A tirania do urgente, trazida pela pandemia, ameaça o acesso aos serviços de sexual reprodutiva, principalmente de meninas e mulheres negras.

A garantia dos direitos reprodutivos é essencial para mulheres e meninas em qualquer tempo e contexto, principalmente em momentos de crises globais, conflitos e urgências sanitárias. No entanto, é a partir da estrutura patriarcal racista e o viés de gênero e raça implícitos que os Estados tomam as decisões, e com isso a garantia dos direitos das mulheres ficam ameaçados. Isso pode ser verificado em epidemias anteriores, a exemplo do zika vírus e do ebola e atualmente na pandemia do novo coronavírus. Diante disso, a pandemia, de forma direta e indireta, se tornou uma ameaça aos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e meninas e ao acesso aos serviços de sexual reprodutiva (planejamento reprodutivo, pré-natal, parto, aborto legal e puerpério), ampliando as barreiras pré-existentes no acesso a esses serviços. São mulheres negras, indígenas, das regiões periféricas e mais jovens, as previamente expostas e que vivenciam essas barreiras no contexto atual.

Desde quando se iniciou a pandemia da COVID-19 houve redução dos serviços de aborto legal no Brasil em torno de 55%, justamente em um momento que ocorre, ao mesmo tempo, o aumento das violências sexuais, lembrando que um dos casos permissivos para o acesso ao aborto legal é no caso da mulher sofrer violência sexual. Medidas sanitárias para mitigar a pandemia, como o isolamento e o distanciamento social, se apresentam como uma outra face para mulheres e meninas, ficando mais expostas às violências, visto que estão na presença constante do agressor. Sabe-se que, majoritariamente, são amigos, parceiros, namorados, conhecidos ou pessoas do ambiente familiar que praticam essas violências. Com isso, houve o aumento das violências domésticas e sexuais, situação registrada em diversas partes do mundo. Segundo a ONU Mulheres,  em alguns países, as ligações de pedido de socorro registraram um aumento cinco vezes maior quando comparado com o mesmo período do ano anterior. 

Com a restrição dos serviços de saúde, tanto as mulheres que têm direito ao aborto legal, quanto as mulheres que tiveram gravidez não pretendida e/ou não planejada, principalmente por conta da queda na oferta dos métodos contraceptivos, estão sob o risco da realização do aborto inseguro. Ademais, também houve baixa no fornecimento dos antirretrovirais para HIV/AIDS e antibióticos para tratar ISTs, como sífilis, devido a interrupções nas cadeias de suprimentos em geral e o redirecionamento da produção de insumos para COVID-19, além do deslocamento de profissionais de saúde na prioridade da atenção e do cuidado para as pessoas vítimas do novo coronavírus. Esses são impactos “indiretos” causados pela necessidade imediata de fornecer serviços de saúde “que salvam vidas” como parte da resposta para COVID-19

O que pode ser denominado de tirania do urgente, situação em que gênero, raça e outros marcadores sociais de opressão não são considerados prioridades para respostas a surtos de doenças, negligenciando as dinâmicas desiguais previamente estabelecidas.

No sentido de manter o isolamento e o distanciamento social, a telemedicina foi uma das estratégias utilizadas para dar continuidade à saúde reprodutiva, sobretudo na atenção pré-natal. Mas no contexto de desigualdades, acesso às tecnologias e a internet são oferecidos de forma desigual no país, com um gap entre os grupos raciais e os territórios. De acordo com o IBGE, uma em cada quatro brasileiras/os não têm acesso à internet, sendo que o Norte e a população negra apresentam maiores desvantagens. Mesmo com a preocupação com mulheres grávidas e o risco potencial de transmissão vertical, houve um retardo nas iniciativas de prevenção e o controle da infecção por COVID-19 para esse grupo, na busca de mais evidências clínicas na relação da doença com a gestação. Especialistas no tema alertavam, no início da pandemia, considerando que esse grupo costuma ser particularmente vulnerável às ameaças de doenças infecciosas.

O retardo nas iniciativas de medidas para a atenção à saúde materna impactaram a vida das mulheres, com o Brasil chegando a representar 77% das mortes maternas causadas pelo novo coronavírus no mundo.

No entanto, as mortes atingiram de forma desproporcional as mulheres negras, não por questões relacionadas à comorbidade, mas por causa das barreiras no acesso aos serviços de saúde, como ventilação mecânica e Unidades de Tratamento Intensivo (UTI), porque são elas que se localizam nas franjas das cidades, onde os vazios assistenciais persistem. Com isso, pandemia do novo coronavírus adensou o fosso desigual da atenção obstétrica quando se observa gestantes negras e brancas, sendo o resultado das manifestações do racismo na saúde, que atinge de forma institucional, nas práticas discriminatórias e pelo viés racial implícito às mulheres negras. 

Em resposta aos impactos da pandemia, as agências multilaterais, organizações não governamentais, movimentos de mulheres e pesquisadoras ativistas, têm juntado esforços para visibilizar as violações de direitos e buscando meios de enfrentá-las. São mulheres negras, indígenas, de povos e comunidades tradicionais, localizadas nas margens, no Sul Global, que por vezes estão em contexto de prisão, rua e migração, as mais atingidas pelas desigualdades, em especial neste momento. Com isso, formuladores de políticas públicas e defensores dos direitos humanos precisam avançar numa perspectiva interseccional na agenda dos direitos sexuais e reprodutivos com o propósito de mitigar os impactos da pandemia, com equidade para todas as mulheres nas diversas dimensões.

A arte da capa foi publicada originalmente neste informativo, do coletivo Basuras, sobre direitos sexuais e reprodutivos em tempos de pandemia.

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  • Emanuelle Goes

    Emanuelle Goes é doutora em Saúde Pública com concentração em Epidemiologia (ISC/UFBA). Realizou Doutorado Sanduíche na...

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