Recusa na realização da cirurgia de esterilização definitiva coloca mulheres em risco de vida.
Luciane Alves Honorato tem 30 anos e quatro filhos, um de 10 anos, um de 5, um de 2 anos e outro de 45 dias. Todos os seus partos foram cesárea, pois, segundo informado pelas/os médicas/os, ela não tinha dilatação suficiente para o parto natural. Desde a segunda cesárea, ela tenta realizar a laqueadura, uma cirurgia de esterilização permanente, mas a burocracia, a falta de informação e a negação do atendimento por hospital de Itajaí a impediram de acessar seu direito.
Aos 25 anos, durante a segunda cesárea, ela desejou realizar a cirurgia de laqueadura para não correr o risco de engravidar novamente. No entanto, na época, foi orientada que não poderia devido à idade (pela Lei, aos 25 anos já se pode realizar o procedimento) e ao fato de seu marido não querer assinar o documento que dava o consentimento.
Após três anos, já divorciada e em um novo relacionamento, Luciane engravidou novamente. No dia do parto, quando perguntou ao médico sobre essa possibilidade, ele disse que ela precisaria de alguns documentos, que ela não tinha.
“Quando eu cheguei na hora do parto o médico me falou que se eu tivesse um documento oficial ele faria. Mas eu não sabia que tinha que ter o documento oficial. Aí ele falou que a minha médica tinha sido negligente, porque tinham que ter me explicado que eu tenho risco, que eu não posso ter uma cesárea em cima da outra, que isso é risco, que os tempos são muito perto um do outro”, relata.
Um ano e três meses depois, ela engravidou novamente. “Aí engravidei desse quarto filho. Eu estava tomando o anticoncepcional, mas engravidei mesmo assim. A enfermeira disse que meu corpo rejeita o remédio”, explica. Dessa vez, uma enfermeira a ajudou no processo de conseguir toda a documentação necessária durante a gestação para garantir seu direito à laqueadura no momento do parto do quarto filho.
Recebeu uma carta da enfermeira, que a encaminhava para a assistente social do Centro de Referência em Saúde da Criança e da Mulher (CRESCEM), do município de Itajaí. Recolheu consentimento do companheiro, autenticou em cartório e entregou tudo para a assistente social. Apesar dos percalços, que envolveram o período de férias da servidora na véspera do parto de Luciane, ela conseguiu receber o ofício a tempo de dar entrada no hospital.
“Eles já tinham me dado a carta para eu ter o bebê, porque era de risco, mas eu estava esperando ela voltar porque eu tinha certeza que esse documento ia sair. Eu tinha certeza que Deus ia estar do meu lado. Aí ela avisou que sim, que tinha saído o documento. Ela foi na sexta-feira à noite pegar o documento e no sábado de manhã, às pressas, veio trazer aqui para eu poder levar junto ao hospital, porque eu já estava bem mal e já tinha que ir pra lá”, conta.
No relato de Luciane, a fé em conseguir o documento a manteve esperançosa até o último minuto. Munida de tudo o que precisava, deu entrada no Hospital e Maternidade Marieta Konder Bornhausen, de Itajaí. Passou pela triagem, mostrou os documentos a uma enfermeira e foi informada, de imediato, que seu caso era de alto risco, que sua sorte era não estar em trabalho de parto, pois tanto ela quanto o bebê corriam risco de vida.
“Aí eu disse ‘olha, eu trouxe um documento oficial que mesmo eu não estando em trabalho de parto, eu não tenho como ter parto normal. Esse é meu quarto parto, e todos foram cesárea, porque eu não tenho abertura’. E disse: ‘eu tenho um documento oficial aqui da laqueadura, se tiver algum problema, vocês me liberam pra eu ir para Navegantes, porque eu preciso fazer essa laqueadura porque eu sou gestante de alto risco’. Aí ela me falou para ficar calma que ia explicar meu caso para a médica e iam fazer todo o possível”, conta Luciane.
Em seguida, a gestante foi encaminhada para uma sala, onde a examinaram. “Quando eu vi, elas já estavam falando que estavam me preparando para o parto”, relata.
