As atividades e celebrações do 8 de março em Florianópolis levam milhares de manifestantes às ruas da cidade para reivindicar direitos e denunciar as negligências do Estado nas quais somos acometidas na sociedade. 

Na capital catarinense, a organização do evento discute por meio de debates e exposições em reuniões qual será o tema a ser abordado de acordo com a conjuntura política do momento. Já figuraram entre os slogans o combate ao racismo, no rosto de Elza Soares, a violência política e feminicida de gênero, que vitimou Marielle Franco, a violência econômica que ameaça nossos corpos e territórios, dentre outros temas urgentes e necessários para a nossa vivência, segurança e liberdade. 

Desde seu início em 2017, após a Primavera Feminista global, os temas abordados têm sido interseccionais, considerando classe, raça e gênero sob os princípios que regem essa construção: anticapitalista, anticapacitista, antirracista e transinclusiva. Cada slogan destaca afirmativamente uma das camadas de opressão que afetam nossas vidas, sem que isso signifique o apagamento de outras pautas históricas e importantes.

Para 2024, o tema aprovado em Florianópolis, assim como em outras cidades do estado,  é “TRANSformando Luto em Lutas”, afirmando um feminismo transinclusivo que aponta para a convergência da agenda política entre mulheres cis, trans e travestis, mas também entre as demais identidades que rompem com a correspondência sexo-gênero: transmasculinas e não binárias. Ainda que o caráter transinclusivo esteja na essência do 8M, destacar o transfeminismo no slogan é uma forma de distinção sobre qual frente feminista construímos diante do essencialismo e negação das existências trans pelas denominadas feministas radicais, ou como elas mesmo se definem: fêmeas humanas. 

transformando luto em luta
TRANSformando LUTO em LUTAS! Lema do 8M SC 2024.

Nas publicações das redes sociais do 8M, se vê uma enxurrada de comentários transfóbicos e, por isso, criminosos, promovendo ataques às pessoas trans e travestis e à própria composição da Frente. Sim, todas, sejamos cis ou trans, viramos alvo de ataques virulentos e odiosos.

Recentemente, a pesquisadora e intérprete de Foucault, Judith Butler, lançou o livro no Brasil “Quem tem medo do gênero?”. A publicação nas redes sociais da Editora Boitempo recebeu diversos ataques. Os ataques ainda se estendem para páginas e redes sociais de organizações e de ativistas trans e travestis, sempre de forma simultânea, muito parecida com a estratégia praticada por grupos da extrema direita. Um “gabinete do ódio” do feminismo radical, talvez? Digo, de forma pessoal, que até mesmo nas minhas redes sociais diversas mensagens com ofensas, ameaças e outras palavras criminosas perduraram por dias após comentários sobre o 8M em Florianópolis.

Destaco, ainda, que para a mesma data em Florianópolis foi agendado um evento anti-feminista, proposto por uma deputada de extrema direita (seria isso liberdade de expressão, teria esse evento base constitucional?). Nas redes sociais, há um silêncio absoluto das feministas ditas radicais sobre o evento. Não compartilho aqui o link para não promover o que considero ação de ódio a um movimento social histórico. O problema para o feminismo radical  é o anti-feminismo ou a luta anti-trans? Não compreendo suas lutas sem pensar em interseccionalidade.

A LUTA É CONJUNTA

Se na década de 1970 no Brasil, o feminismo radical se engajava na luta contra a ditadura militar, pela legalização do aborto e pela maior participação das mulheres na política, hoje em dia se concentra principalmente na negação da existência de mulheres trans e travestis no feminismo e na sociedade.

Enquanto ocorre um aumento de produções acadêmicas sobre gênero, identidades, sexualidades, e produções teóricas que são revisadas sobre corpos trans e travestis, os feminismos plurais adquirem conhecimentos necessários da importância de uma luta conjunta, entre pessoas cis e trans, aliadas contra a regulação de corpos. A imposição anti-trans do “ser mulher” somente relacionada aos aspectos biológicos, para além de impor e limitar corpos, fragmenta uma luta onde os algozes são os mesmos: sexismo, machismo e patriarcado. 

