Quem sou eu no Carnaval do Brasil? Fã e foliã amadora, e há quase uma década devota e assídua aprendiz da comunidade online Samba AbstratoNas palavras de sua diretoria, SA é uma “página de humor que usa deboche e sátira para fazer uma crítica social pungente”, e eles oferecem brilhantes e divertidas formas de letramento racial popular. Em uma postagem de fevereiro de 2023, a página apresentou um panorama do engajamento que criou no Carnaval daquele ano. Ao calcular o número e média de caracteres de suas postagens, concluiu que nós, os membros leitores e comentadores, passamos a temporada estudando um livro de cerca de cem páginas, em que foram debatidos racismo, racismo estrutural, apropriação cultural, sociologia, história, estética, branquitude, semântica, linguística, dança, branquismo, cultura popular, afrofuturismo e marketing. 

O que me encorajou a escrever este texto foi a força que dois entendimentos sobre a maior festa popular do planeta ganharam em 2024, ambos ensinados de forma ampla e profunda pelo SA. O primeiro, que escolas de samba não se chamam “escolas” por fetiche, e sim por proverem educação. O segundo, o viés ativista contra apropriação cultural racista. Voltarei a mencionar este projeto genial ao longo do texto. Mas antes importa listar alguns aspectos sobre o Carnaval.

A celebração do Carnaval tem de fato procedência europeia, originalmente de fundo pagão conectado aos ciclos da agricultura, e posteriormente cooptada e re-simbolizada pelo cristianismo num processo de consolidação de efemérides religiosas. No ano de 325, durante o Primeiro Concílio de Nicéia, bispos da Igreja Católica definiram que a data de comemoração da Páscoa seria determinada pela primeira lua cheia após o equinócio de primavera do Norte Global (o mesmo dia do equinócio de outono no sul). O início do Carnaval se dá 47 dias antes do domingo de Páscoa, que é sete dias depois do domingo de Ramos, que marca o começo da Semana Santa e o final da quaresma, iniciada na Quarta-Feira de Cinzas. 

O professor e vice-diretor da Unesp, Juarez Xavier, explicou em entrevista ao Site Mundo Negro que, apesar destas origens, a festa como a conhecemos hoje, no Brasil e em partes dos Estados Unidos, América Latina e Caribe, se desenvolveu com digitais negras.

Para ele, “toda a tecnologia social deste arranjo criativo e produtivo construído ao longo do século 20 é negra”, fundamentalmente negra, da lógica dos bloquinhos à escola de samba, unidas pela percussão.

O professor Xavier diz que a população negra criou os mecanismos e tipologias atuais do Carnaval, tendo construído “o mais importante arranjo de tecnologia social que foram as escolas”, espaços de articulação, de recuperação de valores de sociabilidade, musicalidade e dança. Na entrevista ele ainda afirma que as escolas de samba são territórios negros, quilombos urbanos que permitiram a criação de raízes quando o processo era a higienização, tornando possível recuperar o que a escravização destruiu: o compartilhamento de saberes ancestrais. 

Estes saberes ancestrais são perversamente cooptados por pessoas brancas. A atriz Elisa Lucinda, comentando o desfile da Portela – cujo enredo este ano teve como base o romance “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, sobre a líder da Revolta dos Malês, Luísa Mahin – apontou o cinismo que é ter destaques brancos na apresentação de uma história em que somos os cruéis vilões.

A fantasia de Adriane Galisteu, por exemplo, homenageia mulheres da Portela como tia Doca, tia Neném e a histórica porta-bandeira e baluarte Vilma Nascimento. Mas a “Carrie Bradshaw do Baixo Lapa” (apelido dado a ela pela comunidade do Samba Abstrato) aproveitou para homenagear também a mãe e a sogra, que, estou segura, nunca pisaram no galpão da escola. Estou segura também de que Lucinda se referia a outras duas musas abstratas presentes no mesmo desfile: Shayene Cesário e Alice Alves, cujas fantasias prestavam honras, respectivamente, à Ancestralidade Jejé e ao Culto dos Ancestrais, dos quais jamais fizeram parte. Nenhuma das três é exímia sambista. 

