Esse texto contém spoilers do filme.

Em “A filha perdida”, Maggie Gyllenhaal transpõe para o campo do audiovisual as nuances e as ambiguidades que Elena Ferrante pulveriza não só no romance de mesmo nome, mas em todas as suas obras.

“A filha perdida” foi o livro da autora que li imediatamente depois de encerrar a tetralogia napolitana. Eu fui completamente absorvida pela escrita da autora desde “A Amiga Genial”: ao mesmo tempo que a leitura me provocava um enorme desconforto, um enorme incômodo, ela me absorvia, me capturava, de modo que eu não conseguia parar de ler.

Eu tenho um traço muito particular no modo de construir o rol de meus livros e filmes favoritos, porque, geralmente me vinculo a filmes e livros que me afetam a tal ponto que me vejo sentindo fisicamente o efeito desse atravessamento. Com a obra de Ferrante não foi diferente.

Admito que depois de ler quase todos os livros da autora, olhava para “A filha perdida” como o menos promissor. Sou uma mulher jovem, sem filhos [e que não pretende ter], e a questão da maternidade sempre se impôs como algo bastante desafiador, especialmente na relação que tenho com minha mãe. Ainda assim, não me senti tão vinculada à trama.

Revisitar essa história, alguns anos depois, dessa vez através de imagens e em um outro momento da vida me alfinetou, e me colocou cara a cara com meus próprios conflitos – e, ouso dizer, conflitos da maioria das pessoas que se identificam e/ou performam o gênero feminino em nossa sociedade.

Filme é uma adaptação do livro da escritora italiana/Imagem: Editora Intrínseca

Pra mim, o ponto mais intrigante é especular quem diabos é a filha perdida. Como em toda a obra de Ferrante, muitas perguntas são feitas e muitas respostas são possíveis. Poderia a boneca ser a filha perdida? Primeiro, a boneca da jovem Leda, que sua filha mais velha, Bianca, risca e rabisca, literalmente, e que a mãe, irada, joga da janela, de modo a pôr fim em seu sofrimento. Segundo, a boneca de Elena, perdida e recuperada pela Leda mais velha, que não consegue devolver.

Vi críticas muito duras à Leda nesse quesito, acusada de ser insensível, uma vez que parecia não se comover com as dores da criança, permanecendo apática, perversa, sádica, sentindo prazer com o sofrimento alheio. Não acho que Ferrante exclua essa interpretação do campo de visão dos leitores, assim como Gyllenhaal também não retira essa possibilidade do campo de visão dos espectadores. Não vou, então, tentar refutar essas perspectivas.

Limito-me a trazer a minha. Não penso que Leda seja, necessariamente, uma mulher inerentemente amaldiçoada com essas características. Penso que a manutenção da boneca sob seus cuidados teve muito mais a ver com um longo processo de acerto de contas interno. Durante o filme, num vai e vem do tempo presente e do passado, Leda rememora sua vida como mãe, esposa, amante, e os conflitos que permearam esses seus dias.

A boneca é o vínculo entre passado e presente, entre maternidade e carreira profissional. A boneca é, também, um forte instrumento pedagógico para introjetar em nós, meninas, desde a infância, o “desejo” de ser mãe. O funcionamento do dispositivo materno[1] garante que mulheres se subjetivem, principalmente pelo cuidado, se não das crianças, de outras pessoas que dele necessitarem. Confunde-se o gestar e o parir com o cuidado, o maternar.

Ao mesmo tempo, a boneca parece ilustrar uma versão fictícia da maternidade: ela não passa noite em claro, não chora, não mama, não caga, etc. Somos conduzidas ao lugar de mãe despreparadas, iludidas e sozinhas. A filha perdida é, também, essa maternidade impossível, intangível, idealizada.

A boneca, em si, já mostra que as coisas não são o que parecem. Seu corpinho de plástico, limpo por Leda, não tarda a regurgitar toda a podridão que carrega dentro de sua oca cavidade. Lama, barro, água, no lugar de leite, baba e catarro.

Leda não deixa suas filhas e abre mão da maternagem sem pagar um preço alto, e talvez a maior credora tenha sido ela mesma. Talvez Leda nunca tenha almejado ser mãe; mais do que isso, Leda nunca conseguiu viver sua escolha de “deixar” suas filhas para explorar outras faces de sua vida. Leda voltou por saudade, mas também voltou por culpa, por remorso. Leda vê em Nina, de certa forma, parte de quem foi.

A filha perdida é a boneca da Leda jovem e de Elena, é Elena e a filha mais velha de Leda, Bianca, ambas perdidas na praia, é a própria Leda e Nina, que deixaram seus lugares de filhas para serem mães.

Muitas de nós nos identificamos com Leda, e com tantas outras personagens de Ferrante. Vemo-nos brigando para sairmos dos lugares que nos aprisionam, mas não fazemos isso sem carregar conosco um tanto de culpa, de sofrimento, de mágoa. Como feminista, costumo dizer que busco, entre outras coisas, a possibilidade de todas as mulheres (e pessoas) SEREM. Serem sem condicionantes, sem “mas”, sem “porém”. Não reivindico um lugar de santidade, de perfeição, mas o direito de sermos quem quisermos, passíveis de responsabilização por nossas escolhas.


[1] Essa expressão foi cunhada pela profª. drª Valeska Zanello, e tenho recorrido a ela desde que escrevi minha dissertação de mestrado sobre aspectos envolvendo os debates sobre gênero e loucura. Para saber mais, ver: ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris, 2018. COSTA, Bruna Martins. Controle penal da loucura e do gênero: reflexões interseccionais sobre uma experiência de transinstitucionalização. Dissertação (Mestrado em Direito), 2020. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

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  • Bruna Martins Costa

    Advogada e pesquisadora sobre temas ligados à violência, encarceramento, saúde mental e gênero. Feminista e escritora [s...

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