Filhas da Terra: a situação dos Povos Guarani, Kaingang e Xokleng/Laklanõ em SC
Desde os tempos imemoriais residem nas terras que, hoje, formam o estado de Santa Catarina os Povos Guarani, Kaingang e Xokleng/Laklanõ e, atualmente, os Xetá e os Charrua. Os modos de vida desses diferentes grupos foram invisibilizados pelo processo de colonização e as consequências dessa espoliação histórica se agravam com a vulnerabilidade causada pela pandemia de coronavírus.
Para enfrentar esta situação no início da pandemia foi criada a Frente Indígena e Indigenista de prevenção e combate do coronavírus (Covid-19) em terras Indígenas da região Sul do Brasil com diversas instituições indígenas e não indígenas em uma rede de apoio contra a Covid-19. A iniciativa recebe e distribui doações em alimentos, máscaras, álcool em gel e presta auxílios emergenciais necessários para este momento.
No Oeste de Santa Catarina há 576 casos notificados de coronavírus, 13 casos suspeitos, 238 descartados, 325 confirmados e 4 óbitos entre indígenas, segundo o informe epidemiológico (20/07) do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI – Interior Sul). A taxa de letalidade é de 1,23 a cada cem mil habitantes. São 171 casos ativos, 150 curados, com um índice de cura de 46,15%. No Brasil, de acordo com o primeiro boletim divulgado em 24/07, são 18.241 casos confirmados entre indígenas, com 572 mortos em 145 diferentes povos, segundo a Plataforma de monitoramento da situação indígena na pandemia.
Por conta da continuidade da doença e do aumento do número de casos em Terras Indígenas (TI), hoje (24), será lançado o Planejamento regional para o combate à pandemia COVID-19 Região Sul_v1 (1), uma mobilização da Arpinsul Indígenas, Conselho de Missão entre Povos Indígenas (COMIN), da Comissão Guarani Yvyrupa – CGY e da Frente Indígena Covid19. A ação é vinculada ao Plano Emergência Indígena da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).
Intitulado “Plano regional de enfrentamento à pandemia de Covid-19 entre povos e territórios indígenas na região Sul: proposta do movimento indígena e indigenistas para salvar vidas” a iniciativa pretende fazer a gestão colaborativa desta crise que prevê ações para a segurança alimentar e nutricional. Entre as medidas estão a garantia do acesso a recursos básicos para a saúde, como água de qualidade e saneamento básico, além de iniciativas de atenção à saúde para o enfrentamento da pandemia, entre outros cuidados e tratamentos voltados às Terras Indígenas (TIs) .
“Os povos indígenas da região sul, assim como todos os povos indígenas do Brasil, têm seus direitos garantidos na Constituição Federal de 1988 e reiterados em tratados internacionais, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Nós estamos sob risco imediato e é urgente ações consistentes e planejadas para a prevenção e contenção da Covid-19”, diz trecho do documento.
POVO KAINGANG NO OESTE
No Polo Base de Ipuaçu, Oeste do estado, região com mais de 5 mil indígenas Kaingang, há uma equipe de saúde multidisciplinar formada por enfermeiras/os, técnicas/os de enfermagem, farmacêutica, assistente social, psicóloga e nutricionista, além de uma equipe complementar. Nas seis Unidades de Saúde Indígenas (USI) a maioria dos profissionais que atuam são indígenas, uma reivindicação do povo.
Na região são 14 aldeias reconhecidas e mais três aldeias cadastradas como novas ocupações entre os municípios de Entre Rios e Ipuaçu, com mais de 50% da população considerada indígena.
Osana Gonçalves, assistente social Kaingang do Pólo Base de Ipuaçu trabalha na saúde indígena há mais de 25 anos, muitos deles como técnica de enfermagem. Ela diz que nunca havia passado por uma situação tão preocupante na área da saúde indígena como a da pandemia de coronavírus. Atualmente são 364 infectados, 230 curados, 4 óbitos e 130 casos ativos na região (Dados de 21/07). Os casos no Pólo Base TI Xapecó em três aldeias Kaingang, sendo Aldeia Kondá, Toldo Chimbangue e Toldo Pinhal, com mais de 1600 indígenas, não foram oficialmente divulgados, mas os dados extraoficiais apurados apontam atualmente 321 casos (dados de 13/07).
