Costumamos colocar questões a partir de estatísticas porque as estatísticas dão a impressão de que há alguma racionalidade nos processos analisados. A racionalização, por sua vez, protege da angústia, do medo e do pavor causado por certos fenômenos.

Esse é o caso do feminicídio como fenômeno social crescente em nível nacional e mundial. O termo feminicídio é usado há décadas para designar um tipo de assassinato relacionado à condição feminina. Esse tipo de assassinato parece se tornar cada vez mais comum como se pode ver pelas estatísticas trazidas pelos noticiários, nos quais a notícia seca também ajuda a esconder o caráter tenebroso do fenômeno. O avanço dos feminicídios aponta para o caráter terrorista do patriarcado voltado à ameaça e à matança.

Certamente, em uma época em que tudo se torna espetáculo, ou seja, quando a lógica do capital captura toda imagem como mercadoria, nessa época, também caracterizada pela visibilização de todas as coisas, tendo em vista que a lógica do capital transforma até mesmo o horror em mercadoria, o feminicídio aparece mais do que em outras épocas. 

Porém, ao contrário de ser apresentado como um horror, ele figura nos meios de comunicação e na internet, como algo banal, dificilmente sendo objeto de horários nobres ou de manchetes de jornais ou de portais de notícias.

De fato, o patriarcado enquanto sistema sustentado na violência, necessita da naturalização e da consequente banalização dos atos violentos dirigidos contra as mulheres, para que ninguém se insurja contra eles. A cultura da ameaça está garantida e todas temem o que pode vir a acontecer. Por isso, muitas mulheres negam a violência e muitas se aliam ao patriarcado, achando que podem se camuflar nele e, assim, sobreviver.

A violência contra as mulheres vêm carregada de um plus de violência ligada à culpabilização da vítima. Mulheres são violentadas por seus agressores e por outros sujeitos participantes da cultura da agressão contra mulheres. A culpabilização implica um julgamento prévio em que tudo já foi decidido. Nessa decisão prévia patriarcal, a sentença final é a morte. 

Se a ameaça de violência funciona para impor o medo, no seu extremo está a sentença de morte como um perigo difuso no qual, protegidas pela racionalização, muitas não querem acreditar. Homens constantemente acusam esse argumento de “exagero”. Nada mais fácil que contestar abstratamente uma hipótese em vez de derrubá-la.

Nesse contexto, enquanto violência extrema, o feminicídio é um horror que não é visto como tal porque ele é apenas consequência de uma lógica inquestionável aceita por todos. Questionamentos são acusados de exageração e até de irracionalidade. Daí que as feministas sejam constantemente tratadas como loucas.

A lógica do patriarcado implica a misoginia, ou seja, o ódio discursivo, prático e performático contra mulheres. A violência simbólica e física depende da prática cultural do ódio que é naturalizada no patriarcado.

O ódio e a violência dele derivada é transformada em metodologia de controle e disciplina para que mulheres sejam obedientes e não se insurjam. Mas de que forma essa violência é naturalizada? 

Através de discurso e práticas constituindo um circuito vicioso. Aceita-se tacitamente que a violência é inevitável na “natureza masculina” enquanto que ser objeto de violência seria inevitável para uma mulher.  No imaginário sobre a ideia de uma “natureza feminina” a passividade, a fragilidade, a dependência emocional, financeira e afetiva, bem como a objetificação, lançam mulheres numa vida sem liberdade.  

No contexto de uma sociedade misógina, mesmo sendo mais visível e, em certos casos, até mesmo espetaculoso, o feminicídio é naturalizado, ou seja, é tratado tanto pelos governos e pelas instituições em geral, como se não fosse um problema grave. O caráter misógino, odiento e hediondo é sempre apagado.

No Brasil, o crime foi tipificado apenas em 2015 (Lei 13.104/2015) e se sabe que, desde então, pelo menos 10.655 mulheres foram vítimas de feminicídio, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) que estarreceu muita gente. Sabe-se ainda que em 2023 foram mortas 1.463 mulheres, um número ainda maior do que em 2022. E que o estado do Mato-Grosso, na região Centro-Oeste do Brasil, registra um índice maior do que o resto do Brasil. A região sudeste está um pouco abaixo das outras, mesmo assim há 1.200 casos registrados.

O FBSP recolhe dados das secretarias estaduais de Segurança Pública ou Defesa Social e do Ministério da Justiça e Segurança Pública. É preciso ter em vista que o feminicídio é um crime subnotificado e que isso faz parte de sua banalização.

De fato, a violência doméstica, na qual o feminicídio figura como violência extrema, é um fator estruturante da sociedade patriarcal, ou seja, ele organiza essa sociedade, mas isso explica também que essa sociedade é voltada à destruição. Numa sociedade não patriarcal, o feminicídio seria visto como um fator desestruturante da sociedade, das famílias e das relações e seria enfrentado em seu horror, combatido e superado. 

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  • Marcia Tiburi

    Professora de filosofia independente, escritora e artista visual.

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