Na sexta-feira, 4 de julho, Sandra Mara Curti, 43 anos, decidiu procurar a Polícia para denunciar o ex-marido, Alan Borges, que a ameaçava de morte depois da separação. Registrou o boletim de ocorrência e pediu medidas protetivas de urgência, instrumento previsto pela Lei Maria da Penha que poderia garantir a sua proteção e a dos dois filhos, de 8 e 12 anos, diante das ameaças do ex. 

O pedido de Sandra foi encaminhado ao Judiciário de Londrina no final de semana, durante o plantão do juiz João Marcos Anacleto Rosa. O juiz indeferiu o pedido, alegando que “não pode atuar de forma precipitada”, que não há elementos suficientes para suportar a “rápida e frágil versão” registrada no boletim de ocorrência da “hipotética vítima” e afirmou, ainda, em sua decisão, que “A decretação de medidas protetivas há que se consistir em exceção e não regra (como se tornou corriqueiro nos dias atuais)”. 

Na segunda, dia 06 de julho, Alan foi até a casa de Sandra, entrou e a esfaqueou 22 vezes, em frente aos filhos. Ela foi socorrida, mas não resistiu aos ferimentos.

Mais uma mulher vítima de feminicídio no Brasil em 2020. Dessa vez, nem a denúncia, nem o pedido de medida protetiva foram suficientes para protegê-la. Menos uma vida e mais um número na estatística no sistema de justiça que ainda falha com as mulheres.

O caso gerou comoção no Estado. Grupos e organizações como a Rede Feminista de Saúde, o Conselho Municipal da Mulher e a Frente Feminista de Londrina publicaram notas de repúdio, manifestos e realizaram um ato na cidade, cobrando que se dê a devida credibilidade à palavra da mulher

De acordo com Andréia Cruz, professora e integrante da Frente Feminista de Londrina, a ação buscava evidenciar a violência contra a mulher em seu ápice, que é o feminicídio, e, também, a violência institucional, no caso da negativa da medida protetiva. 

“O juiz decidiu que o que ela estava dizendo era insuficiente para suportar o pedido de medida protetiva e este é o grande ponto neste caso: a voz da mulher precisa ter valor. A palavra da vítima precisa ter valor. Mas ela foi completamente desconsiderada. Quantas vezes essa palavra é desconsiderada? É um silenciamento da voz das mulheres. A mulher faz o B.O, solicita a medida protetiva, confiando que aquilo vai ter algum efeito prático na vida dela, e isso não se faz verdade. Não se faz verdade na vida de tantas outras mulheres que nós acabamos perdendo por feminicídio ou tentativa de feminicídio, ataques graves que deixam as mulheres em situações terríveis”, avalia a ativista.

O período de pandemia da Covid-19, o isolamento social, o aumento do desemprego, a sobrecarga de trabalho doméstico e a convivência mais frequente entre familiares têm evidenciado, também, o agravamento das violências domésticas e de violências contra mulheres e crianças. Tal evidência, no entanto, não se faz visível na leitura dos dados oficiais, quando disponibilizados.  

O monitoramento nacional Um vírus e duas guerras, publicado hoje, traz dados da violência doméstica durante a pandemia e demonstra que a maior parte dos Estados brasileiros registrou queda no índice de feminicídios no segundo quadrimestre de 2020, comparado ao mesmo período do ano passado. No entanto, o agravamento das violências e a subnotificação têm deixado desprotegidas uma grande quantidade de mulheres que não conseguem acessar canais de denúncia para pedir proteção. 

Monitoramento mostra os dados de feminicídio de 20 das 27 Unidades da Federação /Ilustração: Flávia P. Gurgel/Arte: Raphael Monteiro.

