A eleição do Papa Leão 14, membro de uma congregação religiosa católica masculina, a Ordem de Santo Agostinho (OSA), reacende debates antigos e complexos sobre a doutrina católica, entre eles, a questão do aborto. Embora hoje a Igreja Católica mantenha uma postura firme contra a prática, nem sempre foi assim. A posição atual é resultado de uma longa trajetória teológica, moral e também política, marcada por inflexões e controvérsias.
Santo Agostinho: aborto não é homicídio, mas é pecado
No século 4, Santo Agostinho afirmava que o aborto não constituía homicídio, pois não envolvia a morte de uma “alma racional”. Para ele, a alma humana era infundida apenas depois de cerca de 40 dias da concepção. Ainda assim, considerava o aborto um pecado, especialmente se tivesse como fim encobrir um adultério ou ato de fornicação. A gravidade da prática estava, portanto, mais ligada à tentativa de ocultar um pecado sexual do que à eliminação de uma vida propriamente dita.
Essa compreensão refletia a noção, então corrente, de que o ser humano se formava gradualmente, passando por estágios vegetativo, sensitivo e racional, até atingir sua plenitude. Tomás de Aquino (século 13), séculos depois, reiteraria esse entendimento ao argumentar que a alma racional só seria difundida quando o corpo estivesse suficientemente desenvolvido.
A moralidade do aborto e a oscilação doutrinária
Durante a Idade Média, os cânones eclesiásticos refletiam essa incerteza moral e biológica. Nos Cânones Irlandeses (séculos 7 a 9), por exemplo, a relação sexual ilícita era considerada mais grave do que o aborto. Só se reconhecia a interrupção da gestação como “homicídio” quando o feto já apresentava forma humana. Em outras palavras, o pecado do aborto era relativo ao estágio da gravidez.
Essa diferença doutrinária começou a se alterar com o Concílio de Trento (1545–1563), em plena Contra-Reforma, quando a Igreja passou a adotar uma visão mais rigorosa sobre o início da vida. Mesmo assim, correntes teológicas persistiram em defender a hominização progressiva ou imediata, como fizeram Tertuliano (séc. III) e Alberto Magno (séc. 13), e o tema seguiu em aberto por séculos.
A hominização, no contexto do debate sobre o aborto, diz respeito ao momento da gestação em que se reconhece que o feto adquire condição de pessoa humana, passando a ter seu direito à vida considerado. Para a Igreja Católica, a hominização é feita desde a concepção. Para a ciência, este debate é mais amplo e envolve questões jurídicas e de saúde.
Pio 9 e o endurecimento da doutrina antiborto na Igreja Católica
Foi apenas em 1869 que a interrupção da gravidez passou a ser considerada, oficialmente, um pecado gravíssimo em qualquer fase da gestação, passível de excomunhão automática. A bula Apostolicae Sedis, promulgada por Pio 9, tornou norma a ideia de hominização imediata. No entanto, essa guinada não se deu apenas por razões teológicas. Essa mudança foi impulsionada por pressões políticas externas à Igreja.
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O imperador francês Napoleão 3, diante de uma crise de natalidade que ameaçava seus planos de industrialização, teria articulado com o Vaticano um endurecimento das regras morais. Ao declarar o “aborto pecado em qualquer circunstância”, o Papa ofereceu uma resposta política disfarçada de doutrina. Como observou o bioeticista Alexandre Martins, foi uma decisão tanto doutrinária quanto estratégica, que não se baseava em uma continuidade histórica infalível, mas em um momento de conveniência institucional.
De fato, este ponto é crucial: a Igreja nem sempre considerou o aborto como pecado, tampouco como homicídio. Durante muitos séculos, os ensinamentos não foram definitivos sobre a natureza do feto, e a proibição da prática jamais foi declarada como infalível, um dado relevante dentro da tradição católica.
Nos séculos seguintes, a doutrina antiaborto se consolidou uma “ética da vida” para a Igreja. O Código de Direito Canônico de 1917 reiterou a excomunhão para todos os envolvidos. Em 1930, os abortos terapêuticos foram também condenados. A partir dos anos 1960, o aborto passou a ser enquadrado como eliminação de uma vida humana, e a doutrina da “defesa da vida desde a concepção” foi integrada à chamada ética da vida, ao lado da oposição à pena de morte e da defesa dos pobres.
Novo Papa e o aborto
O pensamento agostiniano, ao reconhecer a complexidade do desenvolvimento humano e da moral, ainda ressoa entre muitos católicos que enxergam nuances no debate. A eleição de um Papa agostiniano, portanto, pode trazer novas inflexões sobre o tema. Ainda que esteja comprometido com a doutrina vigente, seu legado espiritual remete a uma época em que o aborto era julgado com mais cautela e discernimento contextual, e menos com o peso de uma condenação absoluta.
Obviamente, como ocorreu durante os doze anos de pontificado do Papa Francisco, o aborto continuará sendo uma pauta inegociável para a Igreja Católica. Não devemos alimentar grandes expectativas de mudança. Mesmo que o tom pastoral pareça mais acolhedor, a condenação à prática do aborto, e, por extensão, às pessoas envolvidas no procedimento, permanecerá firme. No Brasil, segundo dados do PNA (2021), a maioria das mulheres que praticam aborto se declaram católicas, o que torna ainda mais evidente a contradição entre posições católicas de condenação e a religião vivida. A trajetória doutrinária da Igreja produz estigmas e sustenta injustiças reprodutivas.
Além disso, a Igreja mantém posições igualmente rígidas diante das novas tecnologias reprodutivas, como a fertilização in vitro e outras formas de reprodução assistida. A resistência da Igreja Católica às tecnologias reprodutivas está enraizada em uma concepção específica de natureza humana, entendida como obra da criação divina, fixa e imutável. Segundo essa perspectiva, a natureza humana foi criada por Deus com características definidas e, portanto, não pode ser alterada ou manipulada pela ação humana por meio da ciência.
Essa visão essencialista, que associa a identidade às características biológicas, sustenta a abordagem tradicional da Igreja, baseada em uma perspectiva binária e normativa da sexualidade e da reprodução e admitindo unicamente às relações heterossexuais “abertas à reprodução humana” como moralmente válidas.
É a partir desse marco doutrinário que a Igreja orienta sua rejeição a práticas como a fertilização in vitro e outras tecnologias reprodutivas, por considerá-las intervenções indevidas na ordem natural estabelecida por Deus.
Assim, tanto a prática do aborto quanto as tecnologias reprodutivas continuam sendo temas cercados por estigmas e silêncios, por enquanto intocáveis no campo doutrinário católico. Se o Papa Leão 14 retomará o espírito agostiniano mais flexível e aberto ou seguirá reafirmando a doutrina atual de criminalização do aborto e de tecnologias reprodutivas, só o tempo dirá. Mas sua formação agostiniana, ao menos, convida à reflexão: entre a letra da lei e o espírito da misericórdia, onde está o justo meio?