Por Lívia Reis e Arielle Sagrillo*

Em janeiro desse ano, a justiça criminal espanhola determinou a prisão preventiva de Daniel Alves, jogador da seleção brasileira, em razão da denúncia de um estupro, ocorrido no dia 30 de dezembro de 2022 em uma boate da cidade de Barcelona. No Brasil, a notícia surpreendeu não pelo seu conteúdo, mas pela conduta dos responsáveis pelo espaço e das autoridades. A rapidez com que a prisão do acusado foi decretada provocou reflexões sobre o protocolo adotado, bem como a importância de mecanismos para viabilizar a denúncia de crimes dessa natureza.

 Nesse caso específico, a Justiça lançou mão de uma atualização legislativa recente (i.e., Lei Orgânica de Garantia Integral da Liberdade Sexual) e de um protocolo da cidade de Barcelona que determinam, dentre outras coisas, que a vítima seja rapidamente acolhida e que lhe sejam ofertadas assistência policial, médica e psicológica imediatas. Tais dispositivos demarcam conquistas importantes dos movimentos feministas espanhóis e trouxeram grandes mudanças na tratativa dos crimes sexuais.

Assim como acontece no Brasil e em diversos países, a alteração da lei penal espanhola foi motivada por um caso de grande repercussão, que mobilizou a sociedade na demanda por soluções que garantam a proteção das mulheres em relação a essas violências. A mudança, além de alterar a tipificação do crime de estupro, dispôs sobre mecanismos de prevenção e de processamento desses crimes, que passaram a receber mais atenção com relação ao tratamento justo e igualitário durante o processo criminal. Além de previsões que tratam da educação social sobre o tema, bem como a qualificação profissional daqueles que são responsáveis pelos atendimentos das vítimas. 

Estes avanços são importantes especialmente quando se considera que é reconhecida a dificuldade de manejo de casos envolvendo crimes sexuais: seja no que se refere a coleta e preservação de provas, seja com relação ao reconhecimento de sua ocorrência por parte das vítimas.

Afinal, quando o assunto é violência sexual, ainda que cada violação deva ser entendida e cuidada como um evento único, a verdade é que tais casos guardam algumas similaridades entre si. Não raramente, por exemplo, o agressor é uma pessoa conhecida da vítima, não faz uso de arma de fogo no momento da agressão e são poucas as marcas físicas resultantes do ocorrido. 

Outra característica comum aos casos de violência sexual é a ausência de testemunhas. Na prática, isso significa que a comprovação da legitimidade de uma denúncia se alicerça, muitas vezes, no quão crível se considera o relato de um, versus o do outro. Nestes casos, entram em campo não apenas os fatos, mas também as narrativas, as profissões, a vida pregressa, as supostas intenções, os estigmas, mitos, crenças e claro, os interesses e níveis de poder daqueles que estão envolvidos. 

Espera-se, das vítimas, um passado e presente irretocáveis, nenhum sinal de interesse de reparação financeira (afinal, isso desabonaria sua intenção de denúncia por “justiça” ou reparação”) e, claro, nenhuma contradição, lapso de memória ou comportamento que se julgue hesitante ou “suspeito”. Nesse cenário, espera-se um discurso coerente, coeso, e rico de detalhes. Assim como se esperam ações imediatas (imagina demorar para fazer uma denúncia ou pedir ajuda? Impensável!) e nenhuma ambivalência durante o processo. 

O problema? Bom, o problema é que essas expectativas não poderiam estar mais distantes da realidade: seja porque mulheres vítimas de violência sexual podem apresentar relatos incongruentes e terem dificuldade em recordar o ocorrido (em razão do trauma vivido), seja porque investigações problemáticas, enviesadas ou malconduzidas tem potencial de fabricar relatos de vitimização percebidos como falsos ou não críveis.

Em situações traumáticas, é, inclusive, esperado que a vítima apresente dificuldades em sintetizar, categorizar e integrar a memória do evento em uma narrativa. É também muito comum que durante um relato de um evento traumático, tal qual uma violência sexual, a vítima possa ficar irritada, instável emocionalmente, ansiosa, ou com medo, por exemplo. Não à toa, estima-se que 90% dos casos sequer sejam reportados às autoridades. Porque é difícil comprovar uma violência sexual. E é ainda mais difícil quando o seu agressor reúne as condições perfeitas para preservar a imagem imaculada e irrepreensível enquanto, simultaneamente, torna questionável a conduta, o relato e intenções de quem o acusa. 

Com essas informações não se quer argumentar que estes sejam os únicos desdobramentos de ordem emocional e comportamental possíveis, mas que estes são desdobramentos comuns, razoáveis e até mesmo esperados. Por isso a importância de protocolos em casos de violência sexual: porque se nos cenários ideais, fatos se tornam provas e agressores são responsabilizados por suas ações, em cenários reais, cabe à vítima – e unicamente a ela – comprovar sua própria vitimização, e garantir o seu próprio cuidado. 

Protocolos como o aplicado pela boate Sutton, na Espanha, oferecem a possibilidade de que vítimas sejam atendidas imediatamente. Que agressores sejam responsabilizados. Que fatos sejam (apenas) fatos e que sirvam a um propósito justo.

E principalmente, que todos nós, enquanto sociedade, passemos a exercitar um olhar e postura de cuidado coletivos. Porque se a responsabilidade pelas violências cometidas contra mulheres nasce de uma irresponsabilidade social, o seu enfrentamento não pode ser endereçado de outra maneira que não essa: como um dever de todos. 

Portanto, alterações legislativas podem ser importantes aliadas no combate à violência sexual e à violência contra a mulher, mas não podemos nos prender à ilusão de que basta mudar a lei para que as coisas mudem. O endurecimento da lei penal não é a solução universal para todos os problemas que envolvem a segurança pública e a crença generalizada de que só há um caminho (este caminho!) acaba prejudicando a busca de outras formas de lidar com a violência e tiram o foco da tratativa que é dada a essas denúncias nos serviços públicos, por exemplo. A ideia de que quanto maior a ameaça, menor será a incidência é até hoje vendida como a fórmula mágica para redução da violência. Entretanto, na prática, não é nada difícil constatar a ineficácia dessas medidas. 

A violência contra as mulheres não acontece porque punimos pouco ou punimos mal, mas porque a leitura social que temos dessa violência é extremamente sexista e enviesada, o que faz com que haja descrédito nas denúncias e normalização de condutas violentas.

É preciso assumir nossa parcela de responsabilidade e entender essas violências como elas são, sistêmicas, enraizadas no pensamento e no comportamento social, impossíveis de extirpar sem ações que efetivem mudanças estruturais, de todes. Providências como otimizar o acolhimento das denúncias, preservar a integridade física e psicológica de quem denuncia e prover outros meios de prova para além do depoimento da vítima são indispensáveis para a apuração e erradicação dessas violências, assim como mecanismos de prevenção, que desmontem a cultura do estupro na qual estamos envolvidas e combatam estereótipos e preconceitos difundidos socialmente sobre como a mulher deveria se comportar antes, durante ou depois de sofrer uma violação.

* Arielle Sagrillo: Mãe da Anna, psicóloga Clínica e Ph.D em Psicologia Forense que compartilha conhecimento sobre violência através do @pesquisapsi_ 

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  • Lívia Reis

    Especialista em Ciências Penais, co-fundadora do Coletivo Nós Seguras e do Projeto Transversais, feminista, abolicionist...

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