Desde o 1º Encontro Nacional do Movimento Bissexual Brasileiro, realizado em Brasília, nos dias 22 e 23 de setembro, refaço a imagem da ativista Daniela Furtado enrolada em uma bandeira bissexual, procurando outras pessoas bissexuais no meio de uma caminhada de lésbicas, em São Paulo, em 2010. Esta memória, emprestada da pesquisadora Regina Facchini, diz muito sobre a experiência de se descobrir bissexual no Brasil.

Dois ou três anos atrás, eu e uma amiga bissexual conversávamos sobre as nossas adolescências e a constante sensação de não-pertencimento. Ela, vítima de bullying, isolada de todos os grupos sociais da escola. Eu, itinerante, tentando encontrar pontos de conexão e lamentando por quase, mas nunca me encaixar.

Eu queria me dar bem com os gays e me forçava a tolerar a misoginia – violência sobre a qual Fabiana Moraes escreveu para o Intercept e tantas vezes senti na pele. Eu achava que poderia me misturar às lésbicas, se usasse as roupas certas e guardasse o meu desejo por homens no armário, mas algo sempre me escapava – uma palavra, um gesto, uma subjetividade. Eu era a outra, aquela que não é heterossexual, tampouco homossexual. Aquela sem possibilidade de existência.

Em seu discurso, na mesa de encerramento do evento, Regina Facchini disse que lhe gerava inquietação sermos o movimento social que mantém em seu repertório estratégico as rodas de validação. Quando estamos entre as nossas, temos o hábito de acolher as mazelas da invisibilidade e repetir, uma e outra vez, que existimos, somos muitas e estamos em todos os lugares, do caixa de mercado às cadeiras do parlamento. 

Temos peles pretas, brancas e amarelas. Somos pessoas neurotípicas, neurodivergentes, com e sem deficiência. Somos cisgêneras, trans, travestis, intersexo, não binárias. Somos jovens, velhas, ricas, pobres. Algumas estão nos palcos, outras estão nas ruas. Vestimos quimonos e fechamos nossas camisas até o último botão. Passamos frio e fome. Temos experiências diversas e sofrimentos comuns. Muitas de nós convivemos com a baixa autoestima e a depressão. 

Em seu livro “Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?”, a filósofa estadunidense Judith Butler pergunta por que o enquadramento social de violência é seletivo. Por que o genocídio da população yanomami não recebe a mesma visibilidade que o desaparecimento de meia dúzia de bilionários em um passeio de submarino? Por que a morte de um empresário gera mais sofrimento do que o assassinato de um mendigo? 

Segundo a autora, toda vida é precária, mas é a partir do reconhecimento da precariedade de uma vida que podemos criar mecanismos para mantê-la. 

Em outras palavras, penso que nos reunimos em rodas de validação porque essa é uma tecnologia que nos permite tecer coletividades. Quando nos olhamos nos olhos, legitimamos nossas dores e nos encorajamos a reivindicar nosso direito à cidadania.

Todo mundo aqui é bissexual 

Eu ainda me sinto sozinha, mas desde que nos reunimos em Brasília e me dei conta de que bissexuais também podem andar em grupos, tenho aventado novas possibilidades. 

Quando Daniela Furtado saiu para caminhar entre as lésbicas, vestindo a bandeira bissexual, conheceu Regina Facchini. Ali, elas passaram a caminhar juntas, promovendo colaborações entre Bi-Sides (que também teve importante contribuição de Natasha Avital para se tornar um coletivo político) e Espaço B, dois coletivos pioneiros no acolhimento de pessoas monodissidentes no Brasil. 

Hoje, a memória dessa caminhada tem a potência de nos lembrar de que temos uma história. Apesar da sensação de isolamento, não estamos começando, não estamos sozinhas, não seremos interrompidas.

Atravessada uma década, finalmente conseguimos nos reunir enquanto movimento social organizado, fortalecendo a nossa coalisão por meio da Frente Bissexual Brasileira (FBB), que nasceu em 2020, durante a pandemia, e agrupa coletivas bissexuais de todo o país, além de ativistas independentes. 

Aqui, quero destacar o corre de Ana Paula Mendes, da Combi, de Santa Catarina. Vontade de encontro não nos faltava, mas faltava a contribuição de uma produtora engajada com a militância bissexual para concretizar essa reunião presencial histórica. 

Graças à agitação dessa catarinense, e de todo o Grupo de Apoio Organizacional (GAO) da FBB (importante citar nominalmente também Talitta Cancio e Fernanda Coelho), pudemos estar juntas na capital federal, no Espaço Cultural Renato Russo – artista que, como Marielle Franco e Renildo José dos Santos (pesquise esse nome), teve sua bissexualidade apagada pela bifobia, mas a gente não esquece.

Se decidimos caminhar lado a lado, é para construir memória e resistência.

Horizontes

Durante o 1º Encontro Nacional do Movimento Bissexual Brasileiro, reunimos assinaturas para protocolar, na Câmara dos Deputados, com o apoio da mandata da companheira sapatão Daiana Santos (PCdoB-RS), o projeto de lei que busca instituir o Dia Nacional do Orgulho Bissexual, a ser celebrado em 26 de setembro, em alusão à primeira edição do Festival BI+, organizado pela FBB em 2021, no formato on-line, por conta das restrições impostas pela pandemia de Covid-19. Ter um marco para celebrar a nossa união, com raízes brasileiras, é uma de nossas demandas. 

A Carta de Brasília, resultante das discussões empreendidas ao longo do evento, sistematiza outras reivindicações, como “investimentos em ações de resgate, construção, registro e difusão, da memória do movimento bissexual brasileiro e das personalidades que não foram reconhecidas na construção do movimento LGBTI+ brasileiro”.

Também demandados a “revisão de documentos e materiais do governo federal, visando corrigir bifobias e/ou incluir pessoas bissexuais”; uma resolução emitida pelo Conselho Nacional dos Direitos LGBTI+, com “diretrizes específicas sobre bissexualidade para o poder executivo”; a “divulgação e adensamento do conhecimento e combate aos alarmantes dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde sobre violência contra bissexuais para produção de conhecimento a fim de subsidiar políticas públicas”; entre outras ações.

Queremos participar dos diálogos e construções de todas as políticas públicas voltadas à população LGBTI+, em todas as instâncias do Estado brasileiro, porque, mais do que nunca, estamos juntas e organizadas. Confira a carta na íntegra aqui.

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  • Jess Carvalho

    Jess Carvalho é jornalista e pesquisadora da bissexualidade. Atua como editora, repórter e colunista no Portal Catarinas...

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