Não é misoginia criticar a apropriação cultural racista feita por mulheres brancas, assim como não é racismo apontar que algumas pessoas não sabem sambar, até porque racismo reverso não existe. Este tipo de discernimento o SA também ostenta; em um reels de 10 de fevereiro, explicam que desde seu início são acusados de discriminar pessoas brancas no Carnaval. Com muito bom humor e retórica precisa esclarecem que, quando falam sobre embranquecimento, se referem a racismo estrutural, apropriação cultural e o esvaziamento do significado das escolas, e que embora as mulheres chamadas de “musas abstratas” sejam indivíduos, a alcunha não é pessoal, pois representa personas que têm um determinado papel dentro de uma narrativa. 

“A Musa Abstrata, essa pessoa que usa de meios financeiros para se impor por motivos egóicos para ‘aparecer’ no Carnaval é a síntese da nossa crítica e tem muitas camadas. Tem a camada econômica, onde a competição do Carnaval faz com que as escolas tenham a necessidade cada vez maior de recursos financeiros e acabam comercializando este posto. Tem a camada estética onde a presença dessas musas embranquece e torna feio o que deveria ser beleza e tradição, assim como a camada do espetáculo artístico onde pessoas que não sabem sambar se tornam as bailarinas principais de um espetáculo que também é de dança. O que acontece com o Carnaval é o que acontece com todas as artes e saberes pretos que são apropriados, embranquecidos, saqueados e depois jogados fora quando perdem a sua consistência a apodrecem. (Samba Abstrato em entrevista para o Jornal Empoderado)

O Samba Abstrato se define como uma comunidade carnavalesca digital, e vem cunhando novos léxicos, tais quais ‘franjas do migué’, ‘carnaval de shopping’, e ‘samba na ponta do braço’. É através dessas denominações jocosas que fazem um robusto registro do embranquecimento do Carnaval e apagamento da cultura preta. O trabalho de letramento racial que, há nove anos, SA vem ofertando nas redes sociais compila e demonstra os melindres do que o racismo é capaz, trabalhando temas profundos e complexos como colonialismo, perversão, e eugenia, estrategicamente em galhofas que causam muito desconforto e constrangimento para nossas mais arraigadas visões de mundo racistas.

A apresentação da página diz: A beleza e a tradição do Carnaval você não vê no Samba Abstrato”, e vale insistir que o problema do embranquecimento da tradição carnavalesca não começa nem termina com a estética e falta de samba no pé de musas abstratas – ela se estende, por exemplo, aos carnavalescos das escolas e jurados dos desfiles. 

A coordenadora de formação do Movimento Negro Unificado (MNU), Regina Lúcia dos Santos, listou para o Alma Preta os desfiles que, em 2024, deixarão como legado a educação e a resistência negras – e assistindo a apuração do Carnaval do Rio em 14 de fevereiro, fiquei pasmada com a constituição do corpo do júri do Grupo Especial. Como aponta Bárbara Carine, da página “Uma Intelectual Diferentona”, o espetáculo do Carnaval que tanto educa sobre cultura negra não deveria ser julgado por pessoas brancas. (Você pode conferir a lista completa dos membros do júri aqui).

À medida que as fotos dos jurados de todos os quesitos apareciam na tela, a denúncia do branqueamento do Carnaval ficava mais visível e fundamentada. Não dá para não ver a invasão de pessoas brancas, e embora seja certo que muitas delas entendam de Carnaval, “o processo de branqueamento das escolas de samba a partir dos anos 60 [se dá] porque começa a dar dinheiro”, como detalha Juarez Xavier na entrevista ao Mundo Negro. 

Antes disso, em uma reportagem do Jornal Nacional de 10 de fevereiro sobre os 40 anos da Marquês de Sapucaí, assisti ao repórter Pedro Bassan cobrir os temas de algumas das principais Escolas de Samba do Rio de Janeiro, entrevistando alguns de seus carnavalescos. A homenagem do Salgueiro é para os Yanomami, e notei que Edson Pereira é um homem cis branco. Imperatriz Leopoldinense, cujo carnavalesco é o festejado Leandro Vieira, outro homem cis branco, teve como tema a Cigana Esmeralda.

