E quem explica Freud? Quando o pai da psicanálise transformou abusos sexuais em teoria patriarcal
Fabiane Albuquerque mergulha nas raízes patriarcais da teoria freudiana para mostrar como o silêncio em torno das violências sexuais contra meninas foi transformado em “fantasia histérica”.
A escritora feminista Rebecca Solnit no livro Os homens explicam tudo para mim expõe a origem da palavra “histérica”, do grego útero, usada no fim de 1800 para referir-se à instabilidade emocional da mulher, ligada ao fator biológico. Os homens cientistas da época acreditavam, veementemente, que as mulheres eram inferiores, irracionais e indignas de confiança. Diagnósticos de histeria eram a normalidade neste período, ultrapassando bem mais de um século.
A autora diz que o mestre de Freud, Jean-Martin Charcot, até acenou para a relação entre este diagnóstico e os abusos sexuais sofridos por mulheres e a impossibilidade de nomeá-los ou expor o trauma. “O jovem Freud teve uma série de pacientes com problemas que pareciam ligados aos abusos sexuais sofridos na infância”, diz Solnit.
No início, ele até dera ouvidos aos relatos destas mulheres e, em 1896, escreveu: “Então, a minha teoria é que na base de todos os casos de histeria estejam um ou mais casos de experiência sexual precoce”. E, numa carta a um amigo, pontuou: “Em todos os casos é o pai, inclusive o meu, o acusado de ser um pervertido”.
Rebecca Solnit diz que se ele tivesse levado a sério os abusos sexuais de meninas nas famílias, o Patriarcado teria ruído, ou pelo menos, estremecido. E, para ela e outras autoras, foi justamente o fato de poupar o sistema patriarcal, que o fez recuar no aprofundamento destes casos tratados no seu consultório.
Judith Herman, psiquiatra feminista, no ensaio Cura do Trauma, diz que ele se deu conta da implicação social bastante radical da sua hipótese e a abandonou, afinal, colocar-se contra os homens ricos da sua época teria graves consequências. E foi aí o início da grande virada. Freud parou de escutar as pacientes e afirmou que elas inventavam as histórias, que eram fruto da imaginação de mulheres “histéricas”, pouco confiáveis.
Ele construiu um grande álibi para os homens que cometiam os abusos: “Ela quis, ela procurou, ela imaginou e o desejou”. E, este mesmo esquema de explicação, ainda hoje, permanece entre nós: “Ela é louca”. Freud construiu as bases do discurso patriarcal científico que deslegitima mulheres vítimas de abusos sexuais, afinal, mulheres não são atendíveis, a palavra delas é duvidosa. Então, toda vez que uma mulher é desacreditada, isso tem um longo esquema por trás, uma longa história amparada na teoria científica, não somente na moral Patriarcal.
A filósofa francesa Luce Irigaray, no livro Speculum, critica a visão machista de Freud ao mostrar que, para ele, meninas e meninos atravessam a mesma fase fálica. Freud não reconhece uma fase vaginal, “vulveriana” ou uterina no desenvolvimento psíquico das meninas — o pênis é tomado como modelo. Assim, segundo ele, a menina passaria por um período em que sentiria a falta do pênis e buscaria um equivalente.
E, confirmando o que outras feministas apontaram, Irigaray traz um relato de Freud bastante revelador:
“No período em que o maior interesse era ligado a descobrir os traumas sexuais infantis, quase todas as pacientes contaram-me terem sido seduzidas pelo pai, mas no final, convenhamos, eram todos relatos falsos e aprendi assim, a compreender os sintomas histéricos que derivam da fantasia e não de acontecimentos reais” (p. 33).
Daí a teoria do Complexo de Édipo, em que a menina tenta seduzir o pai na infância. A autora pontua: “Seria muito arriscado admitir que o pai possa ser um sedutor e desejar ter uma filha para seduzir”. Levanto a teoria às últimas consequências, para desejar o pai, é preciso competir e odiar a mãe. Assim, cria-se o mito da rivalidade feminina que passa por ontológico. Esta menina, rival da mãe, deseja o pai e inveja o pênis.