No Paraná, na primeira reportagem desta série, demonstramos a subnotificação da violência vinculada à falta de transparência do Estado em divulgar os dados de ocorrências das Polícias Civil e Militar, assim como a lentidão da Secretaria de Segurança Pública (SESP/PR) em compilar e apresentar os dados de feminicídio. No final de maio, a SESP publicou um relatório com os dados de feminicídio do Estado, de janeiro a março de 2020, comprometendo-se a divulgar a atualização trimestralmente. No entanto, os dados do segundo trimestre somente foram publicados no início de outubro.

Nesta segunda reportagem, enfrentamos mais uma vez a parcialidade dos dados disponibilizados pela SESP, que somente encaminhou os índices de janeiro a junho de 2020. Por não apresentar os dados de julho e agosto, o Paraná novamente não aparece no mapa de feminicídios desta série.

A redução dos índices e as características de raça/cor das vítimas de violência no Estado demonstram os desafios da subnotificação e chamam a atenção para os obstáculos enfrentados por aquelas que sobrevivem às violências num contexto de baixa garantia de proteção.

A cada 37 horas, um caso de feminicídio ou tentativa é registrado no Paraná

A trágica história de Sandra não difere de muitos outros casos em que companheiros ou ex ameaçam a vida das mulheres até que a ameaça se torne ação concreta.

De acordo com dados do Ministério Público do Paraná, de janeiro a junho de 2020 foram registrados 114 inquéritos de feminicídio e tentativa de feminicídio no Estado, o que representa um caso a cada 37 horas. Em 2019, foram registrados 104 inquéritos no mesmo período.

De acordo com Helena de Souza Rocha, presidente da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OAB-PR e conselheira no Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Curitiba, o índice de tentativas de feminicídio é tão preocupante quanto o índice de feminicídios, pois para que uma violência seja assim qualificada, ela deve ser considerada muito mais grave do que uma lesão ordinária. 

“São violências muito graves para serem registradas como tentativas de feminicídio. Então, se houve um aumento desse número total, que inclui tentativa e os consumados, isso demonstra o aumento de violências graves. Talvez a gente não tenha o aumento da denúncia, mas tivemos o agravamento da violência, e isso é muito preocupante”.

O caso de Sandra chamou a atenção para o que acontece após a denúncia da violência. Por isso, o Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Londrina solicitou à Vara Maria da Penha os números de medidas protetivas de urgência (MPU) requeridas, concedidas e negadas na Comarca.

De acordo com as informações repassadas, referentes aos últimos doze meses, foram deferidas 597 MPU pelos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e 663 pelo Plantão Judiciário, totalizando 1.260. No mesmo período, foram 451 MPU indeferidas pelos Juizados especializados e 253 pelo Plantão, totalizando 704 medidas.

Para Andréia Cruz, da Frente Feminista de Londrina, os pedidos indeferidos as fizeram pensar em 704 casos que poderiam ter o mesmo desfecho de Sandra. “A gente fica realmente muito preocupada”, relata. 

No entanto, de acordo a Zilda Romero, juíza que atua à frente da Vara Maria da Penha de Londrina desde sua instalação, em 2010, são recebidos entre 30 e 50 pedidos de medidas protetivas por semana, e a regra no juizado especializado é que todos que apresentem os critérios sejam deferidos.

Os critérios para o deferimento de medidas protetivas são: a existência de infração penal e a demonstração de perigo e/ou necessidade de proteção da vítima para que novamente não sofra a violência.

Segundo a magistrada, o indeferimento é exceção. “Nós sempre atuamos dando credibilidade à palavra da vítima. Depois do que aconteceu com Sandra, nós orientamos os colegas magistrados do Plantão para que eles defiram os pedidos, pra não corrermos mais esse risco. Na sequência, esse pedido vai para a Vara especializada e podemos examinar melhor. Se a gente vê que não era o caso de deferimento da medida, a gente revoga”, explica.

“As vítimas, quando procuram a justiça, quando elas requerem, é porque realmente estão sofrendo violência física, violência psicológica. Raramente uma mulher procura a justiça quando não está se sentindo muito ameaçada ou quando não está sofrendo a violência”, avalia a juíza.

