do executivo de alteração da área para a construção definitiva do espaço estão longe do Centro da cidade.
“A área mais próxima de todas, que o município insiste em oferecer, é a do Monte Verde, que equivale ao triplo do trajeto que eles fazem entre Centro e Saco dos Limões. Além disso, este terreno que estão oferecendo fica nas margens da SC-401, a estrada estadual mais perigosa da Ilha, não tem cabimento”, analisou.
Ao longo da audiência, a Procuradora recordou que decisão sobre a construção da Casa de Passagem definitiva no terreno ao lado do Tisac, assim como a construção do Centro Cultural no local do terminal desativado, foi consenso de um grupo de trabalho que contou com a participação de diversas secretarias da prefeitura. “Além disso, o terreno do Monte Verde tampouco está no zoneamento apropriado”, acrescentou.
Prefeitura aponta impedimentos legislativos relacionados ao Plano Diretor
De acordo com o advogado Rafael Poletto dos Santos, representante do município, é impossível o cumprimento do acordo feito inicialmente, porque o terreno em questão está em uma área marinha. Esta condição requer alterações no Plano Diretor, instituído pela Lei complementar nº 482 em 2014, que permitam edificações no local.
“Quando voltamos atrás é para que não ficássemos pendentes a uma alteração na lei e para que pudéssemos avançar em um acordo que dependesse somente do executivo”, alegou o advogado. Mas, a região do Saco do Limões e da Costeira conta com algumas construções aprovadas pelo município, como é o caso da Creche Municipal Hassis.
Para a procuradora Analúcia Hartmann, o Plano Diretor determina que os terrenos de marinha não são edificantes, porém permite exceções. “Inclusive, existem muitos locais em terreno de marinha que o município tem concedido alvarás”, assegura.
O juiz Marcelo Krás Borges da 6ª Vara Federal da Capital, mediador da audiência, por sua vez, advertiu a gestão municipal sobre a função social da Casa de Passagem, que vai oferecer condições dignas de permanência para as famílias indígenas.
“Eu não vejo nenhuma violação ao código da cidade, porque o artesanato indígena também é cultura. É uma atividade cultural em uma área verde de lazer. A interpretação da lei não pode ser tão restrita que prejudique e deixe os indígenas em uma condição indigna”, argumentou Krás.
Funai apresenta posicionamento contrário aos indígenas
A Fundação Nacional do Índio (Funai), diferente do que se espera da sua atuação, através da funcionária Natália Dias, mostrou-se totalmente alinhada com o posicionamento da prefeitura.
Em 3 de março, quando estava agendada uma inspeção judicial no antigo Tisac, representantes da Funai – incluindo Natália Dias – convidaram algumas lideranças indígenas para visitar o terreno do Monte Verde. Nesta ocasião, ela afirmou ter coletado assinaturas em concordância com a construção da Casa naquele local.
Esta versão foi contestada por Pique Weitcha. “Quem tem que dizer se o terreno é bom ou ruim, são os indígenas, não a Funai. Temos procurado o Ministério Público Federal para fazer estas demandas, justamente porque a assistência por parte da Funai tem sido falha, não estamos sendo ouvidos”. Pique é filho de indígenas das etnias Kaingang e Xokleng, e tem familiares vivendo no antigo Terminal.
Leia mais
O Ministério Público Federal (MPF) criticou a atuação do órgão indigenista por entender estar havendo uma atuação paralela e contrária aos interesses dos indígenas por parte de quem deveria assisti-los. “É uma situação delicada do ponto de vista judicial, já que os indígenas foram levados e convencidos, sem a devida assistência, a aceitar uma solução que talvez não seja a melhor para eles”, declarou Hartmann em entrevista.
As duas lideranças, que teriam assinado o tal documento, não são alfabetizadas em português. A Funai, tampouco, apresentou a documentação nos autos do processo.
Rodrigo Majewski, representante jurídico da Funai, garantiu que irá juntar os documentos ao processo e lamentou: “Essa afirmação de que estamos manipulando os indígenas é extremamente grave, somente estamos procurando mostrar para os indígenas opções garantidas”.
