Domingo, 10 de maio de dois mil e vinte.  “Quando escrever é respirar”, escreveu-me o amigo Viegas, sobre uma crônica. Tenho respirado melhor aqui no interior, ouvindo gorjeios matinais e entre árvores cujas folhas do outono vão caindo até formarem tapetes marrons amarelados que o vento desloca de um lado para o outro, anunciando o frio que virá. As plantinhas da horta crescem, amêndoas da nogueira despencam, abacates caem com o vento, e os limões amadurecem – espremi uns quantos baldes deles e os transformei em cubos de gelo para quando a safra passar. Tenho acompanhado minha mãe nas manhãs de sol para um passeio entre suas plantas, e ela vai, com toda dificuldade no corpo já trêmulo, juntando folhas, limpando uma flor, tirando um excesso aqui outro ali. Ela olha atenta as mudinhas que semeamos faz um mês e diz: “Olha, logo vai dar para replantar”, satisfeita de ver como cresceram.

Assim, entre pequenos consertos, pegar na corrida uma penosa fujona que bica os alfaces, inventar bolinhos, catar goiabas e abacates, de olho aos horários dos remédios dela, cuidar para que ninguém invada nossos espaços, eu e minha mãe vamos vivendo. Sigo escrevendo as minhas angústias, alegrias, aprendizados, certezas e incertezas a rondar o cotidiano. E, tive o prazer de mostrar à Laura meu brinquedo de infância: fizemos casas com caixas diversas, e foi lindo vê-la criando a casa que imagina, minha engenheira favorita!  Fora essas coisas, mais uma lua cheia anda passando na minha janela, e nada acontece de diferente se o assunto for sobre cometer pecados da carne – evidentemente, com parceria. Sei que não é só comigo; então, paciência e espera; é o que temos por ora.

Foto: arquivo pessoal

Com minha mãe vou aprendendo a repetir cinco ou mais vezes à mesma pergunta como se fosse a primeira vez, pacientemente. De todos os aprendizados que tive na vida, esse está se revelando o maior deles: compreender os esquecimentos de minha mãe e reavivar sua memória sobre algo que aconteceu faz dez minutos, mas ela já esqueceu; ouvir a cada vez que a medico: “mas eu já tomei esse remédio agorinha”, e eu sei que esqueceu que já se passaram duas horas. Conviver neste cotidiano está sendo um presente; me vejo nela muitas vezes e, ao me olhar, também me ressignifico. Estranho-me às vezes. Ajudá-la no banho, secar suas costas, escolher um vestido leve para que se sinta solta e confortável, auxiliar ao vestir-se, tem sido a cada dia uma oportunidade de olhar com mais afeto. Atravessaremos juntas, mãezinha.

Neste ano, no Dia das Mães – que é todos os dias, a saber – tenho o privilégio de estar com a minha. A abraço muito, seguro suas mãos calejadas que não param quietas em consequência do Parkinson, com cuidado. Sabemos que colinho de mãe tem sabor e gosto de afetos!

             Therezinha Nazarena Zanelato de Fáveri tem 81 anos/Foto: arquivo pessoal

O que sinto é agradecimento. Ah, as mães, essas fortalezas, que durante um tempo da vida não valorizamos tanto como quando chegamos mais perto delas na idade; vamos nos percebendo fazendo as mesmas coisas, tendo as mesmas manias, lembrando os mesmos acontecimentos que nos pareciam esquecidos. As idades e seus aprendizados. Poderia tê-la olhado mais, cuidado mais, percebido mais suas lutas diárias, valorizado mais seus conselhos, sabido abraçar e agradecer mais. O tempo não volta; por sorte ainda tenho tempo para conviver e compreender mais minha mãe, cuidar e amar mais… Lembro-me dela jovem, seu corpo ágil, usando vestidos por ela costurados, sua ternura com os filhos e não faço outra coisa senão turvar os olhos entre o riso por tê-la tido como mãe, e lágrimas teimosas.

Minha mãe, a primeira feminista que conheci que sem o saber e com seu jeito de camponesa, me ensinou o valor da liberdade!