Após perguntar se a médica havia visto o documento que autorizava a laqueadura, Luciane conta que houve desacordo entre a equipe, pois uma parte queria realizar o procedimento e outra parte não. “Quando elas entraram, uma falava assim ‘eu vou fazer porque eu não vou assumir responsabilidade e depois ter problemas comigo, com o nosso plantão’, e a outra falou ‘não vou fazer porque é contra as normas do hospital’. Aí decidiram ligar para a coordenação para pedir autorização e a coordenação recusou, falou para elas não fazerem porque aquele Hospital há dez anos não fazia, porque as irmãs – é um hospital de irmãs católicas – não permitiam. Então foi assim, fizeram meu parto às pressas, falaram que é muito complicado, um monte de coisas lá e não fizeram a laqueadura”.
Laqueadura deve ser feita durante o parto em caso de cesáreas anteriores e risco de morte
Sucessivas cesáreas resultam em risco para a vida das gestantes, caso engravidem novamente. De acordo com Maria Esther Vilela, médica obstetra integrante da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, já na terceira cesariana a mulher tem direito à laqueadura durante o procedimento cirúrgico. Entre os riscos estão a ruptura uterina e acretismo placentário. A ruptura uterina pode ocorrer por ser um útero que foi muito cortado e a cicatriz uterina é muito frágil. Já o acretismo placentário, que é quando a placenta fica colada ao útero e não se consegue soltar, pode ocorrer devido à cesárea anterior.
Segundo a médica, “o acretismo placentário tem sido uma causa de morte materna muito importante, por conta do número de cesáreas que a gente tem”, explica.
“Uma mulher com terceira cesárea tem direito a ser laqueada durante a cesariana. O que acontece é que, às vezes, a mulher não tem informação de que tinha que fazer uma ata, que tinha que assinar essa ata dois meses antes do parto, pra chegar na hora e fazer”, orienta.
No caso de Luciane, que tinha todos os documentos em mãos no momento do parto, o que houve por parte do Hospital Marieta foi negligência com a vida dela. De acordo com Vilela, que foi coordenadora da Área Técnica de Saúde da Mulher do Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas do Ministério da Saúde, de 2011 a 2017, tanto o hospital quanto o município deveriam ser indiciados por essa negação do atendimento correto à ela.
“Isso é crime. Imagina uma mulher na quarta cesárea, com tudo certinho, e eles não fazem o procedimento. Esse hospital não pode continuar fazendo tão mal assim às mulheres. Eles estão expondo essa mulher ao risco de morte numa próxima gravidez, porque com quatro cesáreas, se ela engravidar, o risco de uma acretismo placentário é enorme. Eles não deveriam ter feito a cesárea se eles não podem fazer a laqueadura, tinham que falar ‘olha, a cesárea vai fazer em outro lugar’. O que também é um absurdo. Eles deveriam ser descredenciados para cuidar das mulheres nos seus processos reprodutivos. E quem é responsável por isso é a Secretaria de Saúde. Os dois têm que ser indiciados quanto a essa responsabilidade que pode levar à morte”, defende.
Hospital Marieta se nega a realizar o procedimento alegando razões religiosas
O caso de Luciane não é exceção. Josemeiri Dal Aqua, 43 anos, que teve uma gravidez há 5 anos, quando tinha 38, fez o pré-natal pelo SUS e particular e descobriu que com plano de saúde é possível fazer a vídeo laqueadura.
“Eu fiquei surpresa com aquilo, porque até então os médicos nunca conversam com você sobre isso, seja na rede pública ou privada. E eu levei aquele baque. Eu, com instrução, terceiro grau, não sabia que podia correr atrás disso. Aí no decorrer da gravidez, como eu me deparava com mulheres com três, quatro filhos e perguntava se não ofereciam laqueadura, aí me diziam que no Marieta não faziam laqueadura, que tinha que ir para outro hospital, em Penha, coisa assim. E nunca foi oferecido nada pra essas pessoas. Eu fiquei extremamente chocada com aquilo. Eu não sabia dos meus direitos, e nem essas pessoas com três, quatro filhos”, relata.
Na época, Josemeri, já com quase 40 anos de idade, tentou conseguir autorização para realizar a laqueadura após o parto de sua terceira filha, mas precisou viajar para outra cidade para ter esse direito respeitado.