Melhorias na estrutura do Tisac é prioridade frente à falta de acordo
Enquanto o impasse sobre o terreno da Casa de Passagem Indígena não é resolvido, a adequação do abrigo provisório no terminal inativo é urgente.
Em inspeção judicial, realizada no local no início de março, foi constatado que a Prefeitura de Florianópolis vem descumprindo o Termo de Compromisso – assinado em outubro de 2018 -, além de ordem judicial – de junho de 2021-, que exigem melhorias na estrutura do Tisac para oferecer uma estadia digna para as famílias.
De acordo com o MPF, a realidade no local é grave, principalmente no que se refere à falta de saneamento. Há uma fossa aberta exalando mau cheiro, problemas elétricos, os chuveiros possuem somente água fria, dois banheiros atendem toda a comunidade, não há manutenção da vegetação do terreno, as barracas de lona rasgam com as intempéries do tempo.
Um grupo de apoio à comunidade indígena, formado por moradores do bairro e diferentes defensores dos direitos indígenas, promoveu alguns ajustes na estrutura do local ao longo destes anos. Já a gestão municipal não comprovou nenhuma ação, mesmo com a liminar mantida pelo Tribunal da 4ª Região e uma multa que segue aumentando.
Diante da falta de avanços significativos no acordo, o juiz anfitrião Marcelo Krás Borges questionou os representantes do município:
“Por que a lei tem que ser interpretada para considerar eles pessoas inferiores? Por que dar um tratamento tão indigno aos indígenas? Por que eles não podem ser considerados pessoas humanas que precisam de condições dignas?”.
“E são considerados”, respondeu prontamente o vice-prefeito Topázio Silveira Neto (ex-Republicanos). A gestão municipal se comprometeu a fazer as melhorias conforme o Termo de Compromisso, no entanto insistiu na área do Monte Verde como solução definitiva para a construção da Casa de Passagem.
“Infelizmente, a prefeitura ainda não se coloca com uma preocupação real pela estadia digna. O atual prefeito, Gean Loureiro, parece estar com um escudo de racismo e preconceito. Porém, esperamos avançar com a entrada do vice-prefeito Topázio, que esteve presente na audiência”, afirmou a assessora parlamentar, professora e indígena Ingrid Sateré Mawé em entrevista ao Catarinas.
O atual prefeito Gean Loureiro (União Brasil) anunciou sua renúncia ao cargo para o fim de março, com o objetivo de concorrer ao governo do estado.
Os representantes indígenas presentes esperam que a prefeitura cumpra, por fim, com o acordo de melhorar o espaço no bairro Saco dos Limões.
“Nós não vamos mais desocupar o terminal até ser construída a Casa de Passagem. Eu vou permanecer nesta luta até que a Casa esteja pronta. Nem que leve cinco, dez, vinte anos.”
declarou Sadraque Lópes ao reiterar o desejo da comunidade indígena de permanecer no local onde estão.
Mobilidade indígena para o litoral é histórica
O deslocamento de grupos indígenas do interior dos três estados do Sul do Brasil para as cidades do litoral de Santa Catarina, incluindo Florianópolis, é uma tradição observada desde a década de 1960.
Esse movimento ocorre principalmente durante a temporada de verão, quando há um incremento do turismo na região, e os povos indígenas aproveitam para vender seus artesanatos e garantir o sustento das suas famílias.
Ao longo dos anos, na Capital, era comum vê-los em locais improvisados – embaixo de viadutos, pontes e marquises, em terrenos baldios, na rodoviária – porém desde 2016, eles deram início à ocupação do terminal inativo.
Depois de muita luta por uma estadia digna, o MPF ajuizou uma ação civil pública contra a União, a Funai e o Município de Florianópolis, em 2016, demandando a construção de um local de acolhimento e a manutenção provisória do atual espaço da ocupação. Em 2018, a Justiça determinou a construção da Casa de Passagem no terreno ao lado do Tisac, que foi cedido pela União, porém a gestão municipal permanece inerte.