Em três de agosto, quando completava um ano da audiência pública que discutiu a descriminalização do aborto no Supremo Tribunal Federal (STF), Katherine da Silva Ferreira, 16 anos, morreu por abortamento inseguro, pouco mais de 24 horas após ter dado entrada no Hospital Municipal de Santarém, no Pará. O padrasto que a levou ao pronto-socorro, sem o conhecimento inicial da família, abandonou o local ao saber que a mãe da jovem estava a caminho. Por telefone, ele havia informado à família que a jovem sofria de uma infecção urinária. Quando a mãe chegou ao hospital na manhã do dia seguinte à internação, Katherine estava sendo entubada no setor de reanimação e, segundo informaram os médicos, o risco de morte era alto. 

Conforme relatos, a jovem, que estava grávida de quatro meses, chegou ao hospital com febre e forte hemorragia, precisando de atendimento em Unidade de Tratamento Intensivo (UTI), mas não havia leito. Os médicos diagnosticaram por meio de uma ultrassonografia que o feto já estava morto. No dia seguinte à internação (4), ela passou por uma cirurgia para a retirada do feto, mas não resistiu e veio a óbito por volta das 22h50. Katherine foi sepultada na tarde da última segunda-feira (5).

A vítima completou 16 anos em 27 de abril deste ano. Pela idade gestacional, provavelmente quando o ato sexual que originou a gravidez ocorreu, ela teria apenas 15 anos. “Minha filha era muito doce, ainda brincava de boneca. Era uma criança meiga, querida pelas amigas. Ninguém que convivia com ela a via como uma mulher, e sim como uma criança. Foi um velório com muita gente, toda a escola, toda a comunidade se envolveu com isso”, contou por telefone o pai da jovem, Kelton John dos Passos Ferreira. 

Ferreira morava em Manaus, capital no Amazonas, e há dois anos não via a filha. Professor das redes municipal e estadual, ele acredita que a adolescente era vítima de abuso sexual pelo padrasto. “O autor desse assassinato esperou uma oportunidade, pegou a menina, a colocou no carro, se mandou para o hospital sem avisar a mãe. A mãe até ficou surpresa quando saíram os dois juntos. No hospital, dizia que estava ligando para mãe, que ela não atendia, que ela estava trabalhando, algo assim. Ele foi protelando até chegar o momento em que minha filha já não tinha mais condição de sobreviver”, relata.

O pai chegou ao velório na tarde do dia seguinte à morte, quando passou a desconfiar do relato da família. “Perguntei sobre o atestado de óbito e ninguém soube me informar. Fiquei chateado porque fui enganado durante muito tempo, só às 21h tive acesso à declaração de óbito. Meu irmão que era advogado reuniu a família para saber o que estava acontecendo, aí que fui me deparar com a real situação de que ela não tinha morrido de uma forma natural. O cara aliciou, estuprou, engravidou, matou e fugiu”, afirma. 

O registro da ocorrência foi feito por ele na noite de domingo (4), após acessar o atestado de óbito. O corpo teve que ser levado às pressas para o Instituto Médico Legal (IML). “Percebi que tinha que iniciar um processo policial, interromper o velório. Toda morte suspeita deveria passar pela necropsia para elucidar o que realmente aconteceu, mas não fizeram isso. Me vi em uma situação de que os meus direitos estavam sendo violados, e o direito dela de pelo menos ter um enterro.”

Segundo conta, Katherine chegou a reclamar de dores de cabeça e de barriga. Dias antes, a mãe havia acompanhado a filha para realizar exames de sangue no hospital, mas a gravidez não foi mencionada. A família sequer desconfiava de uma situação de abuso pelo padrasto. “Eu acredito que ela não tenha comentado por medo, pela fragilidade, talvez tenha tentado falar, tenha tido uma resposta e percebido que estava sozinha. Talvez tenha pensado em assumir calada tudo isso. Eu sei que a mataram”, diz o pai. 

O entrevistado está há mais de sete anos separado da mãe de Katherine, com quem teve outras duas filhas. Por três anos, as filhas viveram com ele, até que a ex-companheira reivindicou a guarda de Katherine, a única menor de 18 anos. Há cerca de quatro anos, as filhas maiores também passaram a viver com a mãe. “Só saíram mesmo debaixo das minhas asas quando concluíram o ensino médio e foram fazer faculdade”, revela. 

A mãe de Katherine vivia com o companheiro há cerca de cinco anos. Apesar da família não suspeitar, vizinhos relataram ao pai durante o velório haver algo incomum na relação entre padrasto e enteada. “Eles viviam em uma casa cercada por irmãos, avós, não se desconfiava de nada. Familiares estavam cegos em relação a isso, mas as pessoas do entorno já suspeitavam da situação, viam o cara saindo de carro com ela e deixando a mãe em casa”.

