O direito a um abortamento seguro e sem discriminação social e étnica pautou o debate que lançou oficialmente a Frente Catarinense de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto, na última segunda-feira (5), no Instituto Arco-Íris, em Florianópolis.
“Bastaria a perda da vida de Jandira, mas são pelo menos 170 mulheres que morrem por ano, vítimas de aborto realizado de forma insegura no Brasil. É bom lembrar que nem todo aborto clandestino é inseguro. Como dizem as placas nas manifestações feministas ‘as ricas abortam, as pobres morrem”, afirmou a ginecologista Halana Faria, após a exibição do filme “Meu corpo, minha vida”, que abordou a morte trágica de Jandira Magdalena dos Santos, 27 anos, após passar por procedimento numa clínica clandestina, no Rio de Janeiro.
Emocionada, a médica integrante do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde lembrou também a morte de Caroline Mele Machado Duo, 23 anos, no mês passado, em Itapema (SC). “A Jandira usou três vezes o medicamento abortivo, que é considerado seguro, mas ela não tinha a informação correta. Minha questão é: ‘como a gente chega nessas mulheres que fazem aborto de forma insegura?’”, questionou.
Clair Castilhos, secretária executiva da Rede Feminista de Saúde, destacou a importância da participação das mulheres no processo político, para alterar leis que negam os direitos humanos das mulheres, como a criminalização do aborto. “Essa é uma sociedade discriminatória em relação à raça, gênero e orientação sexual. Isso se propaga e se preserva indefinidamente por uma questão que temos que encarar de frente de uma vez por todas, que é a política. Enquanto a gente não desmascarar esses discriminadores que estão se elegendo, vamos continuar sofrendo com essas leis”, afirmou a sanitarista e farmacêutica, primeira vereadora de Florianópolis.
O debate evidenciou as múltiplas nuances que envolvem a questão do direito a um abortamento seguro, como a negação pelo Estado do direito de ser e não ser mãe, e a vinculação da criminalização do aborto à violência, por meio da violação de direitos. As discussões levaram a algumas ações que devem ser tomadas como prioridade pela Frente, como o acompanhamento do caso da Caroline e a divulgação e cobrança do Estado de disponibilizar informações e serviços de aborto legal.
A Frente, que vai sendo construída com a participação das pessoas a cada encontro, pretende atuar para informar profissionais de saúde e pacientes sobre o direito das mulheres – que buscam socorro em processo de abortamento ou pós-abortamento – a um atendimento humanizado e sigiloso.
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A atuação também busca a desmistificação sobre o tema do aborto por meio de rodas de conversas em comunidades. O abortamento faz parte do ciclo reprodutivo das mulheres. Cerca de 20% das gravidezes terminam em aborto espontâneo e aproximadamente 500 mil mulheres recorrem à prática de forma clandestina todos os anos no Brasil. O procedimento com o uso de medicamentos tem menos riscos que o parto natural quando feito de forma segura, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). Ainda segundo a organização, a criminalização não impede que as mulheres deixem de abortar, só as leva a recorrer à prática de forma insegura.
Números
A cada minuto uma mulher recorre à prática do aborto no Brasil, conforme sinalizam os dados da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), publicada em 2016. São mais de 500 mil brasileiras por ano, estima-se que 200 a 500 morram. De acordo com dados preliminares do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), Santa Catarina registrou 31 óbitos maternos declarados em 2017, um deles por aborto. No mesmo ano, foram realizados 6440 procedimentos pós-aborto, como curetagem e aspiração intrauterina, segundo o banco de dados do Sistema Único de Saúde (SUS), Datasus. O número representa cerca de 3% do total desse tipo de procedimento no país.
Mesmo que a mulher tenha direito a um atendimento humano e sigiloso, conforme formaliza a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento do Ministério da Saúde, a porta do hospital ainda é a forma mais comum de criminalização, como apontaram levantamentos do Instituto de Estudos da Religião(ISER) e da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Em Santa Catarina, 21 pessoas foram denunciadas pelo crime nas delegacias do estado, em 2017, como informou a Secretaria de Segurança Pública (SSP).
Frente
A iniciativa tomou corpo a partir do ato de 28 de setembro (2017), Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe. Após essa data foram realizadas reuniões para mobilizar ações contra a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 181 e para a construção do “Encontro de Formação e Construção da Frente”, realizado no dia 20 de janeiro, em Florianópolis. No evento, cerca de 40 participantes de diferentes cidades do estado debateram o tema e definiram ações em consonância com a Frente Nacional contra a Criminalização de Mulheres e pela Legalização do Aborto.
Atuação da Frente envolve cinco eixos:
1) Democratização do acesso à informação sobre aborto e sobre o direito à realização pelo SUS nos três casos legalizados – estupro, risco à vida da mulher e feto anencéfalo;
2) Mobilização em torno da agenda de legalização integral do aborto, pela manutenção de direitos já conquistados e contra a sua retirada;
3) A compreensão do direito ao aborto como uma questão de saúde pública – a partir de uma concepção integral de saúde, que também considera as condições sociais e psicológicas – e também como um direito humano, de exercício de democracia e de autonomia na decisão sobre os próprios corpos;
4) Ações pelo fim da estigmatização do aborto e das pessoas que abortam – entendidas a partir de uma perspectiva das opressões de gênero, classe, raça, etnia, idade, deficiência e orientação sexual;
5) A desconstrução da ideia de que o aborto implica necessariamente um trauma com consequências psicológicas graves e seu entendimento enquanto parte da vida reprodutiva das pessoas que têm a possibilidade de gestar.