As principais causas de deferimento são a ocorrência de violência física, verbal e sexual, além das outras violências patrimonial e psicológica. “Mas o que mais se vê em relação aos crimes são: ameaças, lesões corporais (ou mesmo vias de fato), estupro e perturbação da tranquilidade, praticados pelos ex-parceiros que não aceitam o término do relacionamento ou em razão de acreditarem ter a posse dessa mulher”, declara o documento enviado pela Vara Maria da Penha a esta reportagem. 

Nos casos de indeferimento, a razão mais comum é quando o fato não é resultado por condições de gênero e, sim, por questões estritamente patrimoniais ou relacionadas aos filhos, uso de drogas, entre outros.

A Vara Maria da Penha recebeu, no primeiro semestre de 2019, 686 pedidos de medidas protetivas de urgência, enquanto no mesmo período de 2020, foram 491. A diminuição de quase 28,4% se deu, de acordo com a magistrada, devido ao isolamento e à subnotificação, e não representa a diminuição do número de violência doméstica. “Acreditamos que aumentou, mas as vítimas não tiveram como fazer o boletim de ocorrência ou o pedido”. 

Dados da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça do Paraná (CEVID/PR) também demonstram queda no número de medidas protetivas autuadas no período. A diminuição começa a ser percebida em março, é acentuada nos meses de abril e maio, interrompido em junho e volta a cair em julho e agosto.

Considerando o total de medidas autuadas no período de janeiro a agosto de 2019 (23.449) e de 2020 (22.472), houve queda de quase 5%. No entanto, se considerarmos somente os meses após o início da pandemia, de março a agosto, a queda se mostra mais acentuada, de 17.159 em 2019 para 15.648 em 2020, diminuição de quase 9%.

Uma mulher é assassinada por motivo de gênero a cada cinco dias

De janeiro a agosto de 2020, 47 mulheres foram vítimas de feminicídio no Paraná. Em 2019 haviam sido 54, 12% a mais. No entanto, a queda destes casos começa a ocorrer somente a partir de março, pois nos três primeiros meses de 2020 foram registrados 23 feminicídios, um a mais que em 2019.

Assim, os dados atualizados chamam a atenção para os meses posteriores ao início da pandemia. De janeiro a abril, haviam sido 32 feminicídios em 2019, enquanto em 2020 foram 31, somente um a menos.

A partir do segundo quadrimestre, quando alguns estados haviam decretado o isolamento social (mesmo que parcial), a diferença entre o número de feminicídios aumentou na comparação entre 2020 e 2019, sendo 16 feminicídios em 2020 e 22 em 2019, uma diminuição de 28% neste ano. 

No monitoramento feito por esta série, que levou em conta os dados do segundo quadrimestre de 2020 comparado ao mesmo período de 2019, o índice médio de feminicídios, considerando os vinte Estados que repassaram os dados, é de 0,34 por 100 mil mulheres. No Paraná, onde ocorreram 16 feminicídios de maio a agosto, este índice é de 0,29 feminicídios a cada 100 mil mulheres, equivalente a Estados como Pernambuco e Rio de Janeiro, e menor que a taxa do Rio Grande do Sul (0,34) e de Santa Catarina (0,38). 

Os dados dos seis primeiros meses de pandemia, de março a agosto, mostram uma redução no índice de feminicídios no Estado, de 40 em 2019 para 33 em 2020, queda de 25%. No entanto, este dado ainda representa que uma mulher é assassinada por motivos de gênero a cada cinco dias no Paraná.  

Analisando este número de forma comparativa com outras unidades da Federação, o Paraná possui uma taxa de 0,61 feminicídios a cada 100 mil mulheres, isto é, maior que a média nacional, que é de 0,56. 

Na capital, Curitiba, o índice de feminicídios não seguiu a redução apresentada no restante do Estado, tendo ocorrido aumento de 7 para 11 casos no primeiro semestre de 2020, comparado ao período de 2019.

