“Quero ver se tem a mesma disposição para aprovar a pena de morte para vagabundo. Quem tem disposição para matar no útero, tem disposição na vida adulta também. Mas, muito pelo contrário, se sobreviver no útero, eles protegem”. A crítica do senador Magno Malta (PR/ES) à decisão da primeira turma do Supremo Tribunal Federal (STF) de descriminalizar o aborto até os três meses de gestação, expõe a incoerência de seu próprio discurso “pró-vida” ao tutelar a vida não formada, enquanto defende a pena de morte. Ele é autor da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 29/2015 que altera o artigo quinto da Constituição para garantir o direito inviolável à vida desde a concepção – tendo como marco do início da vida a fecundação, momento em que o espermatozoide penetra o óvulo. O projeto tramita na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e recentemente recebeu parecer favorável do relator Eduardo Amorim (PSDB/SE). A aprovação transforma em crime o uso da pílula do dia seguinte, assim como qualquer interrupção voluntária da gravidez, mesmo nos casos permitidos por lei: gravidez de risco, estupro e anencefalia.

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A tramitação da PEC 29 estava parada na CCJ do Senado há um ano e quatro meses, aguardando a designação do relator. Em 6 de maio, o presidente da comissão, Edson Lobão (PMDB/MA) designou o relator, que em apenas cinquenta dias apresentou seu parecer. A aprovação da PEC significa reconhecer o direito à vida desde o encontro entre espermatozoide e óvulo (fecundação), antes mesmo da implantação do embrião no útero.

Ao mesmo tempo que busca estender o direito fundamental à dignidade da pessoa humana ao pré-embrião, Magno Malta nega esse mesmo direito – também reivindicado pelos movimentos feministas – às mulheres. “A omissão no texto constitucional sobre a origem da vida vem permitindo grave atentado à dignidade da pessoa humana que se vê privada de proteção jurídica na fase de gestação”, diz ele no texto.

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A proposta se fundamenta na defesa de que a constituição está desatualizada em relação aos “avanços na ciência registrados nos últimos 20 anos”, os quais teriam o poder de marcar o início da vida na fecundação. No texto, o autor atenta para a possibilidade da “perfeita sobrevivência” de uma “criança” nascida de um parto com 18 semanas de gestação.

“Se essa lei for aprovada, o que vai acontecer com os milhares de embriões congelados nas clínicas de reprodução? Serão consideradas personalidades jurídicas com direito a reclamar proteção ao Estado?”, questiona em artigo recente a jornalista Claudia Collucci.

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“O fato é que mesmo entre as mulheres que são contra o aborto, há espanto diante da perda de direitos presentes na PEC 29/2015, que proíbe o aborto nos casos que a lei já permite. Isso representa um retrocesso inaceitável”, afirma a senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB/AM), representante da Procuradoria Especial da Mulher no Senado.

Para a legisladora, os movimentos organizados de mulheres precisam mobilizar a sociedade contra esse “desrespeito”. “As mulheres têm perfeita noção de que alguns representantes de partidos conservadores no Senado tentam aproveitar ao máximo possível a conjuntura que criaram ao dar o golpe parlamentar que afastou a presidenta Dilma Rousseff, para tentar aprovar questões dessa natureza”, assinala.

Brasil pode virar Nicarágua
“A PEC é definitiva e estrutural. Se essa emenda for aprovada, o Brasil vai se transformar na Nicarágua”, afirma Sonia Corrêa, co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW, sigla em inglês). A interrupção da gravidez passou a ser criminalizada na Nicarágua em todos os casos, desde 2006, quando a lei que garantia o aborto terapêutico foi derrubada.

Sonia alerta para a gravidade da PEC diante um cenário político marcado pela agenda de retirada de direitos. “Há uma exuberância do reformismo constitucional em curso, em um nível de irracionalidade política. Esses parlamentares se aproveitam do caos político, em que a atenção está fragmentada, para aprovar esse tipo de proposta no silêncio da madrugada. Não contamos no Congresso com vozes e posições que ajudem a conter isso”, atenta a ativista.

