Deixar a Itália entre o fim do século 19 e o início do século 20 não foi exatamente uma escolha, mas uma questão de sobrevivência: era morrer de fome ou arriscar a vida no Brasil. Após a Primeira Guerra Mundial, o Sul da Itália se encontrava devastado pela pobreza, e o único refúgio era a esperança de um futuro melhor — o sonho de “far la Mérica” (fazer a América).

Durante a travessia do Atlântico, os dias foram longos e marcados por condições insalubres, antecipando as dificuldades que viriam. Antes mesmo de chegar ao Brasil, muitas famílias já haviam perdido entes queridos devido a doenças e epidemias. Os sacrifícios foram imensos, e a única saída era seguir em frente, com a necessidade de reproduzir vidas novamente, para reconstruir a família e suprir a perda daqueles que se foram.

No romance com caráter histórico O Lenço e o Rosário, da Editora Insular, ambientado na região Sul de Santa Catarina, a historiadora e escritora Marlene de Fáveri nos apresenta a resiliência de mulheres que, ao longo de três gerações, sacrificaram suas vidas para garantir a continuidade da vida dos seus e das comunidades ao seu redor.

Apesar dos corpos exaustos pelo trabalho pesado e as sucessivas gestações, essas mulheres eram cobradas a gerar novos braços para a lavoura como forma de assegurar a sobrevivência da família, começando pela aquisição de terras e, ao fim, pela busca por melhores condições de vida.

Com uma pesquisa minuciosa sobre cada passo dado por aquelas famílias ao desbravarem campos inóspitos e inexplorados, Marlene entrelaça as histórias familiares com os principais acontecimentos políticos e sociais da época. A chegada dos italianos ao Brasil foi influenciada por políticas de branqueamento e pelo incentivo à imigração europeia, com o objetivo de substituir a mão de obra negra recém-liberta. 

Entre os marcos históricos que atravessam a narrativa estão a fundação do Integralismo — uma versão local do fascismo de Mussolini, liderado por Plínio Salgado — os percalços da repressão durante a Segunda Guerra Mundial, o alistamento forçado dos filhos de imigrantes na Força Expedicionária Brasileira, as perseguições cotidianas durante o conflito, o suicídio de Getúlio Vargas, a constante demonização do comunismo e a exaltação da fé católica como redenção.

Na costura dos fatos, a escritora revela o envolvimento de famílias imigrantes com o movimento integralista brasileiro, além de evidenciar as faces do racismo estrutural e, como não poderia deixar de ser, a persistente perpetuação do machismo nas relações sociais e familiares. 

Contudo, não era que esses colonos estivessem completamente cientes das complexas questões políticas em jogo. Seu entendimento estava mais ligado ao senso de comunidade e aos valores tradicionais que esses espaços promoviam. Os princípios de ‘Deus, Pátria e Família’ eram, assim, contraditórios, já que essas pessoas não viviam mais em sua terra natal, embora tentassem preservar suas raízes.

A organização da família era moldada pelo catecismo da igreja, com o padre da paróquia assumindo o papel de orientador, fiscalizador dos costumes e responsável pelos arranjos familiares. A regra mais fundamental era nunca recusar o marido, ou seja, nunca lhe negar filhos, mesmo quando ele voltava pra casa, bêbado e brutal, exigindo seu ‘direito sagrado’ na calada da noite. 

E, mesmo quando seus corpos já não aguentavam a combinação do trabalho pesado na roça com as inúmeras gravidezes, era necessário respirar fundo e seguir em frente. A autora descreve essa “produção em série” de filhos como uma exigência imposta para sustentar a chamada ‘ordem natural’ das coisas — uma lógica em que o sacrifício do corpo das mulheres era normalizado, mesmo quando isso significava morrer ao parir. Afinal, era essa a vontade de deus.

Numa das cenas mais chocantes, um estupro é cometido contra uma jovem pelo ex-cunhado, cuja esposa havia recém falecido durante um parto. Foi o padre quem o incentivou a casar-se com ela, a fim de calar os comentários maldosos sobre viverem juntos na mesma casa, apesar de ela estar ali apenas para cuidar dos filhos da irmã falecida.