Além disso, chama a atenção o aumento do índice de feminicídios em agosto de 2020, quando seis mulheres foram assassinadas, o dobro do ano passado. Este número é alarmante, especialmente se representar uma retomada do aumento de feminicídios, que já se verificava no início do ano, com o afrouxamento das regras de isolamento social. 

O mês de agosto também é marcado pelo aumento no índice de ocorrências por violência doméstica. Embora a Polícia Civil tenha registrado uma diminuição de 4,6% no número de ocorrências, a Polícia Militar registrou aumento de 13,1% no número de registros, que saltou de 2.589 para 2.929 ocorrências só neste mês. 

Violência doméstica, estupro e estupro de vulnerável

A leitura contextualizada dos dados de violência contra as mulheres durante a pandemia, que envolve tanto o registro de medidas protetivas quanto as ocorrências policiais e os feminicídios, deve considerar o alto índice de subnotificação, especialmente devido à dificuldade de as pessoas saírem de suas residências e à presença mais constante dos agressores junto às vítimas, que não permite espaço para que façam a denúncia. 

De acordo com informações da Secretaria de Segurança Pública (SESP/PR), que envolvem as ocorrências registradas de janeiro a junho de 2020, comparado ao mesmo período de 2019, houve um crescimento de 8,5% no número de violência doméstica no primeiro trimestre de 2020, antes de iniciar o período de pandemia. A partir de março, período que começa o isolamento social, esses números começam a ter uma leve queda.

Com relação ao número de denúncias de violência doméstica contra mulheres com lesão corporal, o índice praticamente foi o mesmo entre o primeiro semestre de 2019, em que se registrou 13.579 ocorrências, e 2020, com 13.218 (diminuição de 2,5%).

Os dados de raça/cor registrados nos boletins de ocorrência demonstram que, em 2020, cerca de 56,8% dessas ocorrências foram feitas por mulheres brancas; 28,9% por pretas; 9,2% por pardas e menos de 1% por mulheres amarelas. Cerca de 600 registros não apresentaram a informação de raça/cor (4,3%).

Segundo Juliana Chagas da Silva Mittelbach, enfermeira e coordenadora geral adjunta da Rede Mulheres Negras Do Paraná (RMN/PR), os casos em que não há registro de raça/cor são, geralmente, casos em que a pessoa é preta ou parda.

“Nestes dados, sempre há uma porcentagem de ‘não informado’, pessoas que não se autodeclaram no quesito raça/cor que são, historicamente, aquelas que têm mais dificuldade de identificar sua raça e etnia, ou seja, a população parda e preta. Então é possível que esses números não informados, se fossem analisados com profundidade, provavelmente estariam dentro das estatísticas de pardo e preto, o que tornaria esse número ainda maior”, avalia.  

Outro tipo de violência contra mulheres que teve uma pequena queda no número de registros durante a pandemia foi o estupro consumado, que passou de 601, em 2019, para 545, em 2020.

No entanto, de acordo com Juliana, é uma diminuição muito discreta para um contexto em que as pessoas deveriam estar cumprindo o isolamento social.

“Considerando os períodos que tivemos de fechamento do comércio, deveria ter havido uma queda muito maior, o que não aconteceu. Mas a gente conhece a realidade, grande parte dessas violências contra as mulheres acontece dentro de casa, por parceiros íntimos ou familiares. Então, a diminuição desses números, que eu acredito que tem a ver com a diminuição dos crimes que acontecem nas vias públicas, demonstra ser muito discreta, porque dentro de casa ainda continuam acontecendo essas violências. Se tivéssemos a possibilidade de acompanhar de uma maneira mais próxima, com uma política voltada para a proteção de mulheres que fosse de fato eficiente, a gente possivelmente veria esses números aumentarem. Porque essas mulheres estão sofrendo o estupro dentro de casa, a lesão corporal, e não estão conseguindo sair do ciclo de violência e pedir ajuda. Quando vai desagregar por raça/cor, a gente percebe também um número grande de violência entre as mulheres pretas e pardas. E no caso das mulheres brancas uma diminuição maior percentualmente do que a redução dos registros envolvendo mulheres negras”, avalia. 

