A prefeitura de Florianópolis não atendeu à decisão judicial, revelando o preconceito da gestão pública.
Neusa Votã Lopes, 54 anos, se desloca da Terra Indígena Votouro, do Povo Kaingang, região noroeste do Rio Grande do Sul, para vender artesanato na capital catarinense desde 1999. Acompanhava a sua mãe, que alugava uma casa no bairro Monte Cristo na temporada de verão. Com 101 anos, a mãe de Neusa não pode mais fazer esse deslocamento, mas a tradição do artesanato com a marca kadiokre, o grafismo que representa a identidade cultural da família, é repassada ainda hoje por elas para filhas e netas.
Neusa lembra que o movimento pela Casa de Passagem Indígena se organizou após a morte do menino Vitor, de dois anos, assassinado no colo da mãe em Imbituba, Litoral Sul de Santa Catarina, em 30 de dezembro de 2015.
“A gente começou a pegar firme logo que o Vitor foi assassinado no colo da mãe na rodoviária. Queremos um lugar seguro para as crianças, é uma reivindicação das mães. A casa de passagem seria um destino certo para as mulheres virem com as crianças, teria mais segurança para o trabalho”, comenta a Kaingang.
Segundo a entrevistada, a maioria das artesãs são mulheres que repassam seus conhecimentos culturais tradicionais de uma geração para a outra por meio do convívio familiar dentro das Terras Indígenas, e os homens dão o apoio na retirada de taquaras específicas para a confecção do artesanato nas áreas de mata. É uma atividade coletiva que representa os grupos familiares e toda a comunidade.
No Brasil, estima-se que haja mais de 305 diferentes povos, falantes de mais de 74 línguas, com direitos originários assegurados pela Constituição Federal de 1988. Por todo o território nacional esses povos têm o direito reivindicar uma área de terra, inclusive em Florianópolis, que historicamente inviabiliza as desigualdades. O Povo Kaingang está reivindicando uma Casa de Passagem Indígena para gerar renda pela venda de artesanato, para que seja um lugar seguro de acolhida e para que outros os Povos Indígenas também possam utilizar o espaço e vender os seus artesanatos.
Neste mês de luta dos Povos Indígenas, o #AgostoIndígena, ocorre uma programação especial de feiras para comercialização de artesanato, todos os sábados e domingos, das 8h às 18h, no Ponto de Cultura e Casa de Passagem Goj Ty Sá (antigo Terminal de Integração Saco dos Limões/Tisac). Todos os indígenas já estão vacinados contra a Covid-19. Uma rifa foi organizada para contribuir com a participação do grupo no Acampamento Terra Livre e na 2ª Marcha das Mulheres Indígenas que acontece em Brasília, de 7 a 11 de setembro. Será um encontro de muitos povos que irá discutir as pautas do Movimento Indígena na atualidade.
A reivindicação da Casa de Passagem Indígena em Florianópolis
Em 2016 é dado início à ocupação do Terminal de Integração Saco dos Limões (Tisac) por indígenas Kaingang dos três estados do Sul do Brasil. Em 2017, após um pedido da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), apoiado pela Advocacia-Geral da União (AGU), o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) determinou que os indígenas podem continuar alojados no local em condições dignas com o apoio das leis do Estado. Em 2018, a Justiça determinou que a Casa de Passagem Indígena fosse construída em terreno pertencente à União.
Entre idas e vindas dos indígenas no Tisac, um grupo de trabalho se formou a partir do Ministério Público Federal (MPF), que desenvolveu um projeto para a construção de um Centro Cultural Indígena para diferentes povos a ser instalado no terreno ao lado do antigo Tisac. Mesmo com recursos não saiu do papel. Desde lá, podemos dizer que há uma articulação da discórdia por apoiadores da atual gestão da prefeitura municipal em um jogo de poder, pois na capital ainda não há um espaço adequado para acolher essas pessoas, colocando-as em uma situação de vulnerabilidade mesmo três anos após a decisão judicial. A Prefeitura Municipal está irredutível quanto à proposição e recorreu mais uma vez na esfera judicial para tentar repassar a responsabilidade a outros órgãos, mas a decisão já foi deferida.
Diante do cenário, em 11 de agosto deste ano, foi apresentada à Câmara Municipal de Florianópolis, uma emenda que propõe a construção da Casa de Passagem Indígena pela Lei de Diretrizes Orçamentarias (LDO), mas não foi aprovada. Os parlamentares que votaram a favor foram a Coletiva Bem Viver (Psol), Maryanne Mattos (PL), Maikon Costa (PL), Marcos José Abreu/Marquito (Psol), Afrânio Boppré (Psol) e Carla Ayres (PT). Muitas apoiam a causa indígena na capital e integram o grupo de apoio ao Ponto de Cultura e Casa de Passagem Goj Ty Sá.
