Mitos que alimentam a cultura do estupro e desestimulam as denúncias de crimes sexuais
Para além dos estereótipos, estuprador é quem comete o crime de estupro
Falar sobre violência sexual é uma tarefa difícil e repetitiva. Diariamente nos deparamos com denúncias que deixam a população em choque (pois sabe da gravidade abstrata de um estupro), ao mesmo tempo que impressionam pela frequência com que ocorrem.
Em um caso recente, ocorrido em Joinville e denunciado pela vítima nas redes sociais, um homem pegou uma mulher pelo braço, anunciou um “assalto”, a ameaçou de morte e praticou um estupro na beira de uma avenida movimentada, em plena luz do dia. Situação que surpreende pela ousadia, mas também gera descrença, pois contraria os mitos de estupro nos quais estamos acostumados a nos basear para reconhecer esse tipo de violência.
Não foi um estupro em um beco escuro, não foi praticado por um “monstro” e não deixou marcas físicas, mas foi um estupro, nos moldes da previsão legal que define o crime, ainda que o próprio autor, apesar de reconhecer a prática do ato, não enxergue a violência da sua conduta.
A lei diz que estupro é um crime contra a dignidade sexual e pode ser praticado por e contra qualquer pessoa. Em linhas gerais, consiste na prática de ato sexual com violência ou grave ameaça, ou qualquer outra forma de impossibilitar o consentimento livre e espontâneo da vítima. Mas nem sempre foi assim.
Até 2009, as violências sexuais estavam localizadas em um título do Código Penal chamado “Dos crimes contra os costumes”, isso significa que, antes da recente mudança legislativa, o bem jurídico protegido pela criminalização desses atos não era a dignidade sexual, mas os costumes, a moral.
Ainda sobre a escolha da linguagem, somente em outra mudança legislativa recente, de 2005, o termo “mulher honesta”, que se referia às possíveis vítimas de crimes sexuais, foi retirado do Código Penal. A título de ilustração, trago a definição do renomado jurista Nelson Hungria sobre o que seria uma “mulher honesta”: “Como tal se entendem não somente aquela cuja conduta, sob o ponto de vista da moral sexual, é irrepreensível, senão também aquela que ainda não rompeu com o minimum de decência exigida pelos bons costumes. (…) Desonesta é a mulher fácil, que se entrega a uns e outros, por interesse ou mera depravação”.
Na história da criminalização das violências sexuais estão presentes muitos dogmas e valores dos quais lançamos mão até hoje para dar credibilidade ou não a relatos de mulheres sobre essas agressões. A ideia de “mulher honesta” pode ter saído do Código, mas segue insistentemente presente no imaginário popular e na forma como essas violências são processadas pelo coletivo.
A objetividade resta prejudicada pois cada pessoa tende a medir com a própria régua moral quais fatos podem ser considerados como violência, e as análises acabam se voltando não para as condutas praticadas, por mais escabrosas que sejam, mas para o comportamento da mulher antes, durante e depois do ato.
No caso de Joinville, a denunciante conta que se sentiu invalidada, pois foi questionada várias vezes sobre sua certeza dos fatos e da violência que tinha acabado de sofrer. Situações assim ocorrem porque é uma prática social extremamente comum a busca de “justificativas” para tais atos, que isentam o autor da responsabilidade e a transferem para a vítima.
Não à toa, desde cedo, muitas mulheres e meninas são educadas com regras restritivas de comportamento, na intenção de que aprendam a evitar violência sexual (como se fosse realmente possível): não usar roupas curtas, não frequentar determinados lugares, não sair em certos horários, se portar de forma contida e pudica. Por outro lado, homens e meninos ainda são ensinados a tratar mulheres como objetos a possuir e não conseguem sequer respeitar a simples regra de aguardar o consentimento antes de fazer um avanço sexual.
Por sermos mulheres, somos condicionadas a nos responsabilizar pela nossa segurança e proteção, enquanto a eles é autorizado e justificado nos invadir, desrespeitar nossos limites e forçar situações indesejadas. A essa dinâmica social e ao ambiente hostil que ela produz, damos o nome de “cultura do estupro”.
Um conjunto de crenças e valores sociais que apagam ou suavizam as violações que sofremos, tornando tais condutas aceitáveis, naturais e até mesmo esperadas, a depender da postura, reputação e aparência da pessoa violada.
No caso em questão, a certeza do autor do fato de que não praticou crime, mesmo admitindo a prática dos atos, é sintoma gravíssimo dessa cultura, desse ambiente. O contraponto dessa certeza é a dúvida que acomete inúmeras vítimas e faz com que haja uma estimativa de que apenas 10% dos crimes dessa natureza cheguem a ser denunciados.
Assédios, abusos e violações acontecem cotidianamente contra mulheres, porém, na maioria das vezes, a vida e os comportamentos de quem cria coragem para denunciar são colocados na balança moral de um senso comum que aplica uma série de “requisitos” para julgar se os crimes praticados são crimes mesmo ou falsa acusação, exagero, “mimimi”.
Enquanto o olhar para os crimes sexuais permanecer voltado ao comportamento da vítima e à busca de motivos para silenciar denúncias e minimizar os danos causados por essas condutas, essa violência não deixará de ser epidêmica. Enquanto continuarmos relativizando e normalizando a prática desses crimes a partir de julgamentos morais sexistas que fomentam a cultura do estupro, falar sobre violência sexual seguirá sendo muito difícil e muito, muito repetitivo.