Dentre nossas pautas feministas, uma delas é a luta pela eliminação das violências no útero de mulheres e de meninas. Um aborto, na quase totalidade das ocorrências, sucede uma violência sexual, um estupro –  por coerção e/ou por explícita sedução e abuso violento do corpo alheio.

Sendo crime, alguém o pratica – são homens que estupram, portanto, os que assim procedem, são criminosos por lei. (Lei nº 12.015/09). Se o estupro, que é um crime, resulta em fertilização, é crime que a menina ou mulher violada tenha o direito de abortar por um crime praticado em seu corpo? E quando o corpo violado é de vulnerável, mesmo que a lei lhe dê guarida, é justo negar esse direito? Vimos, no caso da menina de 11 anos de Santa Catarina que, após ser estuprada e, grávida, foi submetida a mais mutilações no corpo e na alma. E da menina capixaba de 10 anos cujo corpo foi usado como palco político dos conservadores fundamentalistas reacionários. Dois casos recentes e aviltantes. 

Pergunte aos homens se aceitariam ser cerceados do direito às escolhas sobre seu corpo, se fosse violado e grávido nessas situações. Não, eles não sabem dos sofrimentos das mulheres e as acusam, ignoram que não há gravidez sozinha e sempre as culpabilizam. Isso ainda hoje.  

Na década de 1980, época do relato abaixo, não havia formas de denúncia de abusos sexuais e domésticos – em 1985 foi criada a primeira Delegacia da Mulher (Decreto 23.769, de 06/08/1985), estabelecendo a investigação dos “delitos contra a pessoa do sexo feminino”, previstos no Código Penal. 

Todavia, até que viessem as leis (Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990, Lei Maria da Penha, 2006; Lei do Feminicídio, 2015; Lei Carolina Dieckmann, 2012; Lei Joana Maranhão, 2012; Lei do Feminicídio, 2015 e outras mais recentes), não havia canais de denúncias. Ademais, as mulheres, naquela década, não eram ouvidas e sua voz, quando aparecia, era tida como reclame sem causa. Era o reino do patriarcado a ditar normas e usos dos corpos das mulheres.  O feminismo era gestado no Brasil e começava a fazer eco. 

Nessa década (e também na seguinte) as mulheres não tinham informações sobre seus corpos e pairavam o medo e a vergonha tanto incrustados pela religião e costumes pautados no pátrio poder. Não havia leis que protegessem as mulheres, nem canais de denúncia e, embora o estupro fosse um delito grave previsto por lei, quem iria acreditar na jovem? Seria culpabilizada.

Eu era jovem, estava na faculdade e acompanhava dramas principalmente de jovens vindas do interior como eu que, sem educação de gênero e sexualidade, eram seduzidas. Não raro, consumavam-se tragédias. Lembro de uma jovem que tomou soda cáustica, outra que morreu de complicações de um aborto caseiro, e assim por diante. Era como se homens tivessem direitos sobre nossos corpos e isso não os criminalizava. 

Na minha experiência na docência sobre o tema relações de gênero e feminismo, ouvi muitas histórias doloridas. Narrativas de estupros quando meninas – por pais, vizinhos, irmãos, primos, conhecidos –, de assédios, de sedução, ameaças, desqualificação… A docência me fez confidente de tantas histórias que configuram um compêndio de horrores. Histórias de medo, dor, culpas, desumanidades, abandonos, expulsão de casa, complicações na saúde, surras, estupros, violências nas suas mais aviltantes formas de degradação dos corpos e mentes de meninas e mulheres. 

Faz alguns anos, numa das aulas que eu ministrava na pós-graduação, debatíamos sobre livre arbítrio, as escolhas, as violências, as leis. Na ocasião, sugeri que, se não quisessem falar, escrevessem experiências vividas com o corpo com enfoque nas violências. Recebi sete depoimentos, todos de sangrar os olhos. Compartilho uma dessas histórias: 

Professora, eu nunca contei o que vou falar, engoli para esquecer, mas ficou no meu estômago. Eu tinha dezessete anos, morava no interior, numa vila rural no Oeste de SC e consegui terminar o ginásio. Sonhava e queria ser professora, mas meu pai dizia que sair para estudar era para virar puta. Fiz o vestibular escondida e passei, mas na época só tinha faculdade em Florianópolis.Com uma conhecida que também passara no vestibular, viemos a Florianópolis e foi uma tragédia em casa, apanhei. Mas eu vim. Logo consegui um emprego de recepcionista – hoje eu sei que eu era muito bonita, o que na época não observava, me achava chucra e feia. Depois soube que foi por isso que me chamaram naquele emprego, porque eu era um chamariz, como me disseram. 

