Um julgamento de violência sexual foi publicizado na última semana e chocou o mundo. A francesa Gisèle Pelicot foi sistematicamente dopada pelo marido, que ao longo de dez anos, convocou pelo menos 72 homens para estuprá-la enquanto estava desacordada. Os crimes foram descobertos a partir de vídeos encontrados no computador do homem, que foi preso em 2020 por tentar filmar debaixo da saia de mulheres em um shopping. Em um ato de muita coragem Gisèle renunciou ao direito de sigilo para que o processo servisse de alerta ao público sobre os apagões induzidos por drogas usadas para a prática de violência sexual.

A vergonha deve mudar de lado”, justificou a advogada de Gisèle, reforçando a necessidade de olharmos para a conduta vergonhosa dos homens que violam o corpo de uma mulher em vez de constranger a vítima com dúvidas e investigações sobre o seu comportamento.

Um caso tão horrível como esse deve nos fazer perguntar o que leva um homem a acreditar que pode fazer e permitir que outros façam o que ele quiser com o corpo e com a vida de uma mulher? Há respostas para essa pergunta e muitas delas estão na estrutura de sociedade que construímos e perpetuamos.

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Ato em apoio a Dominique Pelicot. No cartaz, está escrito “A vergonha muda de lado” | Crédito: Adele Bossard/Radio France.

Cultura do estupro: uma história de objetificação dos corpos femininos

Além de buscar entender o que motiva um marido a praticar tamanha violência contra sua esposa, também precisamos refletir sobre o que fez os mais de 70 homens que atenderam ao “convite” escolherem ser cúmplices de um crime tão bárbaro. Alguns dos réus alegaram não saber que a vítima estava dopada, apesar da afirmação do marido de que todos foram informados, mas decidiram convenientemente apenas seguir as instruções sem fazer perguntas. 

Nenhum deles pensou em denunciar os crimes praticados contra aquele ser humano que estava inconsciente na cama. Um corpo vulnerável que foi usado e abusado sem que sequer um desses homens questionasse a “normalidade” do que estava acontecendo. Do contrário, a investigação mostra que alguns deles retornaram até seis vezes para violentar a mulher novamente.

Por séculos o Direito validou e concretizou a crença de que a relação entre homens e mulheres é uma relação de posse e propriedade. Tanto no Brasil como na Europa, a história da criminalização do estupro esteve atrelada à ideia de crime contra o patrimônio, a vítima da violação sexual não era primariamente a mulher, mas o sujeito a quem ela “pertencia”. 

Violar o corpo de uma mulher não significava violar a dignidade desse ser humano, mas violar o patrimônio e a honra de outro homem, seja porque o ato poderia desvalorizar a filha virgem, tratada como mercadoria a ser vendida pelo pai através do casamento, seja por violar o direito exclusivo do marido de usufruir sexualmente da esposa. 

A criminalização das violações sexuais praticadas contra as mulheres não veio para protegê-las, mas para estabelecer regras entre os próprios homens sobre o que poderiam e o que não poderiam fazer em relação à propriedade de outros homens.

Uma das consequências mais nocivas da perpetuação de ideologias essencialistas sobre o lugar da mulher na sociedade é a naturalização da violência sofrida por ela, principalmente a sexual, pois exercer o papel de mulher dentro dessa estrutura significa ser limitada por uma série de regras de comportamento que supostamente impediriam que essa mulher fosse violentada. Fugir desse papel é dar lugar às “justificativas” para a violência sexual, amplamente respaldadas na criação e aplicação das leis.

No Brasil, durante muito tempo, o estupro foi classificado como um crime que atentava contra os costumes sociais e não contra a dignidade da vítima. O que restava violada era a honra da família e do patriarca, importando muito pouco para o Direito Penal a afetação que o delito causava na mulher vitimada. 

O Código Criminal do Império, de 1830, foi a primeira legislação aplicada no Brasil que utilizou a palavra “estupro” para nomear um tipo penal que abrangia diversas condutas de cunho sexual. O tipo diferenciava as penas para crimes praticados contra mulheres virgens ou honestas e contra prostitutas (caso em que a pena aplicada era menor) e previa a possibilidade de extinção da pena através do casamento da vítima com o agressor, demonstrando que o bem jurídico tutelado era a honra da mulher violada e sua reputação perante a sociedade, não sua liberdade sexual.

O Código Republicano (1890) passou a classificar como “estupro” apenas a prática de conjunção carnal mediante violência, entendida aqui como uso da força física ou de meios que privassem a mulher da possibilidade de resistir e se defender. O título onde o delito estava inserido tratava “Dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor”, explicitando o objetivo de tutelar a reputação da mulher violada e de sua família.

Até o Código Penal de 1940 poucas alterações significativas sobre o tema foram realizadas. O crime de estupro foi originalmente inserido no Título que tratava “Dos crimes contra os costumes”. Alguns crimes ainda traziam os termos “mulher virgem” e “mulher honesta” em sua redação, mostrando que o conservadorismo, o foco no comportamento sexual pregresso da vítima e a sua consequente culpabilização, marcavam presença forte nas tipificações relativas aos crimes sexuais.

A causa de extinção da punibilidade pelo casamento em crimes sexuais somente foi removida do Código Penal em 2005, menos de 20 anos atrás, o que na perspectiva da estruturação da sociedade, é muito pouco tempo. Apenas em 2009 o estupro deixou de ser um crime contra os costumes e passou a ser um crime contra a dignidade sexual.