As mulheres pretas vítimas de estupro representam 26,4% do total registrado em 2020. As pardas são 9,9%, as brancas 58,5% e as amarelas 0,7%. O índice de pessoas que não informaram o quesito raça/cor foi de 4,4%.

A preocupação com a correta leitura dos dados que apontam para o perfil étnico/racial das principais vítimas de violência doméstica e familiar no Paraná é ainda maior quando analisamos o estupro de vulnerável. Dos 1.561 casos registrados de janeiro a junho de 2020, 25,6% não tiveram a identificação do quesito raça/cor. Entre os registros que tinham a informação, 58,6% das vítimas eram brancas, 12,4% pardas, 25,4% pretas e 0,83% amarelas.

“Proporcionalmente, 25,4% das vítimas de estupro de vulnerável era pretas e 12,4% pardas. É um número bastante alto, ainda mais se considerar que 400 vítimas (25,6%) não tiveram a identificação do quesito raça/cor. Isso é significativo e nos mostra que ainda precisamos fazer muito treinamento com as forças de segurança pública pra atentarem à necessidade da pergunta da autodeclaração e do preenchimento desse quesito, porque é um indicativo importante de qualidade de vida e, também, do índice de morte da população negra, para a gente saber, inclusive, qual é o impacto das políticas públicas”, analisa Juliana Mittelbach.

Os desafios persistentes da subnotificação

A falta de transparência, a persistente subnotificação e a baixa qualidade dos dados coletados pelos agentes da segurança pública através do boletim de ocorrência impedem uma avaliação fidedigna do cenário da violência doméstica durante a pandemia.

Um elemento a considerar é se as ações realizadas desde o início da pandemia têm alcançado a população mais vulnerável, como as mulheres negras, pobres, periféricas, moradoras de cidades do interior ou da zona rural, geralmente mais afastadas dos equipamentos de saúde e de segurança pública.

De acordo com Juliana Mittelbach, “são as mulheres negras que mais estão perdendo seus empregos nesse período, estão fragilizadas economicamente, com maior sobrecarga de tarefas domésticas, cuidado com os filhos e o acompanhamento das aulas virtuais. Isso está causando o adoecimento mental para as mulheres que, além disso, estão mais sujeitas à violência doméstica, por estarem mais tempo em seus lares, sem contar com a proteção do Estado pra conseguir sair desse ciclo”.

Além do perfil socioeconômico das mulheres, Juliana Mittelbach aponta que a presença da população pobre em regiões periféricas das cidades também dificulta o acesso às políticas públicas de proteção em caso de violência. Em Curitiba, por exemplo, que é a capital com maior número de negros do Sul do Brasil, a população é geograficamente dividida.

“É uma capital higienista, onde a população pobre fica de fato na periferia, afastada do centro. E a pobreza, as diferenças sociais, são territorialmente delimitadas. Até a Delegacia da Mulher e a Casa da Mulher Brasileira ficam distantes da periferia, em uma região mais nobre da cidade. Então a justiça não chega, e quando vem é com uma política de criminalização, inclusive da cultura, das nossas atividades, e não com uma proposta de proteção, como deveria ser o serviço da segurança pública”, avalia.

A dificuldade para realizarem denúncias, tanto por pessoas das periferias como das zonas rurais ou em cidades onde não há delegacias, fez com que a Procuradoria da Mulher da Assembleia Legislativa (Alep), o Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado do Paraná (NUDEM), a CEVID e o Núcleo de Promoção da Igualdade de Gênero do Ministério Público do Paraná (NUPIGE) solicitassem à Secretaria de Segurança Pública a mudança do B.O. online para contemplar denúncias de violência doméstica.

