Uma doutora Travesti para o Brasil
Keila Simpson receberá o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Os movimentos populares de pessoas trans têm enfrentado obstáculos significativos na promoção da agenda pró-trans durante o governo Lula, especialmente no que diz respeito à comunidade LGBTQIA+. Essa dificuldade é evidenciada pelos retrocessos observados em várias frentes, como a abordagem das políticas educacionais para combater a LGBTIfobia nas instituições de ensino, a manutenção do modelo transfóbico no Novo RG, a exclusão das cotas trans do Concurso Nacional Unificado, além da ausência de políticas direcionadas para enfrentar os alarmantes índices de transfeminicídio no país. Esses exemplos ilustram a lacuna entre as demandas das pessoas trans e as ações efetivas do governo em promover seus direitos e proteção.
Estamos imersos em um contexto de extrema violência que avança na política institucional: somente em 2023, foram aprovadas pelo menos 77 leis antitrans em diversas cidades pelo país. Essas medidas se somam às constantes violações de direitos humanos que são expostas diariamente nas redes sociais, criando um ambiente onde a juventude trans se mostra menos otimista em relação ao futuro.
Em tempos de uma agenda política antitrans e mobilizações que pretendem retroceder nos direitos da comunidade trans, presenciar o reconhecimento de uma travesti que dedicou a maior parte da sua vida à luta pelos direitos humanos representa um marco histórico na construção de um outro imaginário onde travestis também podem ser celebradas e honradas pelo que têm produzido.
Keila Simpson, que hoje completa mais um ano de vida, certa vez disse que “cada ano que sigo viva é uma conquista”. Em meio a tantas alegrias que tem nos dado, afirma sempre que “nossa vingança será envelhecer”, falando sobre o seu desejo de ser uma travesti centenária. Ela foi a primeira travesti a receber o Prêmio de Direitos Humanos da Presidência da República e a receber o título de Cidadã Soteropolitana. Simpson chegou a Salvador da Bahia quando a ditadura militar brasileira estava com seus dias contados, em meados da década de 1980.
Maranhense de Pedreiras, ela saiu muito cedo de casa para encontrar a Keila que queria se tornar. E foi em suas andanças pelo mundo que ela pôde vislumbrar os caminhos que a trouxeram até aqui. Ela se estabeleceu na Bahia e de lá já girou o mundo representado o Brasil, sobretudo a comunidade LGBTQIA+ que a consagrou com um dos maiores nomes do ativismo no país. “Eu desejo vivenciar algumas dessas coisas que ajudei a construir no Brasil, porque antes não tínhamos nem o direito de usar os nomes que escolhemos!”, afirma hoje.
E como nem tudo são flores, ela – assim como muitas – já atuou como empregada doméstica e teve de ir à Itália trabalhar na prostituição nos anos 1990, mas foi na sua volta que passa a ocupar espaço de forma mais efetiva na militância a partir do GGB até sua chegada na Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) e na Antra, onde é a atual presidenTRA.
Ainda compõe a diretoria da Associação Brasileira de ONGs (Abong) e a Atração/BA, onde dá nome à Escola de Formação Política Dra. Keila Simpson. Ela própria se descreve como prostituta, atividade com a qual ganhou a vida durante décadas.
Keila afirma sempre que sua formação se deu nas ruas, e o ativismo a tornou PHD naquilo que tem produzido, construído e alcançado nesses mais de 30 anos de atuação.
Sobrevivente da epidemia do HIV e dos assassinatos, assim como das operações policiais nos anos 1990, Keila se fez Doutora no movimento LGBTQIA+ nacional. Líder nata, vem inspirando gerações e deixando um grande legado de vida e luta para a comunidade trans.
Ela não apenas dirigiu, mas também é protagonista do documentário que fala da sua trajetória, chamado de “Atentado Violento ao Pudor”, ambientado em várias partes do Brasil, está disponível no YouTube.
Em 2022 foi impedida de entrar no México, vítima de transfobia institucional na imigração que a posicionou como sendo “suspeita” por não ter o nome retificado, foi deportada e impedida de participar do Fórum Social Mundial, onde havia sido convidada para representar o país. O caso ganhou grande repercussão e comoção nacional, gerando diversos debates sobre a urgência de serem construídas políticas que garantam o direito migratório de forma segura para pessoas trans.
Em 2023 ela fez uma turnê ativista pela Europa. Indo em Bruxelas, Suíça (participar da 51ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU em Genebra), passando pela Áustria e chegando a França, onde foi aplaudida e aclamada pela sua potência, e pelas denúncias sobre a situação de pessoas trans no país, assim como o impacto das eleições naquele ano para o futuro de nossa democracia. No mesmo ano foi eleita para ocupar o Conselho Nacional LGBTQIA+ ligado ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.
Amada e reverenciada aonde chega, ao completar seus 59 anos, ela receberá neste 18 de abril a maior honraria da universidade, o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)*. Sendo a primeira travesti do país a receber tal reconhecimento, 122 anos após a primeira universidade ter sido criada no país, e no marco dos 73 anos da UERJ.
Um reconhecimento tardio, mas altamente importante e significativo para a história trans no país e para a própria democracia.
O Brasil teve sua primeira doutora trans apenas em 2012, Luma Andrade, e de lá pra cá temos visto cada vez mais uma ocupação qualificada e trans nas universidades.
Keila é mãe, doutora, puta, travesti, amiga, sonhadora e adora presentear amigos e pessoas queridas. Keila é uma verdadeira traviarca, uma tanque de guerra e uma articuladora das mais astutas que existem. Uma ancestral do futuro que tem nos brindado com um belíssimo legado, não apenas para o Brasil, mas para a história trans mundial.
Ela nos traz esperança e é uma inspiração para as novas gerações de ativistas. Um lembrete vivo de que somente a luta muda a vida.
Uma líder popular, acessível e revolucionária que tem transformado a realidade LGBTQIA+ no país, ela atualmente se dedica (entre tudo que faz) à criação e educação de sua sobrinha de consideração.
O Brasil ganha mais uma doutora travesti. E o título de Dra. Keila é o título de todas as travestis, doutoras forjadas na pista e que (ainda) não tiveram a mesma oportunidade de serem reconhecidas. Esse é mais um momento importante na sua trajetória, da pista ao planalto e à universidade. E aproveito para agradecer pelos ensinamentos e amizade, registrado meus mais sinceros desejos de que conquistas e sonhos realizados sejam uma constante em sua vida. Parabéns, Keila amada, obrigada por tudo e por tanto. Todas as honras e glórias aquelas que atuam nas trincheiras dos direitos humanos desse país!
*A entrega do título de Doutora Honoris Causa ocorrerá neste 18 de abril, na Capela Ecumênica, no campus Maracanã, a partir das 15h.