A amizade entre duas meninas de classes sociais diferentes em meio ao machismo da Itália Fascista é o enredo do livro “A amiga maldita” de Beatrice Salvioni. A obra acompanha Francesca, filha de uma família respeitada na comunidade, e Maddalena, uma rebelde de origem humilde apelidada de “a Maldita”. Por meio dessas personagens, Salvioni explora temas como machismo, os desafios da adolescência, e os impactos da guerra e da disseminação das ideias fascistas.

Com influências de autores como Elena Ferrante, Natalia Ginzburg e Alberto Moravia, esse é o romance de estreia da autora italiana, formada em filologia moderna pela Universidade Católica de Milão e egressa da Scuola Holden, escola de narrativas referência na Itália. Com a obra, conquistou o prêmio Scuola Holden, e o livro já está sendo adaptado para uma série televisiva.

Na trama, Francesca e Maddalena enfrentam o dilema de se unir para desafiar a opressão social e denunciar o abuso de poder ou ceder às injustiças. Embora ambientado no passado, o livro permite diversos paralelos com o presente, em um contexto de ascensão da extrema direita e do fascismo, tanto na Itália quanto no Brasil.

“O cenário é um reflexo dessa luta que é válida na Itália do regime fascista, mas também é a mesma luta que as mulheres e as categorias oprimidas enfrentam até hoje”, afirmou a autora, em entrevista ao Catarinas.

Na entrevista, a autora falou sobre o processo de escrita do livro, os paralelos entre o passado e o presente, a proliferação das ideias fascistas na atualidade, a importância das amizades entre mulheres, a influência da criação cristã nas garotas, além de defender o feminismo interseccional e explicar o conceito de ser uma “Maldita”. Confira a entrevista: 

A trama acompanha o crescimento de Francesca e Maddalena e a transição para a adolescência, um período confuso em que, embora ainda queiram brincar, elas começam a lidar com a pressão patriarcal que as força a amadurecer mais rápido. Ao longo da narrativa, as duas descobrem o que significa ser mulher em uma realidade marcada pela misoginia, tudo isso enquanto enfrentam o contexto da Itália Fascista e o início da guerra. Como foi o processo de escrita para integrar temas como o amadurecimento, amizade feminina e abusos no contexto da Itália Fascista?

Quando um personagem vem à sua mente, com suas necessidades, desejos e medos, tudo o que resta para colocar uma história em movimento é encontrar o lugar e o tempo exato em que você vai colocá-la. Eu tinha essas duas meninas, de apenas 12 e 13 anos. Uma, Francesca, cheia de medos por causa da educação correta que sua mãe lhe deu. A outra, Maddalena, diz que não tem medo de nada, mas na verdade você pode perceber que ela está realmente escondendo muitas fragilidades por trás de uma fachada de bravura. Elas se encontram e se unem em seu desejo de serem ouvidas, de fazer sua voz importar. De não serem apenas objetos, mas sujeitas de suas próprias vidas. 

Veio naturalmente colocá-las nos momentos mais difíceis possíveis para tornar esse desejo realidade: a Itália fascista, onde se você fosse uma mulher, poderia ser apenas uma filha e depois uma esposa e uma mãe, tendo filhos, homens possivelmente, para enviar para morrer pelo Duce [título usado pelo ditador fascista Benito Mussolini]. Você não poderia forjar seu próprio destino, você simplesmente não poderia nem imaginar uma possibilidade diferente.

E, assim, Maddalena e Francesca, somente juntas, especialmente porque são tão jovens e não apesar disso (toda história de amadurecimento é, em sua essência, uma história de rebelião e desafio à autoridade) encontram a coragem de deixar suas vozes serem ouvidas. O cenário é um reflexo dessa luta que é válida na Itália do regime fascista, mas também é a mesma luta que as mulheres e as categorias oprimidas enfrentam até hoje.

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Beatrice Salvioni | Crédito: Vittoria Bernini.

Apesar da distância de quase um século, a história de Francesca e Maddalena reflete resistências atuais. O governo italiano de extrema-direita, com simpatias fascistas, e o governo anterior no Brasil, que também apoiou essas ideias, mostram como o papel da mulher ainda é visto de forma subordinada. No livro, as meninas desafiam essa ideologia com pequenas ações, ao resistir a normas fascistas e rejeitar padrões de beleza. Você vê semelhanças entre essas resistências e as lutas feministas de hoje?

Ontem vi vídeos de mulheres afegãs cantando. Elas estão desafiando a lei absurda e brutal que os talibãs chamam de “decreto da moralidade” (que audácia!) na qual as mulheres são proibidas de falar, ler e cantar em público. Eles as estão silenciando. E as mulheres, apesar do perigo, estão cantando. Em ditaduras e tiranias que prosperam com uma visão patriarcal do mundo, sempre usam a desculpa da “moralidade”.

Durante a Itália Fascista, se você fosse uma mulher e se recusasse a seguir aos papéis impostos a você, seu pai ou seu marido poderiam simplesmente colocá-la em um asilo, dizendo que você era louca. E não é uma coisa que parou com o fim do regime.

Na Itália, conseguimos erradicar a lei do “matrimônio riparatore” apenas em 1981. Com essa lei, um homem poderia estuprar uma mulher e então estaria livre do crime, desde que ele fosse se casar com ela, porque a violência não era vista como um crime contra as mulheres, mas contra a moralidade.