O B.O. online foi implementado em junho e teve 845 registros no período de 01 de junho a 27 de setembro, de acordo com a assessoria de imprensa da Polícia Civil do Paraná. Apesar de ser uma medida importante, o canal não é considerado ideal, de acordo com as entrevistadas.

Uma das características apontadas é o próprio modelo do boletim. Para Lívia Martins Salomão Brodbeck e Silva, coordenadora do Nudem, muitos B.O. são cancelados por problemas no preenchimento.

“Encaminhamos um ofício para a SESP com sugestão de melhorias para o B.O. online, porque o sistema precisa ser mais inteligente para evitar que as mulheres acabem não conseguindo finalizar em virtude dos problemas com o sistema. Também fizemos o pedido de disponibilização da medida protetiva de urgência (MPU) online e, por enquanto, o que a SESP informa é que não tem condições de criar o sistema nesse momento. Mas achamos que seria muito importante. Só o B.O. online já auxilia de alguma forma essas mulheres, mas elas também têm que ir presencialmente à delegacia para fazer o pedido da MPU ou, então, por meio de advogado ou defensor público. Então achamos que, para garantir esse acesso remoto mais completo, teria que incluir a MPU”, explica.

A exigência de que as vítimas de violência tenham que ir até uma Delegacia para dar prosseguimento à denúncia ou para solicitar uma MPU é considerado um empecilho, de acordo com a advogada Helena Souza Rocha.

“O boletim é uma iniciativa super importante, mas tem outro problema. Você faz o B.O. e, nas ações penais condicionadas, que precisam de representação, a mulher tem que ir depois à delegacia, tem até seis meses pra representar e, se não for, a denúncia é arquivada. Essa informação, a princípio, está no formulário online, mas dependendo da vulnerabilidade da mulher, eu não sei se ela vai ter compreensão do que significa ela não ir até a delegacia nesse prazo. Aí ela acha que fez o registro, mas é um registro que não vai resultar em ação porque ela teria que ter ido presencialmente. Essa é uma fragilidade”.

“Minha maior preocupação é que a gente esteja colocando a mulher em uma situação ainda maior de vulnerabilidade por ela achar que está protegida e não está”, complementa a advogada.

Para a coordenadora das Delegacias da Mulher do Paraná, delegada Vanessa Alice, a inclusão do pedido de MPU pelo Boletim de ocorrência online não é viável.

“É bastante complicado, porque se a vítima registra e requer e, depois, não comparece, como fica a situação do procedimento criminal? É completamente impraticável, do meu ponto de vista, o requerimento de medida protetiva de urgência pelo boletim online, porque em várias situações a gente não consegue localizar essa vítima, depende de ordem de serviço, depende de mandar investigadores atrás, você intima e ela não comparece, aí você expede nova intimação e ela não comparece, não demonstra interesse em dar continuidade neste boletim de ocorrência. Um grande número de vítimas age dessa forma. Se, no momento do calor, no momento do fato, ela requer a medida protetiva e depois ela desiste, nós não podemos ter essa desistência, nós temos 48 horas pra que essa medida seja decretada ou não pelo judiciário. Então nós temos que apresentar isso antes desse prazo. Porque vai dificultar muito caso a vítima desista”, argumenta.

No entanto, segundo avalia Helena de Souza Rocha, não há problema em incluir o pedido de medida protetiva virtual junto ao B.O. online, pois a medida protetiva é desvinculada da ação penal.

“Juridicamente, não há problema. O pedido de medida protetiva não precisa ser feito perante uma delegacia, ele pode ser feito perante o juizado, conforme a lei Maria da Penha, e é o juiz/juíza que determina quais as medidas e por quanto tempo. Não está vinculado a um boletim de ocorrência. Então até poderia ser criado outro procedimento para a solicitação de medidas protetivas, mas seria muito mais fácil se fosse feito em um procedimento só. Caso faltasse informações, aí sim chama-se a mulher para que ela prestasse as informações. Mas se o pedido já tá completo no B.O. online, porque já não permite isso? Eu acho que é possível, que tem que ser estudado e tem que ser modificado”, defende.