“Aí eu fiz o pré-natal e comecei a pesquisar. Eu ia ganhar no Marieta e queria fazer a laqueadura junto. E eles falaram: ‘Não, aqui no Marieta não faz. Aqui você ganha [o filho] e depois você vai batalhar pelos seus direitos de fazer [a laqueadura] lá em Penha’. Eles mandavam para Penha naquela época. Eles diziam que o hospital era um hospital católico e que o médico não fazia laqueadura lá. E aí entre correr o risco de eu ganhar mais um filho e passar por mais uma cirurgia ou chegar a ter uma outra gravidez, eu preferi ir pra cidade dos meus pais, que é Curitiba, e ganhar lá e fazer todo o processo”, conta.
“Eu fico frustrada em saber que um hospital que atende pelo SUS não faz laqueadura na pessoa que pede. Eu acho uma injustiça. Até aqui teve um caso de uma mãe que tinha dois, três filhos, depois veio a óbito, porque é o próprio organismo que não comporta. A pessoa tem um problema na gravidez e acaba o filho ficando órfão porque o Estado não deu respaldo necessário para a mãe”, lamenta.
O Hospital Marieta é gerenciado pelo Instituto das Pequenas Missionárias de Maria Imaculada (IPMMI), fundado por Madre Maria Teresa de Jesus Eucarístico, com sede em São José dos Campos/SP.
De acordo com o site do estabelecimento, “é uma obra filantrópica com atuação nas áreas de saúde e assistência social” e “está presente em quatro estados brasileiros (São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina e Mato Grosso), além de prestar missões na Itália, Portugal e no continente africano”. O IPMMI administra cinco hospitais, cinco recantos para idosos/as, casa de retiro, obras sociais, residências episcopais e atividades pastorais nas diversas Dioceses.
Em Itajaí, município de 220 mil habitantes localizado no litoral norte de Santa Catarina, o Hospital Marieta é a única maternidade que atende pelo SUS. Apesar disso, o hospital não é cadastrado no Ministério da Saúde para a realização de esterilização voluntária em mulheres ou pessoas com útero. Dessa forma, não existe nenhum registro, nos últimos dez anos, de laqueadura no sistema do SUS (DATASUS).
De acordo com a Defensoria Pública de Itajaí, o hospital Marieta teria as condições técnicas para a realização do procedimento.
“O hospital se recusa a realizar o procedimento, sustentando que a unidade não possuiria habilitação junto ao SUS para realização do mesmo. Ocorre que a leitura da Portaria do Ministério da Saúde sobre o credenciamento das unidades hospitalares para realização da laqueadura evidencia que não há, do ponto de vista técnico, nenhum impedimento para que o hospital realize essa habilitação. Então, temos um contexto em que as mulheres que desejam (ou necessitam) do procedimento, que é um direito assegurado pela Lei de Planejamento Familiar, simplesmente não conseguem realizar ele aqui em Itajaí”, explica Fernando André Pinto de Oliveira Filho, defensor público titular da 7ª Defensoria Pública de Itajaí.
Conforme aponta o defensor, é de conhecimento público que a única razão de o Hospital não realizar o procedimento é a questão religiosa.
“O hospital não faz esse serviço de laqueadura, seja no momento do parto ou não, mas a gente sabe que tem, também, um componente religioso nisso tudo. É um hospital administrado por uma irmandade de freiras, e já tiveram notícias publicadas na imprensa sobre essa recusa estar ligada à questão religiosa”, recorda Oliveira Filho.
Em 2008, o Conselho Municipal de Saúde questionou o Hospital Marieta sobre a negação de procedimentos de laqueadura em suas pacientes, ao que o Hospital respondeu, em ofício, que “no fiel cumprimento das disposições canônicas, não pode exercer atividades relacionadas com a esterilização planejada para evitar a gravidez”.
“O hospital acabou saindo pela tangente com essa história de não ter a habilitação para fazer a laqueadura. Essa habilitação é algo que depende do hospital, que só precisa fazer um cadastro e solicitar. Mas ele nunca quis solicitar. A justiça entende que como ele não é habilitado, ele não tem obrigação de fazer e não teria nenhuma sanção ou consequência. A Defensoria Pública enfrenta enormes dificuldades em Itajaí para assegurar às mulheres o direito de esterilização definitiva, principalmente quando há necessidade de que a laqueadura seja realizada no momento imediatamente posterior ao parto, por expressa indicação médica”, lamenta.
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Procurado por esta reportagem, o Hospital Marieta informou, por meio de nota oficial enviada pela Assessoria, que “é referência em procedimentos de alta complexidade em diferentes especialidades médicas. Desta forma, procedimentos mais simples são realizados em outras unidades hospitalares”.
