No último dia de 2024, um ato cruel alterou profundamente a vida de uma menina de 12 anos em Florianópolis. Ela foi estuprada e o crime ganhou repercussão nacional depois que a identidade do suspeito veio à tona. O denunciado é Jason de Souza Junior, chef de cozinha de 42 anos que já participou do programa culinário Masterchef, exibido pela TV Bandeirantes. Ele foi detido em flagrante por estupro de vulnerável em Palhoça, na Grande Florianópolis, em 1º de janeiro. No dia seguinte, passou por audiência de custódia e teve a prisão convertida em preventiva. Desde então, está no presídio da Agronômica, na região central da capital catarinense. 

“A criança que a gente tinha, não existe mais, ele destruiu a vida dela e da nossa família”.

O desabafo é da tia da menina, que, naquela tarde de 31 de dezembro, dividia a atenção entre os preparativos para a virada do ano e o cuidado de pelo menos outras cinco crianças da família. Ela foi a primeira a tomar conhecimento do crime, que teria ocorrido nas proximidades da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no bairro Trindade, enquanto a mãe da criança estava no trabalho.

Era quase 16h quando a sobrinha retornou à casa da tia, na região da Serrinha, chorando e pedindo que ligasse para sua mãe e para a polícia. Em seguida, visivelmente abalada, contou todos os detalhes do que havia vivido nos minutos anteriores. Relatou que um homem desconhecido a abordou na porta da casa, enquanto ela colocava o lixo na lixeira — câmeras de segurança de vizinhos registraram o momento em que o carro do suspeito, um Celta cinza, parou na rua. 

Ele a chamou, mostrou uma arma e disse que ela podia escolher entre morrer ou entrar no carro. A menina pensou em correr, mas, tomada pelo medo, entrou no veículo e foi levada até a instituição de ensino superior, onde a violência sexual aconteceu. Após o crime, foi levada de volta à Serrinha pelo homem. “Judiou muito dela […] Ela ficou com dificuldade por vários dias, não conseguia brincar com a minha filha, sentar direito, sentindo muita dor. Foi horrível, ela me contou tudo com detalhes”, disse a tia da menina em entrevista ao Catarinas. 

Após a descoberta chocante, a mãe, o padrasto e o marido da tia a levaram à delegacia e, em seguida, ao Hospital Infantil Joana de Gusmão, onde ela foi submetida a uma série de exames que confirmaram o estupro. “Lá no hospital fizeram corpo de delito, perícia e tudo, vários exames. Ela tomou, se não me engano, quatro injeções. Até hoje ela está tomando muitos medicamentos fortíssimos”, conta a tia. Os medicamentos prescritos fazem parte do protocolo de atendimento às vítimas de estupro, que inclui contracepção de emergência para prevenir gravidez e a proteção contra Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs).

A menina, que completou 12 anos em outubro, mora com a mãe, o padrasto e dois irmãos na mesma rua onde vive a tia. No dia a dia, os familiares já percebem mudanças no comportamento dela.

“Ela tem medo de sair de dentro de casa, tem crises de ansiedade que dão falta de ar, às vezes chora, não quer andar de carro. Me falou que toda vez que entra no carro lembra de tudo que aconteceu”, frisa a tia. 

Enquanto tentam lidar com o impacto devastador do crime brutal, a família ainda enfrenta outra barreira: a falta de assistência, tanto jurídica quanto psicológica. “Não estamos recebendo apoio nenhum, estamos vendendo uma rifa para pagar um advogado, pois não temos condições de pagar”, conta a tia. 

A legislação brasileira garante que qualquer pessoa com dificuldades financeiras pode solicitar assistência jurídica gratuita. O acolhimento psicológico também é garantido por lei. No entanto, a família afirma que a menina ainda não foi encaminhada para o acompanhamento psicológico ao qual tem direito.

Investigação segue sob sigilo

O delegado Cléber Serrano, responsável pela ocorrência de flagrante, afirmou ao G1 que o caso está em sigilo por envolver criança e que a identificação do suspeito foi feita com base nas características repassadas pela vítima, como barba e uma cicatriz na barriga, além do carro dele. Mais informações sobre o andamento das investigações não foram divulgadas pelas autoridades. 

Em nota, a defesa do cozinheiro, que é casado e pai de duas filhas, disse que ele nega as acusações. Alega que o homem conheceu a vítima “por meio de um aplicativo de namoro, onde ela informava em seu perfil uma idade superior à que realmente tinha”.

Em entrevista ao SCC SBT, a mãe da vítima contestou a versão apresentada pela defesa. “Ela não tem acesso nenhum no celular dela, não tem negócio de Tinder, não tem nada, ela não tem isso porque é menor de idade. Para mim, ele já tinha visto ela, já estava cuidando”, declarou. 

Os defensores do homem preso, que já foi guitarrista de uma banda gospel da Paróquia Nossa Senhora da Boa Viagem, apontam também que “a suposta vítima não foi formalmente ouvida, e a denúncia foi baseada apenas no relato de sua mãe.”