Segundo Cintia Mendonça, da Coletiva Bem Viver (Psol), a FUNAI vem atuando de forma desfavorável, pois não acompanha o caso de maneira adequada e o único auxílio que essas pessoas estão recebendo, hoje, é do grupo de apoiadores do qual faz parte.
“Esses indígenas já foram recebidos pela guarda municipal, com ameaça de despejo, tensionamento físico inclusive. A FUNAI contribuiu muito pouco, e encaminhou uma denúncia para a prefeitura fortalecendo o racismo institucional, atuando de forma contrária. A prefeitura não está dando nenhum auxílio. Temos uma rede de apoiadores com mais de cem pessoas e a comunidade local do Saco dos Limões está contribuindo com cobertores, colchões, alimentos, cestas básicas. É uma rede ampla da sociedade civil”, diz a covereadora.
Prefeitura Municipal de Florianópolis descumpre prazo judicial
A prefeitura de Florianópolis recebeu do juiz Marcelo Krás Borges, da 6ª Vara Federal de Florianópolis, um prazo até 9 de agosto, Dia Internacional dos Povos Indígenas, para adequar o espaço do antigo Tisac e acolher os indígenas. O prazo não foi aceito, considerado ou cumprido pela gestão da prefeitura, mesmo com uma multa chegando a R$ 100 mil.
Em nota enviada para o Portal Catarinas, a Prefeitura Municipal de Florianópolis reitera a sua interpretação de desobrigação perante a Justiça, atuando para tumultuar o processo legal. De acordo com as informações da nota, “a Procuradoria Geral do Município entrará com recurso para discutir a republicação da liminar”.
A construção da Casa de Passagem Indígena no terreno público da União, no antigo Tisac, já está aprovada desde 2018 pelos órgãos competentes, e por um grupo de trabalho que envolveu os indígenas, Ministério Público, as secretarias de governo e o próprio prefeito Gean Loureiro (DEM), que propôs o investimento de R$ 2 milhões na construção. De acordo com a apuração há registro formal. A prefeitura não esclarece a decisão. A partir de declarações pessoais o prefeito confunde a opinião pública e desconsidera a responsabilidade local em território urbano.
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Com a mudança no contexto político, ele atua para retardar a construção do espaço, adiada a cada recurso interposto, denominado juridicamente de intempestivo. A decisão da construção da Casa de Passagem Indígena é definitiva. Segundo apuração, há um jogo político, que se traduz em outros planos para a área em disputa ou coloca o orçamento público como responsabilidade da próxima gestão da Prefeitura Municipal de Florianópolis. A ação parece se alinhar à política nacional do “nem um centímetro a mais de Terras Indígenas” ou “nem um real para os povos indígenas”, propagada pelo governo genocida de Bolsonaro (sem partido).
Em Audiência Pública realizada este ano na Câmara Municipal de Florianópolis, o vereador representante da bancada do governo, Renato Geske (PSDB), afirmou que é favorável às melhorias provisórias no antigo Tisac, até que seja construída a Casa de Passagem, mas na votação da emenda se colocou contra, votando “não”.
“Até hoje, desde de o governo da Angela Amim quantos anos já se passaram? Durante quase 20 anos não teve utilidade. Eu entendo que é uma construção que já está pronta, basta adaptar. Isso é um marco para o País dentro da nossa capital. Realmente ele (o prefeito) tem sofrido pressões de todos os lados. Eu entendo que particularmente ele não se oporia, mas índio não dá voto e ninguém levanta a bandeira”, afirma o parlamentar.
A atuação do Ministério Público Federal no caso
Em entrevista ao Portal Catarinas, a Procuradora da República, Analúcia Hartmann, afirma que, em relação à decisão sobre as melhorias no espaço ou a construção da Casa, a última medida tomada pelo judiciário foi a litigância de má-fé direcionada à Procuradoria Geral do Município, pois o juiz já determinou que a prefeitura cumpra a decisão. “Já foi julgado, já temos uma decisão e estamos em fase de execução. Isso não se discute mais”, enfatiza.
De acordo com Hartmann, foi realizada a verificação legal de um local que seria mais adequado para acolher os indígenas em um processo coletivo em que a prefeitura sempre participou, inclusive indicando melhores soluções. “O local tem amplos benefícios, os indígenas se deslocam a pé porque pegam ônibus para as praias para vender artesanato”, afirma a procuradora. A entrevistada lembra a situação de vulnerabilidade vivida por esses indígenas na capital e diz que foi encontrada uma solução possível, adequada às reivindicações.
“Os indígenas estão em uma situação horrível, porque a gente ainda não construiu a casa de passagem. Tenho a impressão que pode ser uma questão política mesmo. E quando chega na questão política não temos como avaliar”, analisa.
Clique aqui e assista à Audiência Pública na íntegra, organizada pelas integrantes da Coletiva Bem Viver (PSOL), com o apoio de parlamentares. Assista também ao Seminário Cidade e Cidadania Indígena: territórios, direitos e bem viver, realizado pelo Núcleo de Estudos de Populações Indígenas (NEPI), vinculado ao Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), clicando aqui.
