Quero começar esse texto pedindo licença, Agô!

Ainda que o Carnaval tenha se encerrado, de acordo com os calendários considerados oficiais, continuamos respirando a folia que ocorreu em diversas partes do país. E nessa batida carnavalesca, em muitos momentos, me peguei refletindo sobre sua potência gregária, sociopolítica e econômica, mas, sobretudo, sobre seus atravessamentos raciais. Não é novidade que já escrevi aqui sobre o assunto, mas a cada ano novos elementos vão sendo adicionados ao caldo social desse evento. 

Em 2022, a escola de samba carioca Unidos de Padre Miguel anunciou que seu enredo para o Carnaval de 2023 seria “Ave Maria Olorum – A Corte da Boa Morte”, de autoria dos carnavalescos Edson Pereira e Wagner Gonçalves, com uma homenagem à história da Irmandade da Boa Morte, uma confraria que surge no início do século 19, composta por mulheres negras adeptas do candomblé, que realizam há mais de 200 anos a Festa da Boa Morte, na cidade de Cachoeira, na Bahia, responsável pela alforria de muitas pessoas pretas no período escravocrata. 

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Bandeira Unidos de Padre Miguel | Crédito: reprodução.

O anúncio do enredo da Unidos de Padre Miguel ocorreu em julho de 2022 e prontamente teve a manifestação da própria Irmandade da Boa Morte recusando a homenagem pois, segundo as matriarcas, a confraria não foi consultada sobre o assunto. Em carta aberta, elas escreveram o seguinte:

Não sabemos como nossa história será contada se nada nos foi perguntado, e sem a devida proteção às nossas tradições não há possibilidade de consentirmos. Assim, através da presente carta, registramos o nosso profundo agradecimento à escola de samba Unidos de Padre Miguel pela homenagem, ao tempo em que expressamos as nossas razões e decisão, orientadas pela força espiritual e ancestral que nos mantém, de não aceitação para figurarmos como tema do enredo de escola de samba no carnaval, apesar da grandiosa homenagem, em razão de sermos uma irmandade religiosa”.

Após esse pronunciamento, a agremiação carioca decidiu escolher outro enredo para o Carnaval de 2023 e acabou optando pelo tema “Baião dos mouros”, abordando a influência árabe, moura e muçulmana no Nordeste brasileiro. Em resposta à negativa da Irmandade da Boa Morte, a Unidos de Padre Miguel reconheceu seu erro e a gravidade na falha de comunicação:

“A falta de cuidado ao levar a notícia sobre o enredo e o afã em desvendar o que seria feito acabou por interferir na boa relação que vinha sendo construída à distância com as representantes da irmandade, no entanto, o bom senso e o zelo pelas boas relações seguem firmes por parte da escola que, nesta segunda-feira, dia 18 de julho, enviou uma representante da escola em Cachoeira para, em nome da Unidos de Padre Miguel, se desculpar com as irmãs por todo o imbróglio desnecessário envolvendo tão especial e respeitoso grupo”.

Já em 2023, a escola de samba carioca Unidos da Viradouro, através do carnavalesco Tarcísio Zanon, o presidente da agremiação Marcelo Calil, o diretor de carnaval Alex Fab e o historiador João Gustavo Melo desembarcaram em Salvador, no terreiro Zoogodô Bogum Malê Rundó para uma consulta oracular e autorização da Mãe Índia Nadoji, atual sacerdotisa desse terreiro de Nação Jeje, pedindo a permissão aos Voduns, para colocarem na avenida o enredo 2024 da agremiação: “Arroboboi, Dangbé!”

Em 12 de fevereiro, segunda-feira de Carnaval, estava assistindo aos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro pela televisão, enquanto lia e escrevia os textos para compor a futura (e pretensa) tese do doutorado, aguardando para assistir àquelas agremiações cujo enredo traria a história do povo preto. Consegui ver todo o desfile da Portela, que abordou “Um defeito de cor”, obra da Ana Maria Gonçalves que tem grande importância para mim, mas não consegui avançar mais do que o início da Unidos de Vila Isabel com “Gbala – Viagem ao Templo da Criação”. 

Na manhã do dia seguinte, recebi uma mensagem de um grande amigo carioca me sugerindo fortemente que visse o desfile da Viradouro, após ter dito que havia assistido a Portela ele me alerta: “Cauane, veja a Viradouro, a escola fez um desfile de campeã e sei que você vai curtir, por ser candomblecista certamente entenderá mais que eu”. De fato, o desfile impactante entrou pra história com a bateria do Mestre Ciça e a gramática dos tambores irretocável com frases percussivas de cabula, alujá, ijexá que acompanhavam o samba-enredo lindamente. As fantasias serpenteiam até agora o imaginário do espectador, a letra do samba, entoado por toda a Sapucaí, reverbera até os dias de hoje. Não à toa, a escola foi campeã com folga: Alafiou! 

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Viradouro – Postagem da Campeã do Carnaval 2024 (RJ) | Crédito: Instagram Viradouro.

A conexão do Carnaval no Brasil com os terreiros ocorre através das instituições carnavalescas oriundas dos territórios negros. O Ilê Aiyê, por exemplo, primeiro Bloco Afro do país, que em 2024 completou 50 anos de existência, teve sua origem no Ilê Axé Jitolú, localizado no bairro da Liberdade, em Salvador, tendo como fundadora a matriarca Mãe Hilda de Jitolú, que faleceu em 2009. O nome em yorubá do bloco pode ser compreendido como “casa de negros” ou “terreiro de negros” e foi escolhido através de uma consulta oracular que, através dos búzios, abençoou a trajetória do “mais belo, dos belos”.  

Ilê Aiyê, Olodum, Malê Debalê e Muzenza são tradicionais blocos afro soteropolitanos, cujos nomes de origem yorubá ou bantu reverenciam a ancestralidade negra. Além disso, seus temas carnavalescos abordam o berço africano, a estética negra e a cosmovisão afro-brasileira. Um exemplo disso é a canção “Faraó: divindade do Egito”, lançada na década de 1980, pelo Olodum, uma composição do Luciano Gomes, imortalizada na voz de Margareth Menezes e outras/os intérpretes que se ampara nos estudos do historiador e antropólogo senegalês Cheikh Anta Diop sobre o antigo Egito. 

O ponto de convergência dessas instituições e dos episódios citados no texto pode parecer ser o carnaval, mas, na verdade, é o compromisso ético e ancestral de pedir licença e respeitar as orientações das autoridades civilizatórias de cada entidade sobre a qual se deseja, na melhor das hipóteses, homenagear, especialmente quando elementos sagrados são evocados.  

Mesmo não havendo uma regra explícita (ou poderia dizer “escrita”) sobre isso, para as pessoas que respeitam e/ou vivenciam os espaços de matrizes africanas (rodas de samba, terreiros de candomblé, capoeira…) é sabido a importância de “pedir permissão”, “pedir licença” e, mais ainda, “ouvir os mais velhos”. Afinal, para quem é de axé e, no limite, para quem respeita o axé, se pede licença até para carnavalizar. 

Agô!

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  • Cauane Maia

    Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Mestr...

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