Organizações que atuam em defesa da justiça reprodutiva enviaram uma carta aos Ministérios das Mulheres, da Saúde, e dos Direitos Humanos e da Cidadania, em que pedem a garantia do direito ao aborto legal de uma menina de 13 anos em Goiás. Grávida após estupro, a menina está sendo impedida pela justiça de Goiás de realizar o aborto legal.
Na carta, as organizações lembram que os três ministérios se manifestaram contra o Projeto de Lei 1904, que quer equiparar o aborto acima de 22 semanas, mesmo em caso de estupro, ao crime de homicídio. Se aprovada, a proposta afetará principalmente crianças vítimas de violência.
Entre outros pontos, as organizações pedem que os ministérios realizem uma visita ao estado para se reunir com as autoridades envolvidas com o caso. Demandam ainda que o Ministério da Saúde faça uma reunião com os profissionais dos serviços da rede socioassistencial e de saúde que atuam no caso, a fim de que orientem sobre o cumprimento dos protocolos de acesso à interrupção da gestação.
Além disso, solicitam que a Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia, assim como a Secretaria da Saúde do Governo de Goiás tomem “providências para garantia dos direitos da menina” e orientem “sobre a melhor forma de funcionamento dos serviços, baseada em evidências científicas e na garantia de direitos humanos”.
Também que se reúnam com o Conselho Tutelar, a Defensoria Pública e o Ministério Público “a fim de compreender os encaminhamentos destinados à proteção da criança, evitando que seja submetida a novas violências e tenha acesso a todos os seus direitos”.
O caso foi denunciado pelo jornal O Popular e também reportado pelo The Intercept Brasil esta semana. A menina procurou o hospital para abortar quando estava com 18 semanas. O aborto é um direito neste caso por ser resultado de estupro e por gerar risco à vida da menina. Depois de uma recusa do hospital e duas da justiça, a gestação caminha para a 28ª semana.
O suspeito do estupro é um homem de 24 anos, conhecido do pai da menina, com quem ela vive. Foi o pai quem pediu na justiça que a interrupção fosse adiada para que o feto tivesse chance de sobreviver, apoiado por vários advogados, incluindo um ligado a um grupo antiaborto. Segundo fontes familiarizadas com o caso, um padre e uma freira da Igreja Católica estariam auxiliando o homem.
Leia a carta na íntegra:
Excelentíssima Ministra Nísia Trindade, Excelentíssimo Ministro Silvio Luiz de Almeida e Excelentíssima Ministra Aparecida Gonçalves,
Somos movimentos de mulheres, movimentos sociais e organizações feministas antirracistas, transinclusivas, anticapacitistas e ativistas comprometidas com a garantia do Estado Democrático de Direito. Escrevemos para trazer ao conhecimento de V. Exas. um caso dramático de violação de direitos e pedir providências imediatas para garantia de proteção à vítima.
Trata-se do caso em que o Judiciário goiano está obstruindo o acesso ao aborto legal, impondo a gravidez forçada em uma situação análoga à de tortura, a uma menina de 13 anos vítima de violência sexual que já havia expressado a decisão de abortar. Conforme noticiado, há outros casos como esse no estado, nos quais meninas goianas enfrentam violação de direitos na busca pelo aborto legal.
De acordo com as notícias, a criança se encontra em situação de extrema vulnerabilidade social, que evidencia múltiplas violações aos direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente e ciclos de violência. A própria menina nasceu de uma gravidez infantil, quando sua mãe tinha apenas 12 anos. Quando foi vítima de violência sexual, praticada por um homem de 24 anos, ela estava sem frequentar a escola. Ao que tudo indica, o estupro ocorreu com a conivência de seu genitor, que conhece e convive com o agressor e se recusa a reconhecer a situação de violência, tratando-a como um relacionamento. Por essa razão, o Boletim de Ocorrência apenas foi registrado após intervenção externa. Apesar das violações, o genitor — que foi o estuprador de sua mãe — tem sua oposição ao aborto levada em consideração, em detrimento da vontade manifesta da criança e de sua saúde e vida.
