Em 2011, Valéria Vilhena publicou um livro intitulado “Uma Igreja sem voz: análise de gênero da violência doméstica entre mulheres evangélicas”. Este livro foi fruto de um estudo qualitativo feito na Casa Sofia, uma casa de acolhimento para vítimas localizado na zona sul de São Paulo. Essa pesquisa constatou que 40% das mulheres que frequentavam a Casa Sofia eram evangélicas. O resultado acendeu o debate público que intersecciona religião e a ocorrência da violência de gênero – especificamente presente na cosmogonia (conjunto de doutrinas que explica o princípio do universo) das Igrejas Evangélicas na relação entre homens e mulheres.
Para nós, feministas que professam a fé evangélica, o fato de muitas mulheres, principalmente as mais pobres, frequentarem as Igrejas evangélicas não é apenas uma questão de escolha, dentre as misérias da vida em sociedade extremamente desigual, a Igreja é uma porta que se abre, nas periferias e interiores do país, e possibilita alguma vivência de humanidade: acesso a cursos, creches, cestas básicas e vida comunitária. Assim, defendemos que a igreja deve ser vista como parte da vida cotidiana dessas pessoas, como uma porta que se abre e, muitas vezes, ao ser a única porta, torna-se espaço de aparelhamento de calhordas.
Em outras palavras, não dá para o movimento feminista não se preocupar em conversar com as mulheres religiosas, não dá para confundir a instituição cristã com as mulheres que estão dentro dela, não será possível um levante feminista se deixarmos as religiosas para trás, ainda mais num país como o nosso.
No Brasil, segundo o censo da população realizado pelo IBGE, em 2010, são cerca de 209 milhões de pessoas e destas, 166 milhões são cristãs, abarcando católicos (123,2 milhões aproximadamente) e evangélicos (42,2 milhões). Quando nos atentamos para o número de religiosas cristãs, vemos um número expressivo de mulheres que vivem sob o que chamo de tripé da submissão da mulher cristã. São cerca de 23,5 milhões de mulheres evangélicas e cerca de 60 milhões de católicas. Quando se trata de recorte de raça, são 86 milhões de pessoas negras cristãs e destas, 44 milhões são mulheres negras católicas ou evangélicas.
Esses números são muito expressivos e nos colocam, enquanto feministas, num beco quase que sem saída: enquanto as instituições cristãs são inimigas dos direitos das mulheres, elas abrigam e subjugam milhões de mulheres, que sofrem dia a dia a opressão mais ferrenha do patriarcado cristão. Como proceder, então? Uma vez que temos que cirurgicamente nos colocar contra os moralismos, mas temos que ter uma comunicação eficiente com essas mulheres de modo que não as coloquemos na contramão da luta pelos direitos das mulheres.
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Dessa forma, não podemos simplesmente achar que a igreja é um lugar de opressão e submissão, apenas. Um lugar de sofrimento, pois não é o sofrimento que atrai essas pessoas para a igreja, pelo contrário, é o acolhimento, a humanização que ser parte de uma comunidade proporciona. É o lugar onde as pessoas sabem os nomes umas das outras, onde se faz chá de cozinha, chá de bebê, onde se visita os doentes e se vive uma vida comunitária.
É uma relação de bate-assopra, ao passo que a igreja tem papel essencial na manutenção de patriarcado, ela é uma porta que se abre para as pessoas socialmente invisibilizadas.
Gosto de pontuar que num país que foi uma colônia-escravocrata-cristã, ser cristão não é escolha. É construção social, no caso, uma construção que colocou a igreja no centro do que é ser um cidadão brasileiro digno, respeitável. E nesse ponto nos perguntamos: como conversar com essas mulheres? Como enfrentar números tão altos de violência doméstica perpetuados pelo patriarcado cristão? A resposta ainda não temos, mas há gente que está fazendo essa ponte, construindo esse diálogo, felizmente.
As Evangélicas pela Igualdade de Gênero (EIG), coletivo do qual eu faço parte, nasceu a partir do incômodo de mulheres evangélicas que se tornaram feministas e se insurgiram contra a religião opressora. Contudo, para nós, sair da igreja é das as costas para nossas irmãs. Sair de lá, é fechar uma das poucas possibilidades de diálogo com tantas mulheres que vêm na igreja a única possibilidade de humanização ao seu alcance.
Nós da EIG falamos com essas mulheres em Igreja, casas de apoio à mulher que sofre violência, em Unidade Básica de Saúde, associação de bairro, abrindo a possibilidade do enfrentamento à violência.
Dizemos para elas que o machismo é que é o pecado, que o desrespeito e a violência é que são o problema, e não as mulheres.
Desse modo, nós assumimos um lugar privilegiado de conversa, acolhimento e, muitas vezes, socorro para tantas mulheres que são vítimas em suas religiões e casamentos. Nós defendemos os direitos da mulher ao corpo, autonomia procriativa, o Estado Laico, e todas as pautas do movimento feminista. Nós acreditamos que não podemos caminhar e deixar tantas mulheres que não conhecem o feminismo para trás, nós somos mensageiras do feminismo e acreditamos que ele não é contrário à nossa fé. A nossa fé é pela vida digna, pela alegria e pela vida das mulheres!
*Simony dos Anjos é mãe do Bernardo e da Nina. É evangélica, cientista social, mestre em educação e curadora da Coluna Féministas, no portal de notícias Justificando.com, espaço no qual mulheres discutem a relação entre fé, gênero, raça e política. É integrante do Coletivo Evangélicas Pela Igualdade de Gênero, da Rede de Mulheres Negras Evangélicas e filiada ao Psol/Osasco.