Lei do Planejamento Familiar garante o direito à laqueadura pelo SUS desde 1996
De acordo com o Artigo 226 da Constituição, parágrafo 7º, é direito de todo e toda cidadã o planejamento familiar e a escolha do método contraceptivo que melhor se adequar ao seu corpo e rotina. “[…] o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”, assegura a Constituição.
A chamada “Lei do Planejamento Familiar” (Lei federal n° 9.263/96) prevê como um dos métodos contraceptivos disponíveis pelo SUS a esterilização voluntária, que é feita através de dois procedimentos principais: a laqueadura (ligamento de trompas) e a vasectomia (procedimento cirúrgico realizado em ambulatório, que consiste em um pequeno corte bilateral da bolsa escrotal, e corte e bloqueio dos ductos deferentes, por onde passam os espermatozoides).
A cirurgia de laqueadura tubária ou “ligadura de trompas”, como é também conhecida, é um processo de esterilização feminina realizada por meio de uma cirurgia que corta ou amarra as trompas (também conhecida como tuba), canal que liga o útero aos ovários. Ao obstruir esse canal, impede-se o encontro do óvulo com o espermatozoide.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), este é um dos métodos contraceptivos mais eficazes, apresentando risco de falha de 1 gravidez a cada 100 mulheres no primeiro ano após a realização do procedimento de esterilização (5 a cada 1.000).
A cirurgia pode ser feita de duas formas: por laparotomia, em que se faz um corte na região abdominal, ou laparoscopia, menos invasiva por ser feita com câmera por meio de três pequenas incisões no abdômen. O SUS realiza apenas a laparotomia, o procedimento dura 40 minutos e requer 10 dias de repouso pós-cirúrgico.
Na rede de saúde privada, desde 2008 a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regula os convênios médicos, tornou obrigatória a laqueadura no rol de procedimentos que os convênios precisam oferecer, cumprindo as mesmas regras da lei federal.
Regras para a realização da laqueadura
A realização desse tipo de procedimento, por ser irreversível, deve obedecer a algumas regras, conforme a legislação vigente.
No caso de pessoas saudáveis, com capacidade civil plena, só é autorizada a realização da esterilização (laqueadura ou vasectomia) quando forem maiores de 25 anos ou tiverem pelo menos dois filhos vivos. Nesse caso, é dado um prazo mínimo de dois meses (60 dias) entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual a pessoa interessada participa de reuniões sobre planejamento familiar, que incluem aconselhamento por equipe multidisciplinar visando desencorajar a esterilização definitiva.
A Lei também exige que, existindo “sociedade conjugal”, se apresente documento de consentimento expresso de ambos os cônjuges.
A lei veda a esterilização cirúrgica na gestante durante o parto ou aborto, exceto nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores. Em caso de risco à vida ou à saúde da gestante ou do futuro concepto, é possível a realização do procedimento durante o parto, desde que atestada essa condição em relatório escrito e assinado por duas/dois médicas/os.
Município é obrigado a ofertar o serviço
Por ser um serviço previsto no SUS, é responsabilidade do gestor municipal prover as condições para que as mulheres tenham acesso.
“A responsabilidade é do secretário de saúde e sua equipe para contratualizar esse serviço em algum hospital local. É um serviço que uma cidade que tenha minimamente um hospital tem condições e obrigação de oferecer às mulheres. É um direito humano, um direito sexual e reprodutivo, um direito inalienável das mulheres. Não é hospital que tem que falar eu ‘faço’ ou eu ‘não faço’. É o gestor que tem que falar onde é que vai fazer, porque ele tem obrigação de oferecer esse serviço”, explica Maria Esther Vilela.
Devido às recusas do Hospital Marieta, em Itajaí, a Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina tem ajuizado ações contra o município para que as mulheres tenham acesso à laqueadura durante o parto. De acordo com Fernando Oliveira Filho, só de janeiro a julho de 2021 já foram ajuizadas 9 (nove) ações de mulheres que desejam realizar a laqueadura durante o parto.
“Temos recebido demandas de mulheres que estão grávidas, têm indicação de cesárea, já fizeram outros partos via cesárea anteriormente, e estão com indicação médica de fazer o procedimento de laqueadura durante o parto. Só que, como o hospital Marieta não realiza, as mulheres não sabiam o que fazer. Então, nós começamos a ajuizar essas demandas. Em princípio contra o hospital, mas como ela não tem habilitação, a juíza entendeu que eles não poderiam ser colocados como opção, então ajuizamos contra o município. O município é obrigado a promover o encaminhamento”, explica.