Apesar de se tratar de um caso de estupro de vulnerável e de uma gravidez de alto risco de vida para a menina, casos em que há amparo legal para a realização do procedimento do aborto, a juíza Maria do Socorro de Sousa Afonso Lima e a desembargadora Doraci Lamar Rosa da Silva Andrade impediram a criança de acessar o aborto legal. Baseiam-se no tempo gestacional, na proibição da assistolia e na proteção do feto, argumentos sem respaldo legal ou científico, obrigando-a a realizar um parto prematuro que implica em graves riscos para sua vida, contrariando o que está previsto na Constituição Federal, no Código Penal e na Lei de Crimes Sexuais, as recomendações da Organização Mundial da Saúde e o desejo expresso da vítima.
Trata-se de uma afronta à lei, à Constituição, a tratados de direitos humanos ratificados pelo país e a decisões do Conselho Nacional de Justiça, que reconhecem o dever de magistrados e magistradas de assegurarem, com absoluta prioridade, o acesso ao aborto legal para meninas e mulheres vítimas de violência, por ser um procedimento necessário e urgente para a proteção de seus direitos humanos. Também afronta a recente decisão do Supremo Tribunal Federal, que suspendeu a Resolução CFM n.º 2.378/2024, cuja intenção era proibir que profissionais de saúde garantissem o direito ao aborto em gravidezes com mais de 22 semanas resultantes de estupro.
Impedida de interromper a gestação e interromper o ciclo de violências ao qual está submetida, a criança se encontra em situação de profundo sofrimento psíquico, ameaçando recorrer a um aborto inseguro, com risco da própria vida.
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O caso é ilustrativo das violações sistemáticas vivenciadas por meninas brasileiras, bem como da naturalização da cultura do estupro, do casamento e da gravidez infantil em nossa sociedade, afetando, principalmente, meninas negras e pobres. Como se não bastasse a violência sexual sofrida, ao ter seu caso submetido à Justiça, a menina vem sendo alvo das violências institucionais praticadas pelas magistradas em contraridade ao previsto no Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, do Conselho Nacional de Justiça, aponta que “nos crimes de aborto e infanticídio, porque a autoria pode ser, no mais das vezes, atribuída à mulher, magistradas e magistrados devem estar especialmente atentos à influência que os estereótipos podem afetar os argumentos da acusação e da defesa e os fundamentos da decisão”.
O caso também demonstra como os poderes públicos, sobretudo a Justiça brasileira, desconsideram o uso do sistema judiciário para obstruir o acesso ao direito previsto em lei, e as várias violências praticadas por organizações anti-direitos que agem à margem da lei e da ética para impedir meninas estupradas de terem acesso a seus direitos. Conforme noticiado, o caso foi judicializado pelo Ministério Público para a realização do aborto legal em razão da discordância do genitor, apoiado e instigado por pessoas ligadas a entidades religiosas contrárias ao aborto no Brasil. Advogados vinculados a essas entidades, em conjunto com o pai, fizeram um tumulto em frente ao hospital no qual a criança foi atendida, exigindo acompanhar a consulta médica — o que efetivamente ocorreu, causando constrangimento e violando a privacidade da menina, que não desejava a presença daqueles,
Essas entidades, promovendo desinformação sobre o direito ao aborto, têm praticado violência psicológica e processual contra crianças, por meio de peticionamentos sucessivos e de uma atuação incisiva junto às famílias e ao Poder Judiciário. Essa foi a mesma situação vivenciada por uma menina da cidade de Tubarão, em Santa Catarina, no ano passado. O objetivo é obstruir o acesso ao aborto legal, através da judicialização do caso.
Também no legislativo há uma forte movimentação no sentido de limitar o acesso ao aborto legal em nosso país. No mês passado, vimos o Congresso Nacional aprovar o Requerimento de Urgência para a tramitação do PL nº 1904/2024, que busca proibir o aborto em gravidezes resultantes de estupro com mais de 22 semanas, equiparando o procedimento ao crime de homicídio. A indignação por tamanha violação de nossos direitos levou milhares de pessoas a ocuparem as ruas de todo o Brasil sob a consigna “Criança Não é Mãe”. Ficou evidente e de forma contudente que não serão tolerados retrocessos em relação ao direito ao aborto legal apoiando a compreensão de que o aborto é um procedimento de saúde essencial para garantia dos direitos humanos e dos projetos de vida de milhares de mulheres e meninas no Brasil.