Numa festa, minha primeira saída à noite, conheci um piá que era estudante de medicina. Dancei com ele, e seguimos nos vendo por alguns finais de semana. Mas ele queria mais e me forçava para tirar a roupa. Eu não queria, mas ele insistia. Uma noite, tomou-me à força. Gelei, queria gritar, mas não consegui de pavor. Fechei os olhos com vergonha e medo, senti dor e engoli o choro. Foi rápido, mas pareceu-me uma eternidade. Voltei para a república sentindo-me suja. Eu não tinha ideia do que era o sexo, e fiquei pensando se era isso mesmo. Se fosse, não queria mais. 

Mas aconteceu que, umas semanas depois eu voltava do trabalho e fiquei tonta, enjoada. Vomitei. Tomei chá de boldo e vomitei mais ainda. Entrei em desespero. Dias depois confidenciei a uma amiga de curso. Ela me deu o contato de um médico que atendia pelo “INPS” para uma consulta, e ficou entre nós. Não disse nada para o namorado com medo que me culpasse. Fiz daqueles exames que o médico colhia uma gota de sangue, enviava a um laboratório e o resultado demorava uma semana. O percurso que fiz entre o consultório e a república, ali pela rua Bocaiúva, foi pesado. Chorava desesperada e rezava que fosse negativo. Pensava no meu pai, que me expulsaria de casa para sempre. 

Semana infernal e eu desorientada, enjoada e com muito medo.  Enfim, o dia: “deu positivo”, disse o médico, me passando uma folha onde li que sim, era positivo, de poucas semanas. Tremia, era visível. Ainda perguntei se daria para fazer algo, e ele respondeu que não, que eu me virasse e me deu um sermão. No caminho de volta, parei várias vezes, sentei na calçada, relia o laudo. Soluçava. O que seria de minha vida? De meus sonhos? Do futuro? Da faculdade? E se eu me atirasse da ponte? Não, não, seria covardia. Queria viver. 

Uma colega da faculdade que tinha mais idade que eu, percebeu meu estado triste e contei-lhe meu drama. Ela segredou-me um número de telefone e era de Joinville e aconselhou eu contasse para o rapaz. O procurei e contei. Ele nem quis ouvir, me chamou de louca e que nunca mais o veria. Foi-se. Meu mundo desmoronou. 

Como ir a Joinville sozinha, se eu mal conhecia Florianópolis? E recursos? Na época eram dois mil e alguma coisa, muito dinheiro. A mesma amiga me ajudou, emprestou e eu pagaria em parcelas, ficaria sem comer, daria um jeito. Telefonei e mal consegui falar o que queria. Marquei na 6ª feira seguinte à tarde. Avisei no trabalho que ia ao médico, e o chefe pediu para levar um atestado. A viagem de ônibus foi a pior viagem de minha vida, vomitava, há dias não comia nada.   

Era uma casa e notei que ali fora alguns homens aguardavam. Numa sala de espera estavam umas doze pessoas, entre mulheres e na maioria meninas. Juntei-me a elas e havia ali um silêncio sufocante. Nenhuma conversa. Uma menina que devia ter uns doze anos e segurava um brinquedo, acompanhada de sua mãe, e reclamou de dor de barriga – a mãe disse que se aquietasse que já ia passar e falavam espanhol. A menina entrou antes que eu e, ao sair, escondia o rosto com uma mão e com a outra mão segurava o ventre e saíram apressadas, ela a mãe. 

Sim, dava medo. Mas eu estava decidida. Me chamaram pelo nome. Entrei. Primeiro o pagamento, nota por nota, que contei ao entregar. O médico pediu o laudo do exame, olhou e disse “está de poucas semanas, não vai ter nenhum problema”. A atendente, talvez fosse enfermeira, levou-me a um quartinho, colocou-me uma roupa adequada. Voltei à sala, deitei numa mesa alta e toda branca. O médico disse: “vai ser rápido, e depois vou dar-lhe injeções para não infeccionar”. Senti uma picada na veia… 

Acordei uns vinte minutos depois. Senti dores no ventre e o apalpei. Estava mole e meu primeiro pensamento foi “acabou!” A atendente me disse que era normal ter dores por algum tempo, depois passaria, e ajudou a vestir-me. Meio tonta ainda, ela me levou até a porta e disse “tome direitinho os remédios”. Agradeci. De volta à rodoviária, um pouco de dor, mas me sentia leve. Uma receita para doze injeções e um atestado médico. Só à amiga confidente contei, depois, como foi.

