Mariana* tem 37 anos e é mãe de 3 filhos. Nas duas últimas gestações, teve diabetes e pressão alta, precisou passar por cesáreas. Desde então, usa pílula para não engravidar, já que seu médico disse que uma quarta gravidez poderia ser muito arriscada. Mas Mariana teve uma forte infecção na garganta e precisou de medicamentos. Com isso, a pílula falhou e ela engravidou novamente. Tinha acabado de voltar a estudar, está no segundo ano da faculdade e conseguiu até uma bolsa de estudos.

Desesperada, procurou na internet: “como abortar em casa”. Achou um vendedor de pílulas abortivas que cobrava R$120 por cada comprimido de Misoprostol e, para a Mifepristona, o preço era R$300. Ela fechou negócio, mas as instruções pareciam estranhas: diziam para usar algumas pílulas de Misoprostol via vaginal, outras debaixo da língua, não podia tomar nem água. Tinha que ficar deitada com as pernas para cima, fazer jejum por muitas horas, depois fazer agachamentos, abdominais e ducha vaginal. Pagou, mesmo morrendo de medo de que fosse golpe, e continuou pesquisando, para entender se aquele protocolo de uso do medicamento estava correto. Não estava.

Todos os meses, cerca de 40 mil brasileiras em situações semelhantes à de Mariana buscam a plataforma da safe2choose. Em 2022, quase 4 mil mulheres e pessoas que gestam passaram pelo serviço de aconselhamento de abortos. Milhares acabam resolvendo tudo sozinhas, entram no site só pra checar informação ou, ao identificar que a safe2choose não envia comprimidos abortivos, não fazem mais contato. 

A safe2choose é um projeto internacional sem fins lucrativos, que combate os abortos inseguros em 180 países, com 17 mil aconselhamentos anuais só nas Américas. As conselheiras multilíngues oferecem orientação segura e sem julgamentos para quem procura informação sobre métodos para interroper uma gravidez – em particular, aborto com medicamentos – em qualquer lugar do mundo. Escutam e acolhem para que as mulheres se sintam menos sozinhas.

Mulheres procuram aconselhamento

As pessoas que procuram a equipe de aconselhamento da safe2choose são majoritariamente mulheres. Algumas são menores de 18 anos, outras já têm netos. Existem aquelas que não têm dinheiro para a quantidade ideal de comprimidos e também as que buscam orientação para viajar e fazer o aborto em algum país vizinho onde o procedimento não é crime. São estudantes, empregadas domésticas, atletas, advogadas, profissionais de saúde, e praticam todas as religiões. Tem as que escrevem pedindo indicação de chás e as que perguntam: “sou dentista, se eu fizer uma receita, posso comprar esses medicamentos na farmácia?”. 

Embora não sejam vendidas em farmácias brasileiras atualmente, as pílulas abortivas, Misoprostol (o Cytotec) e Mifepristona (a RU486), são medicamentos muito seguros. Com informação e quantidade correta, o risco de complicação no primeiro trimestre de gravidez é menor que 1%. No entanto, o uso de uma quantidade de pílulas menor que o indicado pode levar a um aborto retido ou incompleto e a demora em procurar socorro, por medo da criminalização, pode transformar um caso simples em grave. 

Desamparadas diante de uma legislação excessivamente restritiva no Brasil, muitas mulheres passam por todo tipo de situação perigosa para interromper uma gestação indesejada. Mais do que os medicamentos em si, o que coloca as pessoas em perigo é justamente o aborto feito de maneira incorreta, cerceado pelo interesse financeiro de alguns vendedores de pílulas, pela dificuldade de comprar os remédios e pelo medo da denúncia. Ameaças e extorsão de parentes, profissionais de saúde e conhecidos são muito comuns. No fim, a restrição do acesso ao aborto só beneficia golpistas e traficantes de remédios, que lucram em cima do desespero e dos riscos.

Todo mundo ama alguém que já fez um aborto

Todas as pesquisas mostram que muitas mulheres abortam no mundo inteiro, independente da legislação local. Quanto mais acessíveis forem os medicamentos Mifepristona e Misoprostol, menor será o número de complicações. Em 2022, mais de 150 mil mulheres foram internadas em decorrência de abortos (espontâneos e provocados) no Brasil. Com informação e dosagem correta, menos de 1% das pessoas teriam precisado de cuidados hospitalares. Seguindo as orientações da OMS (Organização Mundial da Saúde) e da FIGO (Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia), é possível dar acesso à medicação com orientação para que o procedimento seja feito em casa com segurança, como já ocorre em diversos países do mundo onde abortar não é crime.

Em países onde é possível, a safe2choose faz a ponte com organizações e serviços de saúde locais que podem oferecer suporte emocional, acesso aos comprimidos ou outros métodos e apoio em caso de violência. No Brasil, muitas são as Marianas que chegam até a safe2choose para receber orientações e conselhos. Acolhidas e com a informação na mão, vão dar seus jeitos para conseguir os comprimidos. Por alguns dias, elas podem ficar em contato remoto com as conselheiras. Algumas inclusive voltam depois de tudo para contar como foi e dizer: você é a única pessoa com quem eu falei sobre isso.

Interromper uma gestação é um evento comum na vida da grande maioria das pessoas com útero, o silêncio em torno disso é que traz sofrimento e estigma. Desde que comecei a falar sobre isso com as pessoas ao redor de mim, tenho ouvido muitos casos, muitas histórias. Todo mundo ama alguém que já fez um aborto.

Por isso, a pergunta: se tantas mulheres abortam todos os dias, por que o Brasil não estaria pronto para falar sobre aborto? Converse com as pessoas ao seu redor e você também vai ouvir histórias inacreditáveis.

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Palavras-chave:
  • Shisleni de Oliveira-Macedo

    Cientista social, com mestrado em Estudos Feministas e de Gênero pela Universidade Paris 8 Vincennes-Saint Denis (França...

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