A família mora em Mojuí dos Campos, município com 15 mil habitantes, a uma distância de quase 700 quilômetros da capital. A mãe trabalha como cabeleireira e o padrasto mantinha uma oficina de pintura de carro que funcionava junto à casa onde viviam. Nos dias anteriores ao fato, o padrasto teria pedido dinheiro emprestado a familiares. Para Ferreira, o suspeito estaria escondido em Novo Progresso, cidade natal onde vive a família dele.

“Que essa entrevista sirva para alertar e demonstrar a importância da elucidação deste caso. Deveriam divulgar a imagem do cara que fez o mal e não da minha filha. Nos comentários nas redes sociais é como se o cara fosse a vítima, e ela uma vagabunda. Estão distorcendo o fato”, crítica. 

Abuso sexual e morte

O caso de Katherine pode ser mais um entre tantos de abuso sexual intrafamiliar que resulta em gravidez. “Ainda que seja difícil provar que houve abuso, porque ela já tinha mais de 14 anos, não se tratando mais de vulnerável, a gente entende que foi uma violência de gênero a partir do olhar da antropologia, sociologia. Imagine, o homem é casado com a mãe, há toda uma relação de poder, de conquista, ele se aproveitou dessa relação para abusar da menina. Tanto que era tudo tão escondido, ela já estava de quatro meses e a família não sabia”, analisa a advogada Rubia Cruz, do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem).

Como o padrasto já convivia com a adolescente há muito tempo, esse abuso pode ter ocorrido quando ela ainda era considerada vulnerável. E ainda que não seja mais vulnerável, a partir do momento em que o homem coage para manter relação, trata-se de violência sexual, como explica Diany Castro, assistente social que atua na área de violência doméstica no Centro Maria do Pará.

Segundo Castro, há todo um ambiente de aliciamento, coação e até mesmo de exploração sexual por meio da oferta de “presentes” que levam uma criança ou adolescente a não revelar o abuso. “Eles usam de grave ameaça, mexem com o psicológico dessa criança e adolescente. A própria vítima se sente culpada pelo abuso”, assinala.

A falta de acesso ao serviço de aborto legal, o estigma em torno do tema, a dificuldade de se conseguir informações, a ilegalidade do uso dos medicamentos e a demora na busca por atendimento de saúde são razões que podem ter levado Katherine à morte. Para a antropóloga Débora Diniz, da Anis – Instituto de Bioética, a morte evitável “traz todos os componentes do horror que significa a criminalização do aborto”. “Uma menina sofrendo violência e abuso sexual chega a uma situação dramática no hospital com processo hemorrágico intenso, com feto já retido morto. O padrasto foge, a mãe diz desconhecer o que acontecia e ainda tem o tribunal virtual de um julgamento de uma responsabilização por uma tentativa de aborto”, avalia.

Diniz ressalta que além de levar à morte, a criminalização naturaliza a culpabilização da vítima que morre por abortamento inseguro.

“Estamos falando de uma vítima de violência de abuso intrafamiliar, em condições absolutamente desiguais de poder e de expressão e da qual morre e ela não tem sequer  uma compaixão, porque quando se tem a criminalização se inibe inclusive um sentimento de compaixão, nem que fosse um sentimento caridoso de cuidado, mas menos ainda de respeito de direitos” ressalta

Enquadramento no crime esbarra em falta de provas

O delegado da 16ª Seccional Urbana de Polícia Civil, Erik Petersson, aguarda o laudo da necrópsia para dar seguimento à investigação. A mãe e as irmãs da vítima já foram ouvidas e afirmaram não saber da gravidez, tampouco desconfiavam de abuso por parte do padrasto. “O único que suspeita do abuso é o pai, ele diz que possivelmente a jovem já vinha sendo abusada há muito tempo, morava com a mãe desde os 12 anos”, explica. 

Para o delegado não há indícios de que o padrasto abusava sexualmente da vítima, ainda que não haja dúvidas sobre a responsabilidade dele na gravidez. “Possivelmente o padrasto foi o responsável pela gravidez. Nada se comprova sobre o que o pai falou. A gente teria que ouvir a menina, não tem testemunha, não tem outro meio de conseguir chegar a esse entendimento de abuso”. 

Petersson não considera pedir a prisão preventiva do padrasto, mesmo que ele tenha fugido do local. “Sabemos que possivelmente pode ter ministrado algum medicamento abortivo que causou a morte do feto e logo em seguida a morte da menina”, detalha. 

De acordo com o policial, o resultado da perícia deve levar no mínimo dez dias, ainda assim pode não ser conclusivo. “Dependemos da perícia para saber se aparece alguma substância. O corpo já tinha recebido formol, por isso a perícia está muito prejudicada. Pedimos o prontuário médico também”.

O padrasto é investigado pelo crime de aborto qualificado por morte, para o qual a pena varia de quatro a oito anos de prisão em caso de consentimento, e de seis a vinte anos quando o procedimento é realizado contra a vontade da vítima. O suspeito já responde por homicídio qualificado, conforme apurou o G1 Santarém. Em maio desse ano, a Justiça aceitou denúncia do MP contra ele que deve ser julgado pelo Tribunal do Júri Popular.

 

 

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