Na segunda-feira, voltei ao trabalho e, na minha ingenuidade, levei o atestado médico ao chefe. Ele leu, me olhou, riu com escárnio, e disse: “Como não és mais virgem, pode sair comigo. Quer continuar no emprego?”. Gelei. Saí da sala dele sem dizer nada e fui chorar no banheiro. Contei à amiga e ela me ajudou a encontrar outro emprego rapidamente. Silenciei e tentei esquecer. A culpa e o medo passaram, professora, mas ainda me dói muito. Obrigada por eu poder contar. 

Ana conseguiu interromper a gravidez, todavia, configura-se uma exceção à regra do que acontecia no cotidiano mais ordinário das mulheres – a ajuda de uma amiga confidente e generosa, uma clínica disponível no mesmo estado e o firme propósito de livrar-se do que adveio de um estupro. Não sem sofrimento, medo, silêncio, segredos, marcas, detalhes que a memória abre porque doeu e ainda dói. As mulheres, desde sempre, temem que seus corpos sejam violados – é o maior medo das mulheres. 

Na década de 1980 sequer havia dados estatísticos sobre essas e outras violências. O movimento feminista passou a fazer denúncias e a desenvolver ações trazendo para a esfera pública um assunto que até então era visto como de âmbito privado. Foi nessa década que a violência contra a mulher foi reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um problema de saúde pública e também passou a ser tema de pesquisas nos meios acadêmicos e na política – a criação da Delegacia da Mulher, os itens de proteção incorporados ao texto da Constituição de 1988 são exemplos desse início de preocupação que, não sem lutas, foi encampada pelo Estado brasileiro.

Aborto inseguro é das principais causas de morte materna. Pobres e mulheres negras sofrem mais, sendo a raça e a classe discriminadas. O aborto é uma das práticas em que mais sobressai a classe social da vítima, e é correto afirmar que mulheres com condições econômicas e das classes abastadas têm clínicas especializadas, médicos de família, e livram-se rápido, já às mulheres das classes pobres e na maioria negras, resta a criminalização, a clandestinidade e mesmo a morte. “Que democracia é essa que não garante o mesmo acesso ao aborto para um milhão de mulheres ao ano que recorrem ao procedimento?”, pergunta a advogada e ativista feminista Iris Gonçalves Martins.

No ano de 2019, conforme dados do Sistema Único de Saúde, foram registradas, por dia, uma média de cinco internações de crianças de 10 a 14 anos por aborto. Ou quatro estupros a cada hora de meninas de até 13 anos, conforme dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019. No ano de 2021, mais de 52 mil brasileiras foram estupradas, sendo a grande maioria delas crianças e adolescentes, dizem os dados do Anuário de Segurança Pública de 2022/Fórum Brasileiro de Segurança Pública. No primeiro semestre de 2022, mais de seis mulheres fizeram uma denúncia de estupro a cada hora no Brasil e estima-se que só 10% dos estupros são denunciados. Então, este é um cancro social. Como erradicá-lo? 

Lembro de Mariana Ferrer, cujo desfecho foi a absolvição do estuprador. Que canalhice torpe. E das meninas vulneráveis que, como a menina de Santa Catarina, levarão para a vida sua dor. O estupro é o crime que aumenta a cada ano – aumenta nas estatísticas, e infere-se que era muito maior na década de 1980, quando denunciar era quase interdito. 

Por que tanto sofrimento que gruda na memória da pele, do corpo, da alma e devora a autoestima e a felicidade de meninas e mulheres? A criminalização do aborto não elimina sua prática, é sabido. Em todos os tempos e sociedades, religiosas ou não, as mulheres abortam, é uma realidade do cotidiano das mulheres.

Pela retomada e fortalecimento do debate sobre gênero, raça, inclusão, diversidade e sexualidade em creches, escolas e todas as outras instituições de ensino nas políticas educacionais. Por políticas de formação de profissionais na educação e urgência no enfrentamento aos ataques diversos à laicidade do Estado. 

Pelo direito das mulheres e meninas de não serem violentadas. Se descriminalizar o aborto é dar guarida às mulheres e meninas que são vítimas desse crime hediondo, criminalizar e punir os homens que o praticam é fazer justiça. 

“O Estado é laico e precisamos reafirmar isso. Um Estado laico é aquele que acolhe a liberdade religiosa como direito fundamental, mas não é conduzido por nenhum dos valores de fé que o compõem”.
– Lusmarina Campos Garcia

Marlene de Fáveri, 27 de junho de 2023. Florianópolis. 

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  • Marlene de Fáveri

    Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC....

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