No recém-lançado livro, Judith Butler destaca a importância do diálogo entre os feminismos e a comunidade trans para desmantelar as estruturas patriarcais relacionadas ao gênero, ressaltando a necessidade de uma abordagem decolonial. É necessário reafirmar o compromisso de “Mulheres, raça e classe” de Angela Davis, ou de “Vivendo de amor” e “O feminismo é para todo mundo”, ambas obras escritas por bell hooks.

Das publicações mais expoentes que abordam o feminismo plural, temos a contribuição de Kate Manne em ‘Down Girl, the logic of misogyny’, (“Garota baixa, a lógica da misoginia”, em tradução livre) no qual a autora apresenta e expõe as múltiplas faces da misoginia e do sexismo na sociedade patriarcal. Dentre suas inúmeras contribuições, as principais referem-se a como o feminismo emancipacionista pode atuar em prol de mulheres trans e travestis.

A autora identifica a misoginia como enraizada nas tentativas de manter as mulheres em papéis subordinados na sociedade patriarcal. Ela observa que o sexismo e a misoginia não são separados das experiências de pessoas trans e travestis, pois as violências e a exclusão social enfrentadas por esses grupos estão ligadas à transgressão do binário de gênero.

Para entender a misoginia e o patriarcado nas questões anti-trans, é crucial analisar o discurso dos papéis sociais, que reafirma valores centrados na família. Essa análise nos ajuda a compreender como tais estruturas perpetuam a discriminação contra pessoas trans.

Manne apresenta que

Para a lógica do patriarcado, daí a misoginia, muito inclui o compromisso com o binarismo de gênero, bem como uma metafísica anti-trans de gênero, uma visão heteronormativa da sexualidade humana para um quadro conceitual alternativo às distinções habituais entre homo, hetero e bissexualidade, bem como ideais de amor que tornam a monogamia obrigatória (MANNE,2018,p.27, tradução nossa).

No decorrer dos debates, a autora destaca que a defesa inflexível do binário de gênero está intrinsecamente ligada à misoginia e à transfobia. Isso ocorre devido ao conjunto de estereótipos e regulações dos corpos, que limitam as atribuições sociais das mulheres à identidade oficial do “ser feminino”.

Muitas feministas anti-trans abordam questões relacionadas às mulheres trans e travestis, acusando-as de usurpar ou reforçar estereótipos do “ser mulher”. A identidade feminina (ou o que a sociedade diz do que vier a ser feminino) não foi uma construção do transfeminismo, é uma realidade já posta e construída socialmente. Mulheres trans e travestis para serem lidas socialmente enquanto mulheres na sociedade patriarcal recorrem às vivências sociais já existentes. 

A necessidade de revisão teórica com a atualidade e a interseccionalidade

Sheila Jeffreys (2014), uma das autoras mais influentes entre as feministas radicais, argumenta que mulheres trans e travestis não têm lugar no feminismo. Suas análises revelam contradições sobre o conceito de “ser mulher”. Embora critique aspectos sexuais e diferenciações biológicas entre homens e mulheres, Jeffreys também reforça aspectos biologizantes para negar a inclusão de mulheres trans e travestis no feminismo. Para ela, apenas mulheres biologicamente definidas, com útero, ovário e vagina, têm o direito de denunciar a opressão patriarcal.

Nesse sentido, feministas radicais que dizem somente afirmar as noções biológicas de homens e mulheres, ao mesmo tempo limitam-se pelas definições do biologismo na defesa das categorias binárias. Isso ocorre mesmo quando os indivíduos na sociedade estão condicionados às subjetividades sociais desde o nascimento.

Para manter a preservação social (Bourdieu, 2002), a oposição entre o masculino e o feminino tornou-se a base de uma sociedade patriarcal, hierarquizada e com atribuições rígidas de papéis de gênero. Questionar essas normas poderia abalar as estruturas normativas da sociedade.

Cabe destacar que pessoas trans e travestis não são bem-vindas na sociedade patriarcal, pois desafiam os valores vigentes ao romperem com os binários de gênero e com a heterossexualidade compulsória associada a essas normativas. Enfrentam uma ordem social imposta e são sujeitas a dispositivos de segurança que reforçam as fronteiras sexuais e de gênero. Assim, são perpetuados estereótipos que as feministas radicais afirmam lutar por décadas para abolir.

