13 de maio foi marcado por manifestações em mais de 40 cidades em todo o país para denunciar as violações racistas e execuções pelas polícias brasileiras.

“A morte do meu filho não pode ser em vão. Ele não era vagabundo e não era traficante. Ele era negro e o pai dele era um policial militar. Esse caso precisa ser investigado para que esses policiais saiam da rua e parem de matar”. Enquanto Kelly da Rosa, 44 anos, fazia seu protesto com o olhar direcionado ao grupo de policiais militares que estavam no Largo da Alfândega, em Florianópolis, aos poucos eles se retiraram. Esse não é o tipo de confronto que os policiais estão acostumados a fazer. Há um ano, Kelly chora a dor de perder o filho Everton Rosa da Luz, 22, morto com um tiro na cabeça e outro no peito por policiais militares de Santa Catarina, na calada da noite, no Morro do Mocotó, em Florianópolis. A mesma ação que tirou a vida de Everton também resultou na morte do jovem Lucas Pereira da Silva, 21. Desde então, o luto da trabalhadora doméstica virou luta. 

Kelly se uniu ao coro das mães e familiares de vítimas que buscam justiça em mais de 40 cidades do país, em 22 estados e Distrito Federal. “Nem bala, nem fome, nem covid. O povo negro quer viver”, sob esse lema a mobilização nacional foi organizado pela Coalizão Negra por Direitos e parceiras, no 13 de maio de luta, considerado “dia da abolição inacabada”, em referência à continuidade de uma política de violações racistas perpetuadas pelo Estado brasileiro. 

Cartaz com a foto de Kelly e o filho Everton/Foto: Paula Guimarães

Em Florianópolis, manifestantes se concentraram às 17h no Largo da Alfândega e marcharam pelas avenidas centrais, passando pela Assembleia Legislativa e Morro do Mocotó, em memória às vítimas de execuções policiais nesta comunidade. Participaram da marcha integrantes de movimentos sociais, principalmente jovens de organizações e coletivos negros da capital. 

“Vamos às ruas porque delas nunca saímos, a população negra e periférica estava nas ruas, mesmo no período de maior fechamento, porque são trabalhadores essenciais. E agora com essa flexibilização é a população negra que está nos serviços e linha de frente, em todos os lugares onde a vida não parou. Não houve o direito de preservação da vida pelo isolamento. A rua é o lugar de organização da unidade e resistência do povo”, afirma Azânia Mahin Romão Nogueira, militante do Núcleo de Estudos Negros e da Frente de Juventude Negra Anticapitalista (Frejuna)

O objetivo da ação foi exigir justiça para as vítimas do massacre na Favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, no dia 6 de maio, quando 28 pessoas foram mortas, incluindo um policial civil. É também um grito contra todas as execuções extrajudiciais por agentes de segurança nas favelas e comunidades do Brasil. 

Manifestantes lembraram a morte do menino “Naninho” de 12 anos, na Costeira do Pirajubaé, na capital, em novembro do ano passado, e de outros casos recentes que ocorreram durante a pandemia. A decisão de ir às ruas é uma forma de mostrar que não há segurança dentro de casa para a população negra. “A chacina no Jacarezinho é o ato mais recente, mas não o único, aqui temos muitos exemplos, inclusive o assassinato do menino Naninho, que aconteceu durante período pandêmico pela PM, mostra que nem mesmo a nossa infância negra e periférica tem direito de estar em casa com segurança”, aponta Azânia. 

Mesmo diante da pandemia, as medidas de segurança contra a Covid-19 foram respeitadas durante o protesto. A orientação para que isso acontecesse ocorreu antes e durante o ato. Para o distanciamento social, os manifestantes foram organizados em duas filas indianas, formato que tem sido adotado em manifestações do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Além disso, os organizadores realizaram arrecadação financeira para a compra de máscaras tipo PFF2. Em Florianópolis, dezenas de máscaras foram distribuídas. 

Ato em Belo Horizonte/MG. (Foto: Cadu Passos)

Existente há dois anos, a Frejuna tem mobilizado atos em defesa da população negra, como ocorreu em julho do ano passado, já durante a pandemia, em protesto contra o assassinato de George Floyd enforcado por um policial estadunidense diante das câmeras. Desde que iniciou a pandemia, medidas têm sido tomadas para garantir a segurança sanitária durante os atos. “Fizemos um ato com muito cuidado em relação às máscaras, inclusive cumprindo papel que deveria ser do estado, de distribuição de máscaras, álcool e distanciamento. Não há nada mais simbólico que o povo nas ruas”, afirmou a integrante da Frente. 

