A famosa série “Adolescência” causou grande impacto nas pessoas que a assistiram e têm sido pauta de discussões em diversos veículos pelos últimos meses. Os espectadores ficaram impactados com a história do menino de treze anos que, influenciado por pensamentos misóginos, comete um crime bárbaro contra uma menina da mesma idade. Não se trata de um crime comum, mas de um crime de ódio, um feminicídio.

Nessas circunstâncias, é natural a reação de quem, na tentativa de entender como algo assim poderia acontecer, busca culpados e individualiza o problema, acreditando que seja possível apontar para alguém ou algum grupo e dizer “vocês erraram”, em vez de “nós erramos”. Nós, como um todo, como sociedade, como sistema.

Pois os problemas que levam um menino de treze anos a cometer um crime de ódio contra uma menina não são de responsabilidade apenas individual, ou da escola, ou da família. São problemas estruturais, que fazem parte da base que sustenta todas as relações sociais.

Na ficção, uma menina de treze anos é assassinada. Na vida real, uma criança é mãe a cada 30 minutos e uma mulher é morta por razões de gênero a cada seis horas no Brasil. O que faz com que a simples existência seja tão insegura para as mulheres? Por que números epidêmicos de atos violentos são praticados contra nós, todos os dias?

Como isso impacta as crianças e adolescentes que crescem nesse ambiente impregnado por estereótipos de gênero que colocam meninas e mulheres em posição de subalternidade em relação aos homens? São questões que os diversos feminismos se propõem não apenas a responder, mas solucionar.

Uma das respostas mais potentes para tais problemas é, sem dúvida, a instauração de políticas públicas de educação de gênero e sexualidade, direcionadas a pessoas de todas as idades. A ausência dessas políticas é tema que concentra fortes críticas do feminismo ao sistema.

É constante a batalha pela criação e aplicação de leis que estabeleçam o acesso a informações sobre o assunto, a exemplo da Lei Maria da Penha, que tem como diretriz de prevenção a promoção de estudos, pesquisas, campanhas educativas e inserção no currículo escolar de conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher.

É fato que faltam mais ações nesse sentido e que as que existem são insuficientes. Mas, ao analisar a questão, não devemos nos contentar com esse diagnóstico. É preciso procurar entender quais as razões dessa falta, quais os impeditivos para que tais políticas sejam colocadas em prática.

Na razão de ser da luta feminista, uma resposta: a ocupação de espaços de poder e de tomada de decisões, nos âmbitos público e privado, são extremamente desiguais entre homens e mulheres. Ainda que avanços tenham acontecido, quem determina quais pautas serão priorizadas são os homens, não exclusivamente, mas em grande maioria. 

Quando há conquistas na nossa luta por direitos, parte desse poder é redistribuído, a fim de que as relações se tornem mais equilibradas. Mas nem todo mundo fica feliz com isso. Desse descontentamento, surgem reações conservadoras e hostis de contra-ataque aos avanços feministas, que buscam culpabilizar o movimento pelas mazelas da sociedade, mascarando as estruturas de opressão.

Políticas educacionais de gênero têm um impacto comprovadamente positivo na vida de crianças e adolescentes, visto que, além de criar um espaço seguro para que essas questões sejam discutidas, ensinam a identificar violências, para que possam ser evitadas e reportadas, quando necessário. Ainda assim, há pessoas e organizações atuando incessantemente com o objetivo de impedir que tais políticas sejam implementadas. 

São inúmeros os projetos de lei que, assim como o “Escola sem partido” (PL 7180/2014), buscam proibir a abordagem de temas como orientação sexual e identidade de gênero nas salas de aula. A tarefa de educar novas gerações é constantemente obstaculizada por homens no poder e por mulheres que ocupam esses espaços, mas repetem discursos misóginos que prejudicam seus próprios direitos. 

Enquanto isso, quase não temos programas de educação de gênero nas escolas, mas estamos cada vez mais conectados a sites e redes sociais que, sem regulamentação, impulsionam o alcance de conteúdos violentos e sexistas, que propagam discursos de ódio e de culpabilização das mulheres.

Assim como na Idade Média, somos taxadas como criaturas irracionais e perversas, que precisam ser controladas ou atiradas à fogueira. 

Portanto, rotular a luta das mulheres em busca por direitos como equivocada e perigosa não passa de um clichê repetido exaustivamente e muito utilizado por quem menospreza o alto grau de risco e violência a que somos expostas todos os dias e lança mão de preconcepções culpabilizantes para justificar a falta de interesse e de conhecimento sobre o assunto. 

Culpar o movimento feminista pelos problemas estruturais que esse mesmo movimento critica e combate não é somente um paradoxo previsível, como evidencia o poder contaminante da misoginia, entranhada até mesmo em pessoas que se julgam feministas.Estamos sendo sistematicamente agredidas, violadas, assassinadas e, como sempre, culpadas pelas violências que sofremos. Nada de novo até aqui, mas há escolhas possíveis. Seguir repetindo os mesmos erros, século após século ou procurar entender que cabe a nós trabalharmos juntas para mudar essa perspectiva. Nós, como um todo, como sociedade, como sistema.

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  • Lívia Reis

    Especialista em Ciências Penais, co-fundadora do Coletivo Nós Seguras e do Projeto Transversais, feminista, abolicionist...

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