No entanto, a advogada criminalista Mayara de Andrade Bezerra destaca que, em casos de violência sexual envolvendo crianças e adolescentes, a polícia adota um procedimento específico para ouvi-los, conforme as diretrizes da Lei n.º 13.431/2017. A norma federal estabelece o Sistema de Garantia dos Direitos da criança e do adolescente (SGDCA) vítima ou testemunha de violência e torna obrigatória a oitiva dessas pessoas pelas “técnicas de escuta especializada e depoimento especial”. 

“Essa criança não pode ser ouvida durante o boletim de ocorrência da mesma forma que é ouvida uma vítima maior de 18 anos. Nesse caso, os psicólogos fazem o acolhimento da criança ou do adolescente na delegacia, mas o relato que vai para o registro do boletim de ocorrência é o do responsável por ela”, explica Bezerra. 

Patrícia Zimmermann D´Ávila, atual coordenadora das Delegacias de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso em Santa Catarina (DPCAMI), informou que a menina será ouvida por meio do depoimento especial. 

“Ela vai ser ouvida, mas através do depoimento especial, com um profissional previamente capacitado, em uma sala reservada, sendo que a defesa, o Ministério Público e o juiz estarão em outra sala, assistindo à oitiva e, ao final, poderão encaminhar as perguntas ao entrevistador, que as fará à vítima, adequando as perguntas a linguagem da criança. As perguntas que forem inapropriadas ou que forem inadequadas podem ser indeferidas pelo juiz”, pontua D´Ávila. 

De acordo com a profissional, psicólogos da polícia civil também têm a função de realizar a perícia psicológica das vítimas quando o depoimento especial não for suficiente para esclarecer os fatos ou não for considerado adequado. 

“Temos casos de crianças muito pequenas, por exemplo, em que as delegadas e os delegados, bem como os juízes, optam pela perícia psicológica. A produção da prova com a oitiva da vítima é sempre feita visando preservar a vítima, evitando-se a revitimização através de muitos depoimentos ou inquirições por pessoas que não estejam preparadas”, finaliza.  

Cultura de culpabilização da vítima

Quando agressores se defendem com argumentos semelhantes aos apresentados pelo acusado neste caso, eles buscam transferir a responsabilidade pelo crime para a própria vítima. Imagine ser apontada como culpada, por um crime cometido contra você? 

“Ao invés de focar no agressor, na pessoa que cometeu a violência sexual, no caso,  culpa-se e foca-se na vítima.  O foco em relação à vítima deveria ser priorizar o processo de cura, de ressignificação do trauma que ela sofreu […] Afinal de contas ela é a vítima, sofreu uma violência sexual e nada que ela fizesse poderia ter evitado. Então não tem a ver com a roupa, com o lugar. Nesse caso estamos falando de uma criança de 12 anos, mas mesmo que fosse uma mulher adulta, mesmo que fosse em qualquer tipo de circunstância”, ressalta a psicóloga Mari Luz, especialista em gênero e raça. 

A psicóloga e as advogadas criminalistas Carolina Costa Ferreira e Mayara de Andrade Bezerra defendem que esse comportamento, embora muitas vezes não intencional, é uma consequência direta de uma sociedade patriarcal, marcada pelas relações de poder e domínio dos homens sobre as mulheres.

Ferreira exemplifica afirmando que o sistema de justiça brasileiro ainda está profundamente enraizado em uma cultura machista e patriarcal. “Quando a gente pensa na estrutura do Estado brasileiro como um todo, as mulheres sempre foram alijadas desse processo”.

A advogada observa que, apesar do compromisso com a igualdade de gênero estabelecido pela Constituição de 1988, poucos avanços significativos foram feitos desde então. “Claro, temos o direito de votar e de ser votadas, cada vez mais mulheres estão na política e ocupando espaços nos sistemas de justiça, mas, tanto no Legislativo, Executivo quanto no Judiciário, a cultura patriarcal continua muito presente”, diz a advogada. 

“A gente está sempre duvidando da mulher […] Enquanto a nossa sociedade for muito machista, sempre vão colocar esse ponto de interrogação sobre nós, sobre o nosso caráter, sobre nossa moral, nossos valores e escolhas”, sinaliza a psicóloga Mari Luz.

No Brasil, conforme dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, 61,6% das vítimas de estupro têm entre 0 e 13 anos. A violência dupla associada à culpabilização da vítima pode acarretar impactos ainda mais profundos e devastadores para os sobreviventes de violência sexual.

“Essa pessoa pode desenvolver transtorno de estresse pós-traumático, que é inclusive igual aos soldados que vão para a guerra, pessoas que vivem em extrema violência”, destaca Luz. Segundo a profissional, os sintomas do quadro incluem dificuldades para dormir e se alimentar, ansiedade, pensamentos suicidas, entre outros, podendo, no caso de uma criança, impactar até mesmo o desenvolvimento cognitivo.

Quando questionadas sobre como podemos reverter a naturalização da violência contra as vítimas enquanto sociedade, as entrevistadas ressaltaram, de maneira comum, o papel da educação. Discutir a cultura do estupro e promover ações preventivas desde a Educação Básica são medidas fundamentais e urgentes.

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  • Emily Leão

    Jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Tem experiência na produção de materiais e report...

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