Itajaí, por sua vez, encaminha essas mulheres para outras cidades da região. Segundo a Secretaria Municipal de Saúde, os hospitais que têm pactuação com o município para a realização desse procedimento são o Hospital Cirúrgico de Camboriú, em Camboriú, e o Hospital Nossa Senhora da Penha, em Penha.
De acordo com a Secretaria, nos últimos dez anos (de 2010-2020) foram realizados 223 procedimentos de laqueadura em mulheres residentes em Itajaí. “Um dos motivos desse número é que o Município de Itajaí não tem hospital habilitado pelo Ministério da Saúde para realização de laqueaduras. Com isso, é necessário encaminhar as pacientes para hospitais de cidades vizinhas, conforme a pactuação existente no Estado de Santa Catarina”, informou.
Segundo a Secretaria, todas as unidades básicas de saúde de Itajaí podem solicitar o procedimento de laqueadura para as mulheres interessadas. As usuárias que optarem por este método serão encaminhadas para o Centro de Referência em Saúde da Criança e da Mulher (CRESCEM), também no município, para dar início aos trâmites burocráticos de documentação para a cirurgia.
Laqueadura não é um procedimento ofertado pelo serviço de saúde historicamente
Apesar das denúncias, Santa Catarina não se destaca entre os estados com menores taxas de laqueadura feitas na última década. Enquanto SC registrou 11.874 procedimentos, Amapá e Alagoas, por exemplo, registraram 156 e 207 procedimentos, respectivamente.
Ainda que os dois estados tenham população menor ao catarinense, essa discrepância demonstra duas possibilidades: ou a laqueadura como método contraceptivo não é ofertada, ou as mulheres e pessoas que gestam estão tendo acesso e preferindo outros tipos de métodos contraceptivos.
Entre as gestoras e especialistas que ouvimos para esta reportagem, a compreensão de que esse não é um problema novo foi unânime.
De acordo com Lígia Cardieri, socióloga e sanitarista, feminista e ex-gestora municipal do SUS, desde a Lei 9.263/96, o SUS deve garantir essa opção às mulheres e homens para seu planejamento reprodutivo.
“A laqueadura e a vasectomia precisam ser realizados em ambiente hospitalar, mas são procedimentos bastante simples. Pela Lei, é direito das pessoas, o SUS deveria oferecer. Se o hospital faz ginecologia e obstetrícia, deveria, por obrigação, ser incluída a laqueadura, porque muitas vezes ela é necessária até por questão de saúde, para a vida da mulher, não é só um método de controle a pedido da mulher. Então, se o hospital tem médico para fazer parto e cesariana, ele tem condições técnicas de fazer a laqueadura. A vasectomia é ainda mais simples, pode até ser feita ambulatorialmente”, explica.
No entanto, os procedimentos de esterilização voluntária não são oferecidos, historicamente, às cidadãs e cidadãos brasileiros. Segundo ela, é preciso um movimento para garantir acesso a essa demanda.
“Nos anos 1980 foi bem forte a discussão sobre a laqueadura. Primeiro, sem mostrar as contraindicações para as mulheres, não se oferecia outros métodos, não se oferecia a vasectomia, que é muito mais simples (no corpo dos homens) e, também, havia uma questão ideológica: a direita sempre dizendo que a culpa da pobreza é que as mulheres tinham muitos filhos. Antes da Lei, o SUS não fazia, então isso era usado como brinde ou em troca de voto em determinado candidato. Se faziam filas nos comitês eleitorais para ganhar a laqueadura. Uma bandeira importante já naquela época, do movimento feminista, era isso: oferecer todos os métodos. A criação do SUS e a regulamentação da Lei que prevê que o direito à anticoncepção inclui todos os métodos, inclusive laqueadura e vasectomia, que devem ser oferecidas pelo SUS, foi uma vitória importante”, relata.
De acordo com Maria Esther Vilela, é dever do Estado ofertar todos os métodos contraceptivos existentes no mercado para que a pessoa possa fazer seu planejamento reprodutivo.