Vossas Senhorias já manifestaram sua indignação anteriormente contra ameaças de retrocesso ao direito ao aborto legal no país, a saber:
– a Ministra Nísia Trindade argumentou que é necessário “garantir no SUS o atendimento a meninas e mulheres vítimas de estupro e em risco de vida tal como preconiza o Código Penal de 1940”;
– o Ministro Silvio Almeida apontou que obrigar mulheres e meninas estupradas a prosseguirem com a gestação “fere o princípio da dignidade da pessoa humana e submete mulheres violentadas a uma indignidade inaceitável”;
– a Ministra Cida Gonçalves, através de nota destacou que “não podemos revitimizar mais uma vez meninas e mulheres vítimas de um dos crimes mais cruéis contra as mulheres, que é o estupro, impondo ainda mais barreiras ao acesso ao aborto legal”.
Em razão desses posicionamentos, e no âmbito das atribuições e das competências que cabem aos Ministérios chefiados por Vossas Senhorias, enviamos a presente carta a fim de sejam tomadas medidas imediatas e urgentes para proteger a vida da criança no caso noticiado pela imprensa, garantindo-lhe acolhimento humanizado e acesso ao aborto legal conforme sua vontade já manifestada.
Dada a urgência e gravidade do caso relatado, que materializa mais uma vez um padrão sistemático de violações aos direitos humanos, é necessário que sejam tomadas medidas imediatas para salvaguardar a dignidade, saúde e direito ao futuro dessa menina e de outras que estejam expostas às mesmas violências, cumprindo com a obrigação estatal de proteção de direitos humanos, em particular para o cumprimento das recomendações enviadas pelo Comitê CEDAW ao governo brasileiro, sugeridas abaixo, a saber:
1 – Realizar uma visita in loco para contato com as autoridades do estado envolvidas com o caso com o objetivo de garantir o acesso à saúde para a menina;
2 – Através do Ministério da Saúde, reunir-se com os profissionais dos serviços da rede socioassistencial e de saúde que estão atuando no caso, em especial com o Hospital Estadual da Mulher Dr. Jurandir do Nascimento (HEMU) a fim de orientar sobre o cumprimento dos protocolos e regulamentos vigentes que respaldam o acesso à interrupção da gestação, conforme desejo da menina;
3 – Instar a Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia, assim como a Secretaria da Saúde do Governo de Goiás, a tomarem providências para garantia dos direitos da menina, bem como orientar sobre a melhor forma de funcionamento dos serviços, baseada em evidências científicas e na garantia de direitos humanos;
4 – Reunir-se com o Conselho Tutelar, a Defensoria Pública e o Ministério Público a fim de compreender os encaminhamentos destinados à proteção da criança, evitando que seja submetida a novas violências e tenha acesso a todos os seus direitos;
5 – Solicitar ao Presidente do Tribunal de Justiça que tome medidas no âmbito de suas atribuições para averiguar a conduta da juíza de primeira instância, bem como da desembargadora, que proferiram decisões que impuseram a manutenção da gravidez forçada pela menina, expondo-a à tortura;
6 – Instar o Ministério Público a averiguar a conduta de organizações da sociedade civil e outros atores que buscaram impedir o acesso ao aborto legal no caso;
7 – Reunir-se com as organizações que subscrevem esta carta a fim de que possamos compreender quais os encaminhamentos relacionados ao caso para enfrentamento dos obstáculos ao aborto legal no estado de Goiás e em outras situações de violência sexual, e gravidez infantil forçada em nosso país.
Assinam a presente carta:
Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde
Campanha Nem Presa Nem Morta
Anis – Instituto de Bioética
CLADEM Brasil
Portal Catarinas
Coletivo Margarida Alves
Cravinas – Clínica de Direitos Sexuais e Reprodutivos da Universidade de Brasília
Grupo Curumim
Católicas pelo Direito de Decidir
REDEH – Rede de Desenvolvimento Humano
CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria
Associação Mulheres na Comunicação (AMC)
Bloco Não é Não
Coletiva Motim Feminista- MRO-RN.
#partidA Goiânia
Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e Pela Legalização do Aborto.
CEPIA – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação
Criola