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Irigaray, contundente e sarcástica que é, diz: “A inveja do pênis, atribuída à mulher, não é outra coisa — repitamos — que um remédio contra a angústia masculina de não o ter. Se ela tem inveja, então ele tem um pênis. E, se ela tem inveja daquilo que ele tem, tratar-se-á de algo de valor. Talvez o único valor que merece ser desejado?” (p.47).
Este esquema só foi colocado em discussão por estudiosas feministas a partir dos anos 1980.
Mesmo provando que o determinismo biológico é uma teoria superada, que a vítima, quase sempre, é responsabilizada, nas instituições e no imaginário coletivo, ainda prevalece o modus operandi freudiano. Vide o julgamento e sentença do caso de estupro de Mariana Ferrer, quando o promotor responsável disse que o acusado não tinha como saber que ela não estava fora das suas faculdades mentais na hora do sexo.
E, ainda, o caso da adolescente estuprada por mais de 30 homens em 2016, cuja violência foi gravada e circulou em diversos grupos masculinos. O também promotor do caso perguntou à vítima se ela estava acostumada a fazer sexo em grupo. Mulheres que ousam falar da violência sexual e expor os homens, sobretudo se eles têm uma reputação respeitável, são chamadas de malignas, mentirosas, aparecidas, sem credibilidade, provocadoras, sedutoras, confusas, desonestas, intrigantes, delirantes, manipuladoras…
O mesmo processo que socializa os homens a pensarem e agirem assim, também atinge mulheres. Todas as vezes que uma de nós ousa expor ou falar, o coro feminino, domesticado, se volta contra nós, sejamos negras, brancas, pobres ou ricas, temos sempre um motivo dissimulado, ou, dizendo com Freud, não somos confiáveis. É perversa a nossa estrutura social, quando mesmo as mulheres seguram os pilares do Patriarcado para que não caia.
No meu livro Cartas a um homem negro que amei, exponho diversos homens da minha família que abusaram de meninas. A reação dos meus familiares, no primeiro momento, foi de silêncio e indiferença, para depois, tornar-se agressividade. Ouvi de uma parenta: “Eu também fui abusada e nem por isso saio por aí falando”. Como se o mal fosse da mulher que fala, não do abusador.
Na obra trago também uma sessão de terapia, cuja psicanalista, mulher que seguiu à risca os ensinamentos de Freud, reverteu o abuso, poupando o abusador e acusando uma menina, eu, na idade de cinco anos, de ter procurado.
E ela, com toda a convicção, citou ainda outros casos que atendeu no seu consultório dizendo que todas as mulheres, na infância, provocaram os homens. Eu não sei se esta abordagem ainda existe nos consultórios psicológicos, pois avançamos muitos, mas, na sociedade inteira, de juízes a médicos, de policiais a líderes de igrejas, das famílias às escolas, ela ainda é muito presente. Mulher tem sempre um interesse dissimulado quando denuncia abuso/assédio/estupro:
- Se ele for rico e famoso, ela quer fama e dinheiro.
- Se ela demorou a denunciar, algo de errado tem. Por que não denunciou na época?
- Se ela não denunciar, é porque gostou.
- Se ela não lutou e não saiu morta, ela consentiu.
- Se ele for personalidade pública, ela quer acabar com a carreira dele.
- Se ela aparece demais, quer atenção.
- Se ela não aparecer, se prefere o anonimato, está escondendo o quê?
- Se o homem é respeitado, por que ele faria isso? Ela só pode estar mentindo.
A psicanálise, para Irigaray, não deu conta da vida psíquica das mulheres, pois faltam representações para os nossos corpos, os nossos desejos, o nosso desenvolvimento, a nossa existência, de forma autônoma do processo fálico até agora impregnado na nossa cultura, nas nossas universidades, nos nossos saberes, na nossa psiquê.
O Patriarcado nos condenou à projeção dos homens, à imagem negativa e à castração física equivalente àquela da palavra, da narrativa própria. Urge destruir o Patriarcado e todo o seu aparato simbólico que nos negou o direito à autonomia e, este trabalho tem sido feito por mulheres feministas.