“Há discriminação. É um momento difícil para as famílias. Hoje, os indígenas não estão adoecendo somente por conta da covid, mas também por doenças de saúde mental. Adoecem porque não entendem todo esse processo, pelas dificuldades que estão enfrentando durante esta pandemia. Eu acho esse um dos momentos mais difíceis, mas eu espero que a gente venha a aprender. Para mim está sendo o maior desafio da minha vida, compreender e me adaptar a tantas mudanças e orientar as pessoas, o que não é nada fácil. Mudar não é fácil”, afirma a assistente social Osana Kaingang. Ela está preocupada com a falta de recursos causados também pela proibição do comércio de rua para a venda do artesanato indígena.
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Uma de suas colegas de trabalho, a Agente Indígena de Saúde Senira Coito, 44 anos, é uma das primeiras pessoas contaminadas que veio a óbito. Acredita-se que a falta de testes contribuiu para a disseminação da doença. O vírus se espalhou rapidamente a partir dos primeiros casos, diagnosticados também entre trabalhadores indígenas da agroindústria de frigorífico de aves, atual GTB Foods, em Ipuaçu.
Segundo a assistente social, de 215 indígenas testados 70 pessoas estavam positivas para o coronavírus. Algumas foram afastadas durante dez dias para tratamento de saúde e retornaram ao trabalho, outras foram demitidas. Há outros indígenas que trabalham em frigoríficos da agroindústria, o que é uma característica da região de fronteira com o Rio Grande do Sul.
Além de medicamentos caseiros tradicionais como chás e garrafadas os doentes que estão em tratamento recebem antiviral, analgésico e anti-inflamatório. Há uma atenção especial a pessoas do grupo de risco como gestantes, idosos e pessoas com diabetes. “Conversando com uma sábia da medicina indígena ela me disse que tem feito muito remédio tradicional para o pessoal da comunidade. Ela está indo buscar muito remédio do mato para fazer para o pulmão, para doença respiratória, para imunidade. Eu acho que isso tem ajudado bastante”, comenta.
Osana conta que agora está disponível seis mil testes rápidos e receberam doação de 10 mil máscaras de tecido, entre outros itens e também alimentos. As doações ocorreram por meio parcerias entre a Frente Indígena e Indigenista de prevenção e combate ao coronavírus (Covid-19), Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI – Interior Sul), Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Secretaria de Desenvolvimento Sustentável e Assistências Social dos Municípios. Uma ação conjunta entre DSEI e o exército preparou cem leitos para o isolamento de infectados na Escola Indígena de Educação Básica Cacique Vanhkre, mas até o momento não foram ocupados.
POVO XOKLENG/LAKLANÕ NO VALE NO ITAJAÍ
A Terra Indígena (TI) Xokleng/Laklanõ possui 37 mil hectares, está dividida em 10 aldeias em um território pertencente a quatro municípios: José Boiteux, Dr. Pedrinho, Itaiópolis e Vitor Meireles. Foram montadas barreira sanitárias na entrada de cada aldeia para controlar o acesso e conscientizar sobre a importância de manter o distanciamento e fazer o isolamento social. O povo ainda não teve acesso a máscaras, álcool em gel e materiais de higiene. Os órgãos competentes das prefeituras da região têm desconsiderados a questão de saúde indígena. Atualmente a população está estimada em 2.500 pessoas. Não há casos de coronavírus dentro da TI, mas há casos em locais próximos das aldeias. Os órgãos
“As prefeituras nada têm feito para ajudar a população indígena. Os caciques estão em todos os momentos cobrando medidas cabíveis para ajudar o povo neste momento de pandemia, mas ainda não obtiveram respostas. O ideal seria se os os órgãos responsáveis pela saúde indígena ajudassem na conscientização e distribuíssem materiais como álcool em gel, máscaras, mas nada foi feito. Os prefeitos também não fazem nada e ainda não aceitam as barreiras sanitárias dentro das aldeias”, conta Walderes Coctá Pripra.
