Em resposta à suspensão de médicas que trabalhavam no serviço de Aborto Legal do Hospital Vila Nova Cachoerinha, São Paulo, pelo Conselho Regional de Medicina (Cremesp), movimentos que atuam em defesa da justiça reprodutiva organizaram um ato na quinta-feira (16). Durante a manifestação, também foram entregues ao Conselho Federal de Medicina (CFM) uma carta e uma coroa de flores com a frase “em luto pelas mortes de mulheres e crianças causadas pelo CRM que impede o aborto legal e seguro”.
Participaram movimentos de mulheres, associações, sindicatos, mandatos de parlamentares progressistas e ativistas.
“Fomos à frente do Cremesp denunciar a criminalização dos profissionais da saúde, feita pelo conselho, mas também endereçada à Prefeitura de São Paulo, que divulgou prontuários ilegais de pacientes que foram atendidas no Vila Nova Cachoeirinha”, explica ao Catarinas, Tabata Tesser, integrante das Católicas Pelo Direito de Decidir. A socióloga destaca que a atuação do Conselho com a prefeitura configura violação de sigilo médico, além de perseguição e criminalização a quem executa e é atendido no serviço.
Maíra Bittencourt, do coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, explica que a ideia do ato foi utilizar elementos para chamar a atenção para a violação de direitos. “É um ato de repúdio à perseguição que o Cremesp vem fazendo em relação ao fechamento do serviço, perseguição às profissionais e retirada de prontuários, também associado à resolução do Conselho Federal de Medicina contra a qual a justiça precisou intervir”, coloca.
A integrante das Católicas pelo Direito de Decidir relata que, ao receberem a coroa de flores e observarem o ato, integrantes do Cremesp responderam com risadas e desdém. “A frase da coroa que denunciava justamente a morte de meninas e mulheres vítimas dessa criminalização por parte dos conselhos, foi arrancada e a coroa foi colocada na frente de um memorial de médicos mortos por Covid-19. Havia várias pessoas na varanda e nas janelas do Cremesp, dando risada, achando tudo aquilo uma brincadeira”, conta.
A socióloga aponta que este não é um comportamento esperado de um órgão que representa a classe médica.
“É muito sério que um conselho regional se comporte como se isso fosse um circo. A gente está falando da vida de meninas e de médicas e médicos que estão sendo criminalizados. Nos preocupa a situação de sarcasmo e ironia que o Cremesp vem adotando e se comportando como justiceiros e achando que a gente ainda está na inquisição. Nós fomos lá lembrá-los que não”, ressalta.
No início de maio, o Sindicato dos Médicos de São Paulo (Simesp) afirmou que profissionais do Hospital Vila Nova Cachoeirinha estavam sendo perseguidas depois que dados de pacientes foram acessados pela Secretária Municipal de Saúde.
“Hoje o serviço de aborto legal do hospital se encontra fechado por uma negligência da prefeitura de São Paulo que, em dezembro do ano passado, alegou falta de demanda e suspendeu os serviços. Apesar de dizer que era uma suspensão provisória, até o momento o serviço sequer foi reaberto. E há inúmeras tentativas da prefeitura de colocar à frente da gestão, por exemplo, médicas bolsonaristas, pessoas antidireitos das mulheres e contrárias à garantia do aborto legal”, explica Tesser sobre o cenário.
Carta ao CFM
Ao citar a resolução nº 2.378/2024 do CFM, que proíbe médicos de realizarem interrupção de gestação com mais de 22 semanas em caso de estupro, a carta descreve a posição como “retrógrada, desumana, antiética e anticiência”.
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No documento, as organizações destacam que o aborto legal em caso de estupro é previsto no Código Penal de 1940 e que a suspensão do serviço no Hospital Vila Nova Cachoeirinha, uma das principais referências no atendimento ao aborto legal no Brasil, prejudica crianças, adolescentes e mulheres.
“Não bastasse o fechamento do serviço de aborto legal do Hospital, profissionais que ali atuavam passaram a ser perseguidas e ameaçadas de terem seus registros profissionais suspensos, pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo, tão somente por efetivarem o melhor atendimento possível às vítimas de violência sexual, garantindo seu acesso à interrupção da gestação”, diz o documento.
A carta destaca que nos últimos 10 anos a média de partos de meninas com menos de 14 anos foi de mais de 20 mil por ano, sendo que 74,2% delas eram negras. Também que em 2023 o número de estupros de vulneráveis chegou a 36,9 casos para cada grupo de 100 mil habitantes, conforme dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
“As barreiras ao aborto legal são as principais causas deste dramático panorama, para o qual vossas senhorias contribuem, alegando, estranhamente, defender a vida de maneira desproporcional, insensível e enviesada, com esta recente resolução a respeito deste que é um verdadeiro problema social. Nosso sentimento diante de vossa postura não poderia ser outro que não fosse o de luto e forte indignação”, finaliza a carta.
O documento é assinado por Anis – Instituto de Bioética, Campanha Nem Presa Nem Morta, Católicas pelo Direito de Decidir, Cepia – Cidadania Estudo Pesquisa Informação e Ação, Cfemea – Centro Feminista de Estudos e Assessoria, Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular, Criola, Cunhã Coletivo Feminista, EIG – Evangélicas Pela Igualdade de Gênero, Grupo Curumim Gestação e Parto, Portal Catarinas, Rede Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos e Redeh – Rede de Desenvolvimento Humano.
Manifesto
Além do ato desta quinta-feira, organizações em defesa da justiça reprodutiva também organizam um manifesto e uma audiência pública em 28 de maio, Dia Internacional de Luta pela Saúde da Mulher e Dia Nacional de Redução da Mortalidade Materna. A audiência pública vai ocorrer na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
“Articulamos com movimentos estudantis uma audiência para fazer esse debate das questões dos direitos violados em relação ao aborto legal e dimensionando o que está acontecendo em relação à perseguição dos profissionais”, afirma Maíra Bittencourt, integrante do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde.
O manifesto da Frente Estadual pela Legalização do Aborto requer que a prefeitura de São Paulo garanta o acesso ao aborto legal com qualidade, retorne os atendimentos no Hospital Vila Nova Cachoeirinha, amplie o Programa Municipal de Interrupção Gestacional Segura, além de outros pontos que garantam política municipal integral de saúde sexual e reprodutiva.
Ao Cremesp, o documento demanda a interrupção dos processos administrativos contra profissionais que realizam aborto legal, a garantia que prontuários médicos não serão utilizados em sindicâncias sem expressa autorização judicial, e o fim da violência institucional contra defensoras dos direitos reprodutivos, entre outras questões.