Das coisas inusitadas nestes tempos de isolamento social, uma delas foi o presente de minha filha: marcou um horário para que nos víssemos na telinha, e então, pediu que eu abrisse o e-mail. Ali, num texto que me fez derreter em lágrimas, reafirmava seu amor e agradecia por nossa relação. Então, me disse: “mãe, agora abre o anexo!”. Abri, e era um “vale tattoo” que dizia “para uma mãe feminista um presente feminista”. Dos olhos marejados passei ao riso largo! Ela me olhava e ria, eu a olhava e ria muito; e assim ela lembrou que, numa ocasião em que eu observava suas tatuagens, me perguntou se eu faria uma tatto em mim; respondi que se fosse me tatuar, seria com um desenho bem feminista. Minha nossa, agora não tenho desculpas, e vou fazer sim, assim que estes tempos complexos de pandemia passarem, vou a Curitiba e a farei, e acho que vou me sentir adolescente! Essa minha filha Tashi…

Em tempos como este, no qual a corja do fascismo entrou no cio, tem fogo nos olhos e o ódio como alimento, para muita gente são tempos de penúria, medo, perdas afetivas e financeiras. Perder o emprego se traduz na imprevisibilidade do futuro próximo, nas incertezas de como viver e, para muitas pessoas, sobreviver. Minha filha perdeu o emprego – contenção de despesas, disseram – e me ligou aos prantos. Eu lhe disse que a mãe está aqui, viva e forte, que não fique tão amuada, e assim numa longa conversa de mãe e filha, analisamos as finanças, e combinamos que se aguente sem tanta ansiedade, se acalme, pense em outros projetos.

Dia seguinte já tinha planos: vai fazer a cidadania italiana, já fez contatos, já tem as datas e é para setembro, que já fez as contas e que vai dar com as economias, e a ajuda da mãe, claro. Que bom que decidiu; fazia tempo isso a angustiava, mas o pai era prioridade e ele se foi em meados de abril; está em paz. Desejo que dê certo; vai dar sim! Mas, como todo coração de mãe, esse mesmo batimento no peito avisando que estou viva, dá saltos: em setembro estará a Itália livre do nefasto grudento e seboso? Estará, minha filha, esperamos que sim.

Projetos são o que nos movem, mexem, dão sentido à vida. Sim, minha filha, lembra o que me disse, ainda no aeroporto, chegando de um intercambio na Tailândia? Era dois mil e dezessete e você retornava de um trabalho com projetos sociais, onde ministrou aulas de inglês para crianças numa Casa de Proteção à Criança e Adolescentes: “mãe, eu tenho certeza do que quero na vida: trabalhar com igualdade de gênero, onde poderei ajudar mulheres, e eu quero chegar na ONU Mulheres.” Siga teus sonhos, filha!

Aqui, na clausura (é figura de linguagem, já compreenderam: não estou no claustro; por outro lado, é como se fosse), rodeada de plantas, flores, galinhas e gatos, repetindo afazeres, e mesmo assim acontecem coisas diferentes todos os dias. Coisas miúdas, do cotidiano, porém, ternas; outras de dar sustos. Fui catar entre os guardados de minha mãe tecidos para costurar máscaras para doação.  Numa dessas caixas de retalhos, havia dezenas de mangas de camisa, que originariamente eram de camisas de mangas longas e foram cortadas, separadas da camisa. Lembro de ter visto essas mangas muitas vezes nas arrumações de sua casa (e só sei que vieram parar aqui em casa depois que a casa velha de madeira, pegar fogo, isso em 1994, ou teriam queimado). Mas, e não sei por que, nunca perguntei de onde vieram e por que mangas de camisas.

Foto: arquivo pessoal

Hoje, perguntei: “Ah, foi minha mãe que me deu… eu acho que era de uma fábrica em Nova Veneza que, quando passava o inverno, cortavam as mangas para vender as camisas no verão… pelo que sei, é isso.” Sábia a mãe. Eu não teria pensado nisso. Separei umas quantas em pares, em xadrez uniforme, da cor marrom em destaque, e percebi que são de um tecido de tricolina antigo, de camisas boas, de bom feitio, algumas com o punho já separado da manga, o que deve ter dado um trabalhão para a nona desmanchar esses punhos – sei que ela não tinha dessas tesourinhas que se tem hoje, e já estava idosa e com as “vistas fracas”, como ela dizia. Minha mãe explicou que sua mãe lhe deu essas mangas e disse: “Pega, filha, pode te servir, é pano bom.”

