Em tempos de institucionalização de vozes deliberadamente contrárias à garantia de igualdade de gênero e dos direitos humanos das mulheres, o jornalismo do Fantástico perdeu a oportunidade de subsidiar o debate público sobre aborto com informações de relevância à vida das mulheres. Em tom policialesco, a reportagem “Universitária monta esquema de abortos clandestinos em quartos de hotéis em Belo Horizonte”, veiculada no último domingo, mostra a polícia entrando no quarto de hotel antes da suposta realização de um procedimento. Segundo a reportagem, mais de 200 mulheres teriam recorrido ao serviço durante três meses.

A narrativa toma contornos ainda mais dramáticos. Nas mulheres que buscavam o socorro, supostamente era ministrada uma medicação injetável que, segundo informam os delegados entrevistados, tem uso veterinário para preparar as vacas para ordenha. O caso chegou à polícia porque uma das mulheres que teria recorrido à prática, aos oito meses de gestação, precisou de atendimento hospitalar. Agora, coagida ao arrependimento, a mulher que buscou tardiamente o procedimento, acompanha a recuperação do bebê na UTI neonatal. O ápice do tom persecutório se dá na comparação de que a suspeita foi solta sob a justificativa de cuidar do filho de seis anos, enquanto a sua “vítima” continua no hospital a acompanhar o prematuro. No pano de fundo está a legitimação do papel social da mulher, entrelaçado ao destino biológico, de mera reprodutora e cuidadora da vida. 

“Ela levava uma vida de luxo às custas desses fetos que tiveram a vida interrompida”, explicou o delegado sobre a estudante de jornalismo investigada no caso. O destaque à fala evidencia explicitamente que a vida das mulheres pouco importa, ignorando o fato de que elas – as pessoas já nascidas e para as quais é assegurado esse status jurídico –  é que detêm o direito inviolável à vida, conforme prevê a Constituição Federal.

Mulheres são expostas a procedimentos inseguros porque o aborto é ilegal no Brasil, e mesmo que a prática seja permitida em três situações – quando a vida da mulher está em risco, em gravidez resultante de estupro e anencefalia fetal – o Estado não garante o acesso pleno ao direito. Ou seja, se a prática não fosse considerada ilegal e se o direito nos casos previstos por lei não fosse violado, as clínicas e procedimentos clandestinos não teriam razão de existir. 

Na matéria não há uma voz contraditória, como pressupõe a técnica jornalística, a confrontar as teses policiais sobre o que realmente coloca em risco a vida das mulheres e as expõe a situações como essa. Há 30 anos, as brasileiras, com a ajuda de farmacêuticos, descobriram com o próprio corpo o uso do misoprostol – destinado a tratar úlceras – como potencialmente abortivo, e revelaram ao mundo um medicamento eficiente e seguro para a realização do aborto até a 12ª semana de gestação. As consequências e efeitos perversos à vida de algumas mulheres, mais precisamente pobres e negras, são resultantes tão somente da interdição da informação e do acesso a medicamentos, instaurada pela criminalização. Se fossem informadas razoavelmente sobre a prática e acessassem procedimentos seguros, certamente não esperariam a gestação avançar a ponto de colocarem suas vidas em risco.

O Código de Ética do jornalismo brasileiro estabelece, entre outras práticas, que é dever da/o jornalista defender os direitos da/os cidadãs/ãos, contribuindo para a promoção das garantias individuais e coletivas, em especial as das crianças, dos adolescentes, das mulheres, dos idosos, dos negros e das minorias (políticas). Constitui também um dever combater a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, econômicos, políticos, religiosos, de gênero, raciais, de orientação sexual, condição física ou mental, ou de qualquer outra natureza.

Nesse tipo de reportagem, que longe de ser exceção é a regra, percebemos mais nitidamente que o tema aborto carece de um debate ético no país. Diante de uma lei penal datada de 1940, elaborada numa época em que as mulheres eram tuteladas pelos maridos, pois consideradas incapazes de exercerem certos direitos, é urgente contestar a discriminação de gênero marcada pela perseguição e caça às mulheres que decidem interromper uma gravidez. A decisão de interromper voluntariamente a gestação é parte dos direitos sexuais e reprodutivos, assegurados em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.

A validação da criminalização das mulheres, como resposta à defesa da vida (de fetos), ignora as evidências de que a legalização da prática diminui o número de abortos e põe fim ao abortamento inseguro e à morte de mulheres. A caça contemporânea às bruxas é mais uma faceta da narrativa de opressão de gênero, cristalizada nas instituições, que se torna ainda mais perversa em um cenário político de “fanatismo patriarcal militante”, como denomina a antropóloga Rita Segato, no livro “A guerra contra as mulheres”.

Ao reforçar a manutenção de uma normativa que faz das mulheres cidadãs de segunda classe, o jornalismo, afirmado enquanto imparcial e objetivo, alimenta audiências ainda mais raivosas e desinformadas, distantes da realidade concreta das mulheres, e desconectadas de seus direitos. Investigada no caso, a estudante de jornalismo teve uma aula de como não fazer jornalismo. 

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