“Quando a cidade tem oferta de métodos reversíveis, um DIU, um anticoncepcional injetável, se deve oferecer essas opções. A laqueadura, por ser irreversível, pode gerar arrependimento, especialmente quando se faz quando muito nova. Mas é uma opção, até para que as mulheres não fiquem sujeitas aos hormônios, que têm seus efeitos colaterais. Mas tem que se lidar com as necessidades reprodutivas de cada pessoa. E oferecer para as mulheres as várias opções de métodos contraceptivos. Não só às mulheres, mas aos homens também”, defende.
Laqueadura Sem Filhos Sim
Patrícia Marx é advogada e criadora do perfil no Instagram @laqueadurasemfilhossim. Segundo ela, quando descobriu a dificuldade de realização desse direito reprodutivo, ela decidiu criar a página para orientar outras mulheres.
“Ao perceber a carência de informação sobre o direito aos métodos contraceptivos, sobre a laqueadura, percebi que mesmo para mim, sendo privilegiada, foi difícil conseguir, imagine para uma mulher que vive em situação de vulnerabilidade. Eu fiz pelo plano de saúde, após não me adaptar ao DIU mirena. Minha ginecologista sugeriu a laqueadura pois ela sabia que eu já poderia fazer. Mas, como ela não operava, decidiu me ajudar a encontrar um médico que fizesse. E foi muito difícil”, conta.
De acordo com sua experiência, a dificuldade maior foi o preconceito e a desinformação dos próprios médicos.
“Os médicos diziam que jamais fariam isso em mim porque eu era nova e tinha apenas 29 anos, 30 anos, diziam que o pior pecado que poderiam cometer seria tirar ‘a única função de uma mulher’ ao me esterilizar. Que eu ia me arrepender e ia querer ser mãe, porque segundo eles não haveria nada mais lindo que a maternidade. Por isso criei a página, para conscientizar sobre a maternidade compulsória, mostrar que não somos obrigadas a exercer a maternidade e nem a parentalidade”, relata.
Em sua atuação nas redes, a advogada diz que tem encontrado mulheres com a mesma insegurança. “Hoje, no Instagram, pude perceber que muitas mulheres chegam assim, sentindo-se fracas, tristes, amargas, infelizes por ninguém respeitá-las. Umas perguntam: ‘que mal eu fiz? Só não quero ser mãe, quero viver em paz’, outras choram por causa da crueldade das palavras usadas por alguns médicos. Eu tinha medo de judicializar por falta de informação. Apesar de ser advogada, tive medo de conseguir um médico e ele fazer de má vontade ou algo assim. Nós somos muito recriminadas, então vivemos em uma espécie de opressão”, analisa Marx.
O que fazer se tiver o direito negado
A advogada Patrícia Marx orienta o que se pode fazer se o direito ao planejamento reprodutivo, por meio da escolha da laqueadura, for negado.
1. Registre o nome, especialidade e número do Conselho Regional de Medicina (CRM) do médico, o nome do posto de saúde ou hospital do atendimento, o horário da consulta e a conduta do médico se portou;
2. No caso do SUS, tenha em mãos o número da carteira do SUS, ligue na ouvidoria do Ministério da Saúde (número 136), escolha a opção “Reclamação” e descreva tudo o que aconteceu durante o atendimento (como foi a consulta e qual foi a alegação do médico) e informe que tem conhecimento sobre a Lei de Planejamento Familiar (Lei 9263/1996);
3. No caso do convênio médico, ligar na central de atendimento do convênio (que você pode consultar aqui) para relatar o ocorrido e solicitar indicação de médico que realize o procedimento. Caso haja encaminhamento para outro médico que não realiza a cirurgia, registrar reclamação na ouvidoria da ANS (0800 701 9656);
Também é recomendado realizar a denúncia na ouvidoria da Secretaria de Saúde do seu Município.
De acordo com Marx, os processos normalmente são resolvidos dentro desses passos. Caso contrário, é necessário acionar a Justiça. Para pessoas que têm renda familiar até três salários mínimos, é possível acionar a Defensoria Pública. Caso exceder, é necessário contratar um advogado particular;
Em caso de a pessoa se sentir ofendida ou sofrer algum abuso durante a consulta, Patrícia orienta que se registre uma reclamação no Conselho Regional de Medicina de onde mora. “Explicamos os dispositivos legais lá no Instagram, com vídeos e destaques para que entendam onde o direito foi lesionado”.