Como já pontuei em outro artigo, com a ascensão da extrema direita houve aumento significativo de políticas anti-trans no Brasil. Desde 2022, estamos no período brasileiro de maior aprovação de Leis anti-trans no país. Já são 77 em vigor em 18 estados brasileiros. 

Manne (2018), apresenta que a misoginia é um braço violento e regulador da moralidade na sociedade patriarcal. Assim, feministas anti-trans negam o reconhecimento das identidades trans femininas, baseando-se em marcadores biológicos e sociais para definir quem é mulher.  

Portanto, mulheres trans e travestis precisam realizar performances de gênero que sejam percebidas pela sociedade como femininas para serem aceitas como quem são. Enquanto isso, as vivências das mulheres cis são naturalizadas, evidenciando a opacidade nas experiências trans e travestis diante de um paradigma ideológico e biológico já estabelecido pela sociedade. Portanto, mulheres trans realizam enfrentamentos na sociedade para serem reconhecidas enquanto pessoas de direitos e para combater o silenciamento político sobre seus corpos. 

Sexo e gênero podem ser considerados equivalentes em relação à sua construção social. O transfeminismo defende que ser mulher está além dos marcadores biológicos e de corporalidade, até mesmo para que as suas vivências não sejam presas aos determinismos sociais, mas que sejam construções individuais.

Além disso, ao se definir mulher exclusivamente pela posse de vagina exclui-se automaticamente a existência de pessoas intersexo, que se identificam como mulheres e são frequentemente vítimas de violência desde o nascimento, em prol da manutenção do patriarcado.

POR UM 8M PLURAL

A luta de mulheres contra mulheres, somente enfraquece o feminismo e fortalece o patriarcado. Ao debatermos a participação e presença de mulheres trans e travestis no 8M, reafirmamos o compromisso do feminismo interseccional, compreendendo o conjunto de mulheres, suas necessidades específicas e solidariedade de lutas em conjunto. O debate deste feminismo, necessita, também, abordar internamente as vivências de homens trans e transmasculinos, reconhecendo o gênero ou a imposição binária do gênero como um agravo para essas identidades.

Nossas vivências estão presentes nesses contextos, o que evidencia que não somos um movimento antagônico. Apesar de parecer que algumas demandas não são específicas de pessoas trans e travestis, reconhecemos que as dificuldades enfrentadas pelas mulheres cis também afetam as mulheres trans e travestis, assim como homens trans e pessoas transmasculinas. A interseccionalidade e o diálogo são elementos que permeiam nossas vidas diariamente.

Infelizmente, as mulheres cis ainda enfrentam lacunas significativas em seus direitos, exigindo mobilização massiva das feministas para conquistar e garantir aqueles já alcançados. O que defendo é o transfeminismo como uma proposta de luta conjunta, sem apagar as experiências das mulheres cis. Uma abordagem desprovida de interseccionalidade e diálogo resulta em lutas segmentadas, etapistas, favorecendo apenas o capitalismo e o patriarcado.

O enfraquecimento do feminismo não é causado pelas pautas trans e travestis, mas sim por conflitos que vão além do diálogo e do debate respeitoso, resultando em acusações graves e violações de direitos.

Os ataques online de feministas anti-trans frequentemente são levados ao Ministério Público devido ao estímulo à violência e ao discurso de ódio. Nos Estados Unidos e em países europeus, observa-se uma crescente associação da extrema direita com agendas anti-trans, chegando a discursos que promovem o higienismo social e a exclusão de pessoas trans e travestis da sociedade. É fundamental ressaltar que o feminismo nunca defendeu o extermínio de ninguém.

¹O livro não está publicado no Brasil. Caso alguém tenha interesse em uma cópia na língua inglesa, escrever em email que envio uma cópia.

Referências

BORDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kuhner. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

JEFFREYS, Sheila.Gender hurts: a feminist analysis of the politics of transgenderism. London: Routledge, 2014.

MANNE, Kate. The Logic of Misogyny. New York: Oxford University Press, 2018.

NUNES, Raul. A identidade transfeminista através da rede. Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women 's World Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017.

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    Mariana Franco é formanda em Serviço Social pela UFSC, Colunista no Portal Catarinas, Pesquisadora em Direitos Humanos n...

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