O racismo institucional e a pressão dos interesses econômicos são revelados
Por outro lado, há uma pressão da Associação de Moradores do Saco dos Limões e pessoas da comunidade em apoio à posição da prefeitura pelo racismo institucional, fomentando discursos de ódio e indicando lugares impróprios como possibilidade de alojamento para despejar os indígenas do antigo terminal.
Elisa Jorge, integrante do Movimento Nacional de Luta por Moradia, conta que se aproximou da luta dos Kaingang, em 2016, quando os indígenas passaram a se deslocar até Florianópolis para a venda de artesanatos. O desmonte das políticas públicas para os Povos Indígenas, incluindo o corte de cestas básicas pelo governo de Michel Temer, os levou a apostar no comércio turístico como alternativa para a geração de renda.
“O Temer cortou as cestas básicas que estavam disponíveis para todas as aldeias, não importava a etnia. Ele resolveu fazer economia causando fome. Com isso, um maior número de indígenas começou a vir para Florianópolis e eles ficavam em geral no Morro da Caixa D’ Água, no continente pagando aluguel, uma situação caótica. A alternativa deles era ficar debaixo do viaduto ou ficar na rua, e foi isso que a gente presenciou”, relata Elisa.
O movimento deu apoio aos indígenas na luta pela Casa de Passagem. Segundo a militante, o Tisac ficou abandonado durante anos e foram feitos mutirões para adequar o espaço para a moradia, ampliando as redes de solidariedade por justiça social e redução de danos, inclusive para o enfrentamento político contra a prefeitura. “Cada vez mais a prefeitura mostra a sua cara principalmente com o Gean no seu segundo mandato, com a intenção de tirá-los dali e escondê-los. Mas a gente acredita que pelas ações coletivas vamos fazer a transformação dessa sociedade”, ressalta Elisa.
O grupo de apoio da comunidade está fazendo a diferença
Por entender a urgência da situação e o descaso da Prefeitura de Florianópolis durante os últimos anos, um grupo de apoiadores se organizou por meio da Petição Floripa é Terra Indígena, para contribuir de maneira efetiva com esses povos na área urbana. Hoje, cerca de 70 pessoas vivem no Ponto de Cultura e Casa de Passagem Goj Ty Sá (antigo Tisac). Com a falta de apoio do poder público municipal a coalizão dos movimentos sociais de solidariedade por justiça, se faz urgente durante a pandemia.
Conforme Martha de Lima, apoiadora da comunidade do Carianos e integrante da Rádio Campeche, algumas ações foram criadas para apoiar as famílias como uma rede de apoio escolar para crianças indígenas e oficinas de prática de artesanato da cestaria indígena, que são ministradas no local pelos próprios indígenas. As atividades integram uma programação até dezembro. As feiras de artesanato também acontecem no local. A visita dos apoiadores é cotidiana a partir de uma agenda de visitas organizada por integrantes desde janeiro deste ano.
“Foram feitos vários mutirões para ligar a luz, fornecer água, montar barracas e esse movimento se estendeu para conseguir alimentos, dar suporte e comparecer no local, protegendo e apoiando essas pessoas do posicionamento da prefeitura. Contribuímos para que tivessem atividades no local e não precisassem sair, foi onde criamos a feira de artesanato junto com a comissão de mulheres e as oficinas, assim as mães podem ficar com seus filhos em um lugar mais seguro”, ressalta.
Bianca Soleiman, mãe e uma das integrantes do grupo de apoio aos indígenas, organizou um ponto de venda de artesanato na garagem da casa em que mora para poder contribuir com a renda das pessoas que estavam na Goj Ty Sá. Ela estuda a questão da “branquitude” e se sente no dever de contribuir como parte da rede de apoio. Mobilizou uma rede de mães no Sul da Ilha para conseguir as doações. “Esse projeto de Florianópolis ser a capital mais europeia do Brasil é parte de uma limpeza étnica que acontece na ilha desde o começo do século. É uma vergonha o que acontece. Precisamos entender a dinâmica de mobilidade dos Povos Indígenas”, declara.
Segundo Inajara Kaingang, a expressão escolhida para ser o nome do Ponto de Cultura e Casa de Passagem Goj Ty Sá, significa em Língua Portuguesa “água salgada”. “A nossa organização tem sido muito boa, um ajuda o outro e trocamos ideias juntos. O nosso objetivo é que a prefeitura venha a construir a casa de passagem, para quando nós chegarmos aqui em Florianópolis já saber onde ficar”, explica.
Apoie o Povo Kaingang. Apoie os Povos Indígenas. Apoie a construção da Casa de Passagem Indígena. Compre artesanato indígena. Participe das oficinas.
*Agradecemos a todas as pessoas que participaram da construção dessa matéria e que trabalham incansavelmente pelos direitos dos Povos Indígenas.