Em cada aldeia há um posto de saúde onde trabalham agentes de saúde, técnicos em enfermagem e motoristas, a maioria indígenas Xokleng/Laklanõ. Em uma parceria com os professores das escolas fazem campanhas levando informações aos moradores sobre a pandemia. Na Aldeia Bugio, onde Walderes, mora estão sendo feitas visitas aos mais velhos e chás pela medicina tradicional.
“Os anciãos recebem a nossa visita um vez por semana para eles não se sentirem sozinhos, usamos nossa medicina tradicional, são os remédios, chás feitos com as ervas do mato, conhecimento passado de geração a geração”, explica a indígena.
Walderes trabalhou 12 anos como professora em uma escola na comunidade e atualmente está cursando mestrado em História na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Dentro da linha de pesquisa etnohistória, história Indígena e arqueologia, ela faz um levantamento sobre os locais de memória do Povo Laklãnõ, por onde os antepassados viveram para construir mapas dos locais que contam a história de seu povo. A pesquisa já está em fase final.
POVO GUARANI
No momento em Santa Catarina não há casos de Covid-19 confirmados entre os Guarani, segundo Kerexu Yxapyry. No Oeste houve um caso confirmado na aldeia Linha Limeira, Município de Entre Rios, mas a pessoa está curada. No estado a estimativa populacional Guarani é de 9 mil pessoas.
“Estamos bastantes preocupadas/os com toda essa situação e a melhor forma protetiva da comunidade até agora está sendo o isolamento social, estamos criando barreira comunitárias. Tememos que se alguém pegar o coronavírus, automaticamente toda comunidade estará contaminada. Nossa saúde pública voltada para atendimento específico dos povos indígenas está muito precária, os hospitais já enviaram documento para a Sesai avisando que não estão mais atendendo ninguém porque o hospital está superlotado”, assinala Kerexu.
Kerexu conta que no Oeste do Paraná houve um foco na aldeia Ocoy, próximo a Itaipu, onde 78 pessoas foram contaminadas e testaram positivo para o Covid-19. Em São Paulo a situação é crítica com 4 óbitos entre as aldeias Tenonde Porã e Jaraguá, e mais 3 nas aldeias Tupi-Guarani em Peruíbe. As aldeias no Rio de Janeiro passam por um surto na região, onde há um senhor idoso entubado e outras pessoas em tratamento. No Rio Grande do Sul não há informações sobre contaminados entre os Guarani e há dificuldade de acesso a essas informações.
“Nós estamos acompanhando com as lideranças via Polo Base de cada região porque não existe um boletim especificamente do Povo Guarani. Temos o boletim da APIB que é de todos os Povos do Brasil. Dos 6 estados do território Guarani não temos notificação do caso no Rio Grande do Sul nem no Espírito Santo”, relata com preocupação.
Para contribuir com a saúde indígena o Centro de Formação Tataendy Rupa, está fazendo uma campanha emergencial de financiamento para a construção de espaço de Saúde Texai Renda que terá uma Casa de Parto e acolhimento às gestantes. Na Terra Indígena (TI) Morro dos Cavalos, situada no município de Palhoça (SC), são três aldeias Guarani: Tekoa Itaty, Tekoa Tataendy Rupa e Tekoa Yakã Porã, com 62 famílias, 11 idosos e 70% da população são de crianças de 0 a 16 anos. Serão oferecidos cursos on-line sobre a cultura indígena com turmas matutinas e noturnas como contrapartida da doação. As vagas são limitadas.
*A série do Portal Catarinas Filhas da Terra: Mulheres indígenas em luta contra a pandemia Covid-19 irá publicar textos que irão abordar o contexto de como as mulheres indígenas estão vivendo na atualidade e de que forma a pandemia de coronavírus vem afetando o cotidiano dos povos indígenas. Acompanhe nossas postagens quinzenais e conheça o que as mulheres indígenas têm a dizer.
Equipe: Vandreza Amante (jornalista), Inara Fonseca (jornalista), Paula Guimarães (jornalista), Pietra Dolamita Kuawa Apurinã (conselho editorial) e Josileia Kaingang (apoiadora).