É possível perceber que durante boa parte da história da criminalização do estupro o parâmetro não era o consentimento da mulher ou os efeitos que uma violação a causaria física e emocionalmente, mas o dano aos costumes sociais que uma mulher “honesta” violada poderia gerar. 

O Código Penal evoluiu na redação, novos crimes foram criados e a intenção de tutelar novos bens jurídicos foi manifestada, porém, a atuação do sistema penal e a reação de grande parcela da sociedade em relação aos crimes sexuais e em especial ao crime de estupro, parece continuar encontrando seu fundamento nos períodos que precederam a própria criminalização.

Precisamos falar sobre estupro marital

A ideia da esposa como posse do marido legitimada pelo Direito e pela sociedade leva a crer não somente que o homem pode usufruir do corpo daquela mulher como quiser, mas também que é dever dessa mulher satisfazer a todas as vontades do seu “possuidor”.

Ainda hoje há mulheres e homens que acreditam nesse senso de obrigação sexual da esposa, crença constantemente propagada e reforçada por certos segmentos sociais e religiosos. A partir desse dogma, muitas mulheres são violadas sexualmente pelo marido sem saber que lhes é permitido não consentir.

Com base nessa ideologia, o consentimento seria posto como sempre existente no casamento, visto que aquela é uma relação de propriedade e o patriarca pode dispor da esposa como desejar, inclusive permitindo que outros homens violem seu corpo, sem que seja questionado sobre isso. É uma relação socialmente normalizada.

Mesmo no século 21, ainda é preciso combater esse entendimento. É preciso alertar sobre a existência do crime de estupro marital e sobre a liberdade de escolha das esposas. Lembrar sempre que não existe consentimento implícito e que em qualquer circunstância, factual, religiosa ou jurídica, aquela uma mulher é um ser humano com livre arbítrio e autonomia sobre o próprio corpo.

Atentar contra a autonomia desse corpo para satisfazer os próprios desejos dentro do casamento é, sim, violência sexual e violência doméstica.

Como fazer a vergonha mudar de lado?

O Anuário de Segurança Pública de 2024 trouxe, juntamente com estatísticas alarmantes de violência contra a mulher, um alerta sobre a necessidade de mudarmos a narrativa ao falar desses crimes, colocando o foco no sujeito que pratica a conduta criminosa, em vez de expor a vítima e buscar no seu comportamento “razões” para a prática dos crimes. 

“Uma construção diferente da mesma ideia, entretanto, pode ajudar a levar nosso olhar para onde a mudança é mais necessária: homens matam mulheres. Homens estupram mulheres. Os números desses crimes são números de homens violentando mulheres. (…)

Enquanto o foco na vítima pode reforçar a imagem de vulnerabilidade e passividade das mulheres, quando afirmamos que os homens são, regra geral, os responsáveis por essas mortes, estamos pessoalizando o sujeito ativo deste crime e trazendo-o para o centro da narrativa, o que pode reverberar no destaque da responsabilidade masculina na perpetração da violência e na ação violenta em si. Essa perspectiva pode ajudar, em alguma medida, a combater a visão de que a violência é um fenômeno inevitável ou natural, mas mostrar que, ao contrário, ela é uma escolha ativa do sujeito que a perpetrou e da sociedade que a normaliza.” (Isabella Matosinhos, Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024).

No caso de Dominique Pelicot, estamos falando de uma violência que durou 10 anos (ou mais), teve a participação de quase uma centena de pessoas e absolutamente ninguém interrompeu esse ciclo. Absolutamente ninguém questionou as atitudes desse homem que recrutava na internet pessoas para, juntamente com ele, estuprarem sua esposa. Pelo contrário, os crimes somente foram descobertos quase que por acaso, em razão da prática de outro crime, contra outras vítimas e há novas informações sobre a possibilidade da existência de “discípulos” desse perpetrador

A violência física, moral e sexual contra a mulher sempre foi um importante instrumento de estabelecimento e consolidação da dominação masculina. Apesar dos avanços, a estrutura social em que vivemos ainda é majoritariamente criada e estruturada por homens e para homens. Ainda vivemos em uma sociedade organizada em torno da autoridade masculina e a violência segue sendo utilizada para a manutenção dessa estrutura.

Homens acreditam que podem dispor do corpo das mulheres como bem entenderem, enquanto mulheres são criadas e socializadas para se submeterem à violência masculina e não se reconhecerem como seres humanos, sujeitos de direito, mas como “coisa”, propriedade. É através dessas ideologias convencionadas socialmente que são perpetuados papeis de gênero estabelecidos há centenas de anos. Sem mudança de perspectiva, é impossível fazer cessar a violência.

Portanto, além de colocarmos o foco nas pessoas que praticam esses atos, é indispensável questionar a estrutura que os fundamenta. Casos como esse, por mais absurdos que pareçam, não resultam apenas de práticas individuais, mas de uma cultura que permeia e contamina toda a sociedade, fazendo com que crimes tão atrozes sejam praticados repetidamente, como se nada fossem, ou pior, como se fossem naturais.

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  • Lívia Reis

    Especialista em Ciências Penais, co-fundadora do Coletivo Nós Seguras e do Projeto Transversais, feminista, abolicionist...

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