A lei que declarou o estupro não um crime contra a moral, mas contra uma pessoa, é apenas do ano de 1996!

Em uma sociedade patriarcal, é sempre sobre “moral”, “tradição”, medo das diferenças. Umberto Eco no livro “O fascismo eterno” diz que ainda não estamos livres das sementes do fascismo, que estão sempre à espreita, com rostos diferentes, roupas diferentes, mas ainda as mesmas. É por isso que devemos estar vigilantes.

Enquanto eu escrevia o livro, eu tinha essa ideia precisa em mente: sim, esta é uma história de duas meninas no período fascista. Mas é, ao mesmo tempo, uma história sobre hoje.

Francesca e Maddalena vivem realidades muito diferentes, mas encontram um refúgio necessário uma na outra. O elo que se forma entre as duas é muito bonito de acompanhar no livro, como quando Francesca fala para Maddalena: “Se você acredita, eu também acredito”. Para você, qual a importância das amizades femininas, como a de Francesca e Maddalena, nas nossas vidas?

Acredito firmemente que você nunca poderia se salvar sozinha. Você precisa de outros. Você precisa de relacionamentos, aliados e comunidade. Nesta história, Francesca sem Maddalena nunca poderia sequer começar sua mudança. Maddalena é a catalisadora. Mas, ao mesmo tempo, Maddalena sem Francesca não seria capaz de resistir à pressão ao seu redor e sua falha de sempre pensar em si mesma apenas como a “Maldita”, a “portadora do infortúnio”, sem uma fuga.

Francesca é um espelho, ela diz a Maddalena: Eu sou como você. E é por isso que elas são fortes. Porque elas dão algo uma à outra e aprendem uma com a outra.

Eu acredito no feminismo interseccional: você não está lutando contra a opressão se lutar apenas contra um tipo de opressão. Você tem que considerar todas as estruturas sociais de classe social, gênero, raça, orientação sexual etc. E você não pode lutar sozinha. Você precisa construir uma comunidade, você precisa confiar nos outros.

Ao longo da jornada de Francesca, observamos como ela vai perdendo a culpa cristã, algo comum em países com forte influência religiosa, como a Itália e o Brasil, onde meninas crescem ouvindo que precisam ser “boas” para evitar o inferno. Francesca expressa essa culpa quando se sente vigiada pela imagem de Jesus em sua casa. Como você interpreta a perda dessa culpa no desenvolvimento de Francesca e o que essa transformação representa para ela?

Quando penso na “culpa cristã” e na forte presença da igreja na educação das crianças na Itália, sempre penso naquela cena de “Oito e Meio”* de Federico Fellini em que o protagonista pensa sobre a época em sua infância em que foi forçado pelo padre a se ajoelhar em grão-de-bico seco porque tinha pensamentos impuros.

A questão sobre esse tipo de “culpa cristã” nos primeiros anos da infância está relacionada a uma visão de fé obcecada com medo, julgamento e desgosto pelos desejos humanos. É uma visão de fé relacionada a regimes: medo de Deus e medo da autoridade. O medo de Deus, na Itália Fascista, era pensado como o medo de Mussolini. E esse é o medo incutido em Francesca.

Ela consegue escapar dessa culpa imposta a ela com a ajuda de Maddalena, que lhe mostra o caminho para viver em seu próprio corpo como um instrumento para habitar o mundo e agir e não como um objeto de vergonha e culpa, algo para se envergonhar, ter medo e cobrir. 

Ela também conseguiu escapar da questão graças ao personagem Ernesto, o irmão mais velho de Maddalena. Ele tem fé. E sua fé é forte e pura, não obcecada por medo e culpa, mas uma fé cristã realmente baseada no ensinamento de Jesus: você é forte apenas se for gentil. Você é forte se você acredita, se você se importa com os outros, se você apoia os outros. Não há vergonha na visão de fé de Ernesto. Isso também ajuda Francesca a se livrar da culpa que foi imposta a ela.

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Capa de “A amiga maldita” | Crédito: reprodução.

Assim como Maddalena, que recebeu o apelido de “Maldita” por não estar dentro dos padrões sociais esperados, muitas meninas e mulheres são chamadas de formas pejorativas por essa mesma razão, como, por exemplo, “ovelha-negra”, “puta”, “desviada”, “bruxa” e “mal-amada”. O que você gostaria de dizer para essas meninas e mulheres?

Gosto de pensar em “Maldita” como uma palavra nova e renovada. “Maldita” foi lançada sobre Maddalena como uma forma de dizer que ela era uma menina má, uma portadora de infortúnio, uma bruxa. Mas no final da história podemos resgatar o termo “Maldita” como um recipiente de rebelião, desafio, coragem.

Ser “Maldita” significa que você é livre, que você tem orgulho de ser você, apesar do que os outros dizem. Nós somos Malditas, nós somos bruxas. Nós somos ovelhas negras e putas. Estamos juntas. E não temos medo.

Nota de rodapé

*A obra “Oito e Meio” conta a história do cineasta Guido Anselmi, que não tem ideia de como será o próximo filme. Mergulhado em uma crise existencial e pressionado pelo produtor, pela mulher, pela amante e pelos amigos, ele passa a misturar o passado com o presente e a ficção com a realidade. O filme está disponível no streaming TeleCine.

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  • Daniela Valenga

    Jornalista dedicada à promoção da igualdade de gênero para meninas e mulheres. Atuou como Visitante Voluntária no Instit...

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