Para Zilda Romero, deve-se sempre facilitar que as mulheres cheguem aos serviços e sejam protegidas.

“Se há essa possibilidade, eu sou muito favorável, porque eu fico preocupada. Nós já tivemos casos de mulheres saindo da delegacia e sendo agredidas, ou chegando à Delegacia e sendo agredidas. Uma foi vítima de tentativa de feminicídio. O que nós temos é que proteger a mulher”.

É baseado neste entendimento que o B.O. online foi solicitado. Além das ações do judiciário e do legislativo, o trabalho de outras instituições, entidades, conselhos e da sociedade civil organizada têm demonstrado a importância do trabalho em rede para a proteção às mulheres vítimas de violência.

“É um momento complicado, porque a gente que conhece a complexidade da violência contra a mulher entende que ela nem sempre se traduz em números. E esse momento está demonstrando que não se deve ficar preso aos números, pois eles nem sempre revelam o que realmente está acontecendo. Por isso, houve uma mobilização muito grande, tanto da sociedade civil quanto do sistema de justiça em tentar adotar medidas para auxiliar nas dificuldades que a gente previa que ocorreriam durante a pandemia. Houve resposta do Tribunal de Justiça, com a prorrogação automática das medidas protetivas, e teve a coordenação de vários órgãos pra prestar informações e tentar encontrar formas de orientar e acolher mulheres, mesmo nesse período de isolamento”, avalia Helena Rocha.

Para Lívia Brodbeck, a formação especializada das pessoas que trabalham com essa questão é primordial para a eficácia das políticas e para o acolhimento adequado desses casos.

“Além de fortalecer a rede como um todo, é muito importante que todo mundo que atua nas instituições que compõem a rede de proteção tenham qualificação em gênero, em violência doméstica, porque é um fenômeno social muito complexo e que precisa ser visto com suas especificidades. Quando se faz um pedido de medida protetiva de urgência para uma mulher, é muito diferente de se tratar vítimas de outros crimes, pois normalmente os agressores que cometem outros crimes não têm esse perfil de perseguir, de obcecar, dessa escalada da violência. As mulheres que são vítimas de violência doméstica estão em constante perigo. Às vezes é uma ameaça em um dia e na outra semana já é um feminicídio”, conclui.

Enquanto a sociedade começa a retomar as atividades cotidianas devido à diminuição do medo da Covid-19 e o afrouxamento das medidas de isolamento social, mais da metade da população brasileira continua refém do medo e do risco, só que de outro tipo de doença, que é social e endêmica e vitimiza especialmente as mulheres.

A prevenção e o enfrentamento desta, no entanto, depende menos de ações e cuidados individuais do que de sensibilização das/os profissionais, de vontade política, de estrutura e de políticas públicas em prol da transformação social pela igualdade de gênero. Este é o único remédio, ou melhor, a única vacina que efetivamente pode prevenir, a longo prazo, as violências decorrentes do machismo, da misoginia e da LGBTTIA+fobia que mata, a cada 9 horas, uma mulher no Brasil.

A série Um Vírus e Duas Guerras vai monitorar até o final de 2020 os casos de feminicídio e de violência doméstica no período da pandemia. O objetivo é visibilizar esse fenômeno silencioso, fortalecer a rede de apoio e fomentar o debate sobre a criação ou manutenção de políticas públicas de prevenção à violência de gênero no Brasil. Parceria colaborativa entre as mídias independentes Amazônia Real, AzMina, #Colabora, Eco Nordeste, Marco Zero Conteúdo, Portal Catarinas e Ponte Jornalismo.

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  • Morgani Guzzo

    Jornalista, mestre em Letras (Unicentro/PR) e doutora em Estudos de Gênero pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Hu...

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