De acordo com Azânia, o 13 de maio é um dia de luta porque denuncia a falsa abolição, marcada por um processo de transição do trabalho escravo para o trabalho livre sem nenhum tipo de reparação ou mudança no controle dos corpos racializados. Segundo ela, essa estrutura de desigualdade que sustenta o racismo é histórica e ultrapassa o governo Bolsonaro, ainda que ele seja uma representação importante da opressão a esse povo. “O 13 de maio vem para mostrar que essa transição entre escravidão e sociedade livre é realmente algo posto no papel, mas não posto em prática. Temos muito o que avançar para transformar a nossa sociedade e isso só é possível pelas próprias mãos, e por isso fomos para as ruas, porque a mudança que queremos só virá pelas nossas próprias mãos”. 

O 13 de maio e as ruas

A ativista negra e feminista, integrante do 8M Brasil SC e do Levante Feminista contra o Feminicídio, Cirene Cândido, falou ao Catarinas sobre a luta por uma democracia de fato à população negra. “O grito que saiu da garganta ecoou a cidade de Florianópolis e em todo o país, o pedido por nossas vidas pretas diante de um desgoverno, que nos mata na bala, de fome e sem a garantia de que teremos vacina contra a Covid. Da mesma forma que fomos libertos em 13 de maio de 1888, jogados à margem da sociedade, com leis que somente nos colocavam como bandidos, assim é até hoje. 13 de maio é data de lutar por direito à vida, gritar por democracia”, afirma. 

Ela acrescenta: “O fato de termos que ir para as ruas, em plena pandemia, é a prova de que a sociedade não mudou. O chicote agora é a caneta, a elaboração das leis e das justificativas para nos matar”. 

Entre as manifestantes, a professora de Antropologia/UFSC, Pesquisadora GEPADIM/INCT-InEAC, Flavia Medeiros, fez coro às palavras de ordem acionadas durante o ato. “Se no meio de uma pandemia, a sociedade precisa ir para as ruas para manifestar pelos direitos mais básicos que temos é porque o governo é mais perigoso do que a razão dessa pandemia, no caso, o vírus”. Conforme explica, há uma carga social de revolta que tem se acumulado e que explode em situações de extrema violência. “É realmente uma situação de que não há a possibilidade de esperar que alguma coisa se modifique. Também tem aí uma dimensão realmente da energia da revolta, da indignação cotidianamente de tanto sofrimento, tantas formas diferentes de violência de manifestarem”. 

Pesquisadora de temas relacionados à violência policial, Flavia afirma que a chacina do Jacarezinho é exemplo da violência e terrorismo de Estado que se perpetua há anos. “É uma violência racial que por conta da marcação territorial, da cor da pele, da radicalização dessas pessoas, se legitima no senso comum como uma prática de combate à criminalidade quando, na verdade, é o exercício da legitimidade de poder matar”, explica. 

Ato no Rio de Janeiro. (Foto: Fael Miranda)

Além da critica à violência policial, manifestantes reivindicaram o auxílio emergencial de R$600 até o fim da pandemia, o direito da população negra à vacina contra o coronavírus pelo SUS e o afastamento do presidente Jair Bolsonaro, responsabilizado pela propagação do vírus e ausência de políticas para garantir os direitos da população mais atingida. “Estava muito claro, ao longo do ato, da importância da urgência que temos identificado dessas manifestações diante do estado de calamidade que vivemos, não só pela crise sanitária, mas também pela questão da insegurança alimentar, do aprofundamento da fome para grande parte da população e também a própria questão da gestão da pandemia que tem demonstrado o desinteresse do governo federal em coordenar as iniciativas que poderão vir a finalizar essa pandemia, principalmente pelo fomento de vacina”, avaliou Flávia. 

Como analisa, o 13 de maio é uma luta que perdura por séculos e que tem acompanhado os atos no país, apesar do silenciamento pelas mídias tradicionais. “O 13 de maio, que é esse dia escolhido pelos movimentos negros para a denúncia do racismo, justamente para combater diferentes farsas e do mito da democracia racial, do mito da abolição da escravidão. O 13 de maio é um dia para reforçar a luta, de ocupar a rua, o espaço público, e trazer à frente a denúncia ao racismo para fortalecer o que as demandas que o movimento negro têm feito e poder produzir uma reflexão antirracista”, afirma.

A falta de investigação das mortes praticadas pela polícia, de punição dos responsáveis e de transparência dos dados relacionados, é uma realidade do país. Reportagem colaborativa do Portal Catarinas publicada em julho apurou um aumento de 85% das mortes praticadas pelas polícias catarinenses, durante a pandemia de março a junho de 2020. O levantamento apontou ainda que das 64 mortes em ações policiais em Florianópolis desde 2016, apenas cinco casos foram distribuídos para a Vara do Tribunal do Júri. Ou seja, apenas 7% das mortes em operações policiais puderam ser analisadas pela Justiça.

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

Últimas