Esse e outros projetos que tramitam a passos largos são respostas à abertura de precedente pelo STF na decisão que considerou inconstitucional a criminalização do aborto até os três meses de gestação. Com a saída de cena de Eduardo Cunha – cujo projeto que cerceia o direito ao aborto legal em caso de estupro deflagrou a chamada Primavera Feminista – Magno Malta se apresenta como o expoente máximo da agenda em defesa da vida do feto. “A agenda era usada por Eduardo Cunha como cortina de fumaça para esconder e obscurecer todas as suas falcatruas. É um instrumento de projeção da moralidade do personagem e de seus parceiros”, afirma Sonia.

Integrante da Frente Parlamentar Evangélica que conta com 198 deputados e 4 senadores, Malta é também relator da Sugestão Legislativa (SUG) 15/2014, que alcançou mais de 20 mil assinaturas, e pautou a proposição da legalização do aborto em cinco audiências públicas na Comissão dos Direitos Humanos (CDH). Ele foi designado para a função, depois da desistência da senadora Marta Suplicy (PT-SP), inicialmente indicada pelo senador Paulo Paim, que na época presidia a CDH. “A mesa da Comissão enviou a SUG à Marta que historicamente lidou com o tema. Ela disse que a pauta não fazia mais parte da sua agenda. Com as ‘amigas’ que temos não precisamos de inimigos. Malta conduziu o processo inteiro a seu modo”, lembra Sonia.

Situação
A PEC está pronta para entrar na pauta da CCJ. Se aprovada, segue para o Plenário do Senado, que terá cinco sessões para discuti-la. A aprovação ocorre dois turnos com votação favorável mínima de 49 dos 81 parlamentares.  Caso seja aprovada no Plenário, segue para a Câmara dos Deputados, onde então será analisada por comissão especial e quórum qualificado, ou seja, 2/3 dos 513 parlamentares, em dois turnos de votação.

Outros projetos que buscam criminalizar o aborto legal tramitaram recentemente, como a PEC 58/2011, do deputado Jorge Silva (PDT/ES), que estende a licença maternidade em caso de nascimento prematuro à quantidade de dias que o recém-nascido passar internado. A proposta constitui uma manobra para reconhecer os direitos jurídicos desde a concepção. O Estatuto do Nascituro, de Luiz Bassuma (PT/BA) e Miguel Martini (PHS/MG), prevê a proibição do aborto mesmo em caso de estupro – como compensação propõe a bolsa estupro – e transforma o aborto em crime hediondo. O texto recebeu parecer favorável, no final de maio, do relator deputado Marcos Rogério (DEM-RO).

Outra ameaça é a Medida Provisória 768/2017,  que cria a Secretaria-Geral da Presidência da República e o Ministério dos Direitos Humanos, enviada recentemente à Câmara. Por meio das emendas nº 11 e 12 de autoria do deputado Alan Rick (PRB/AC), a MP altera o nome do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) para Conselho Nacional dos Direitos do Nascituro, da Criança e do Adolescente; e Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente para Secretaria Nacional dos Direitos do Nascituro, da Criança e do Adolescente. A medida dispõe também sobre a oferta de educação religiosa e moral de acordo com as convicções manifestadas pelos pais.

Saiba quem são os/as senadores/as que assinaram a PEC 29/2015

A PEC precisava de no mínimo 27 assinaturas para ser aceita. Assinaram a proposta as/os senadores/as: Aloízo Ferreira Nunes, Acir Gurgacz, Aécio Neves, Alvaro Dias, Antonio Anastasia, Antonio Carlos Valadares, Magno Malta, Ricardo Ferraço, Flexa Ribeiro, José Agripino, Eunício Oliveira, Garibaldi Alves Filho, Ataídes Oliveira, Paulo Paim, Lasier Martins, Elamno Ferrer, Eduardo Amorim, Delcídio do Amaral, Cássio Cunha, Blairo Maggi, Paulo Rocha, Raimundo Lira, José Reguffe, Romário de Souza Faria, Roberto Requião, Walter Pinheiro, Rose de Freitas (sequência de acordo com disposição das fotos).

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