O homem, que inicialmente sequer desejava a cunhada, se viu no lugar abençoado de fazê-lo por um ‘bem maior’ dos seus. Ela, além de ter sofrido a violência, ainda se culpou pelo “pecado” que supostamente cometeu antes do casamento.

Devido à falta de acesso à saúde básica, agravada pela pobreza e pelas limitações científicas da época, era comum que bebês não sobrevivessem ao nascimento ou sequer “conseguissem vingar”. Da mesma forma, muitas mulheres morriam durante o parto, vítimas das condições precárias e da ausência de cuidados médicos adequados. No entanto, as mulheres não estavam sozinhas nesse sofrimento. Elas, com base em suas próprias experiências de parto, compartilhavam seus conhecimentos e práticas, tornando-se as principais salvadoras das vizinhanças ao redor. Muitas vezes, eram elas quem atravessavam grandes distâncias a cavalo, oferecendo ajuda nas horas mais desesperadoras.

Assim, caminharam gerações de mulheres: confinadas à reprodução, ao cuidado e à manutenção da vida — e do prazer masculino — enquanto seu próprio gozo lhes era negado. Subjugadas por homens violentos, que descarregavam nelas a frustração de suas vidas duras e, com alguma frequência, as ameaçavam com facas no pescoço. 

A autora também evidencia como a noção de pureza racial estava entrelaçada a ideia de pureza moral, indo além da união entre pessoas brancas. Em certo momento da trama, a família se opõe ao relacionamento de um dos filhos com uma moça alemã, alegando que, por ser protestante, ela não compartilhava da fé católica — considerada fundamental para a preservação da estrutura familiar.

O início da Segunda Guerra Mundial intensificou ainda mais as dificuldades e angústias daqueles que haviam migrado. Sem poder sequer falar sua língua materna, viram escolas e clubes fechados, e a vigilância de censores pairava sobre qualquer sinal de afeição à sua pátria de origem. O sofrimento se aprofundou ao perceber que seus filhos, agora cidadãos de um novo país, seriam enviados à guerra para combater e matar os próprios compatriotas.

Com o rosário entrelaçado nos dedos, essas mulheres rezavam, amparavam-se mutuamente e partejavam; mas também se vigiavam e julgavam, empenhadas em preservar a fé e a tradição — ainda que isso significasse renunciar às próprias liberdades. Era necessário seguir à risca as palavras do padre, sob o risco de se tornar alvo da maledicência que sustentava a ordem moral e religiosa. Havia também ambiguidades no conceito de comunidade, uma ajuda mútua que era marcada por um rigoroso controle social, tudo em nome da preservação da família tradicional, neste caso, a ítalo-brasileira, ou, idealmente, a famiglia italiana.

Mas haveria de ter fissuras e, em determinado momento, já em meados do século 20, as jovens começaram a trocar livros e leituras que apresentavam outros mundos, bem diferentes da história única de como deveriam viver.

O livro “Método moderno da limitação dos filhos”, cuja tradução para o português remonta a 1939, as ajudou a entender que havia possibilidade de controlar a gravidez, com métodos naturais.

Esse conhecimento espalhou-se rapidamente entre as mulheres do vilarejo, criando um rastro de informação que, sem dúvida, contribuiu para salvar muitas vidas. Embora algumas delas tenham sido punidas pela própria família por desobedecer as regras paroquiais, não foi possível apagar o que estava agora em suas mentes.

Com sua poesia, olhar crítico e sensibilidade feminista, Marlene — descendente de imigrantes italianos — narra a história das mulheres com a intimidade de quem viveu e testemunhou de perto as experiências compartilhadas pelas comunidades de imigrantes no Sul de Santa Catarina. São também as histórias das mulheres da sua vida.

No epílogo, a autora aponta os rumos divergentes da grande família em tempos de polarização: enquanto alguns se engajaram na luta por direitos humanos e pela democracia, outros ainda sonham com a ideia de pureza de sangue. É justamente contra esse segundo grupo que Marlene direciona, com firmeza, sua luta política e seu compromisso ético.

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  • Paula Guimarães

    Jornalista e co-fundadora do Portal Catarinas. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo, pós-graduada...

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