Tempos de penúria, mas de afetos, cuidados, entre mãe e filha. Bem, coloquei-as de molho, depois lavei, estendi no varal, passei e fiz lindas máscaras. A nona Henriqueta era de aço, assim como é também minha mãe.

Ambas, minha avó e minha mãe, tiveram casamentos com os dilemas das mulheres casadas sob o domínio do pátrio poder. Se resignaram, mas também se refizeram e com outras palavras e gestos diante das intempéries, conseguiram manter uma família unida e cuidaram dos seus maridos doentes até lhes vestir a mortalha com o cuidado das esposas dedicadas. Viúvas, administraram suas vidas, e seguiram em frente. Sei que essa não é só a história de minha avó, de minha mãe. Muitas histórias ouvi na minha trajetória como professora de relações de gênero, e de antes, como extensionista rural, e de muito antes, quando menina e moça quando, mesmo sem entender, me tocavam a dor e o medo das mulheres com as quais convivi algum tempo.

Numa digressão, ou variações sobre o mesmo tema, lembro bem do relato de uma mulher já septuagenária, ali sentadas na varanda de sua casa que deixava à vista uma plantação de milho, no interior de Navegantes, quando das minhas lides na extensão rural. Foi um longo relato de sua vida, entrecortado de silêncios e, enquanto apertava uma mão na outra seu olhar se perdia no infinito da memória. Disse-me que se casou muito jovem com um marido violento, com quem teve sete filhos:

“Ele me tomava à força quando queria se aliviar, de deixar meus braços roxos… eu não gostava, não queria”.

Eram tarefas suas cultivar a horta; fazer a ordenha, o queijo, o pão em forno de barro, as refeições; criar galinhas e abastecer de ovos; da costura e da casa em ordem; bem como na roça, a par e passo com os homens da casa. No tremor das lembranças, contou que nunca tivera um dia de feriado nem mesmo nas quarentenas pós-partos. “Essa aconteceu comigo, é, aconteceu, veio prá mim…”, disse. Seus olhos apertavam como quando olhamos para o sol e o horizonte escurece, como se tivesse cometido algum pecado, cuja sina foi viver sempre assim, parindo, rezando e trabalhando como mula de carga. Sim, as violências de gênero são, por essência, incontingentes.

Foto: arquivo pessoal

Esse relato dos nos oitenta me reportou a minha avó, e inevitavelmente à minha mãe, ambas camponesas, e cada qual viveu sua sina. Lembrando dos infortúnios vividos por essa mulheres, manipulando panos que passaram pelas mãos de minha avó, de minha mãe, e agora pelas minhas, o que sinto é ternura misturada com vontade de voltar o tempo e abraçar minha nona, ouvi-la de novo e dizer que a amo; e, como ainda posso, deixei a máquina de costura e fui abraçar minha mãe com as veias alvoroçadas num mar de emoções. Saberá dessas histórias quem usará as máscaras? Por certo, não. A memória é de quem a viveu, e agora eu sei a história que minha mãe contou sobre minha avó, e um cadinho da história de minha avó e contada por minha mãe através das mangas das camisas.

A memória é incontingente. Mesmo se vier o Alzheimer, estão guardadas e grudadas em mim; mas esperamos que não venha, mãezinha.

Foto: arquivo pessoal

Na década mil novecentos e oitenta, eu não sabia como lidar com esses disparos d’alma sobre minha mãe. Eu escrevia. E lá, num poema intitulado “Mulher X” e dedicado à minha mãe, escrevi assim:

Rogo a ti, mulher,
Em cujo ventre cresci,
Pelo exato momento em
Que abriste tuas pernas
E me concebeste
Pelo enjoo que causei
Ao me embrionar nas
Tuas entranhas,
Pelo peso nos meses em
Que deixei varizes e
Marcas no ventre,
Pela dor no momento que
Ao mundo berrei meu
Grito de liberdade.
Rogo a ti, Mulher,
Por me fazer MULHER!

Dedico esta crônica a todas as mulheres camponesas, as de ontem e de hoje, porque todas merecem viver com ternura.

Agradeço a Larissa Viegas de Mello Freitas, sempre solícita com minhas urgências e digitações.

Marlene de Fáveri, Turvo, 10 de maio de 2020.

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  • Marlene de Fáveri

    Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC....

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