A apresentação da Porto da Pedra contou do Lunario Perpetuo, o “Google da era Medieval”, segundo Mauro Quintaes, carnavalesco, cis e branco. A Paolla Oliveira teve seu devir onça pela Grande Rio, e na reportagem Leonardo Bora, também cis e branco, afirmou que “todo mundo se transforma em onça para lutar por certas causas”. A campeã Viradouro falou das guerreiras Agojis, e para o carnavalesco Tarcísio Zanon o significado de Vodum, termo e cultura que elas trouxeram ao Brasil, significa “tudo de bom para você”. Ele também é um homem cis branco. 

Quem frequentemente levanta essa observação é – você adivinhou – o Samba Abstrato. Há quase uma década, eles vêm ensinando a gente a treinar o olhar e o raciocínio crítico para os processos de embranquecimento, apropriação cultural e racismo, de forma ampla. Isso se dá a partir da discussão sobre a usurpação de espaços e protagonismo forçado das musas abstratas. Embora essas mulheres sofram algum tipo de violência por serem mulheres, não deixam de ser pessoas brancas que compram posições de destaque em escolas de comunidades com as quais, no resto do ano, não se engajam.

O comentário do ator Paulo Vieira, conforme vi em post da página Escurecendo Fatos, faz boa síntese: “o fetiche branco pela cultura negra (sem o negro) quase sempre passa por: roubar e esvaziar”.

Outro bom exemplo disso é encarnado por Marcelo Adnet, que tem no currículo quatro sambas-enredo escritos para o Carnaval de São Paulo de 2021 (com informações de Galeria do Samba). Parodista de talento, o comediante viralizou este ano ao criar um “samba-enredo” enquanto concedia entrevista a um podcast no qual os apresentadores escolheram ‘paralelepípedo’ como palavra aleatória temática de Carnaval (CNN). No “samba” ele usa terminologias de religiosidade de matriz africana, conectando o paralelepípedo ao chão, o chão ao caminho, e o caminho a Exu, fetichizando o sagrado alheio, esvaziando a tradição, e compondo ao vivo o que mais parece um jingle publicitário ou de esquete cômico. Samba abstrato. 

Ele foi também um dos compositores do samba-enredo da Mocidade Independente de Padre Miguel de 2024, ‘Pede Caju Que Dou… Pé de Caju Que Dá!’, que obteve certo sucesso ao longo do verão mas flopou na avenida. Leandro Vieira, o já citado carnavalesco da Imperatriz, disse à revista Piauí que “[o samba da Mocidade] teve um ótimo marketing digital”. A adição de ritmos nordestinos como xote e baião à melodia, combinada ao uso da linguagem memética das redes (destaque para “Puro suco” e “Chupa essa manga”) deram à canção um verniz de sucesso no Tik Tok. Mas nem a animação eufórica do puxador Zé Paulo Sierra – que apareceu na Sapucaí em cosplay do estilista Jeremy Scott – fez a plateia explodir o coração na maior felicidade. 

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À esquerda, Zé Paulo Sierra, intérprete da Mocidade (Valmir Moratelli/Revista Veja); à direita, Jeremy Scott (Divulgação/Vogue).

Resta saber se foi deboche da Mocidade sob a batuta do carnavalesco Marcus Ferreira, ou se foi perversão do próprio Adnet, que ele tenha desfilado como destaque vestido de Jean-Baptiste Debret. O pintor francês, além de ter desenhado nossa bandeira, é autor de “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”, coleção de três volumes retratando o cotidiano daqui no século 19. O imaginário forjado por obras como “O Jantar” (1), de 1820, e “Caçador de Escravos” (2) e “Um funcionário em passeio com a família” (3), ambos de 1830, é particularmente responsável pela naturalização da escravização de pessoas negras. 

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“O Jantar”, “Caçador de Escravos”, “Um funcionário em passeio com a família” (Debret).

A pedagoga Meri Gaspari Puri, que é indígena e entusiasta do caráter educador das escolas de samba, listou três obras de literatura antirracista disponíveis no Carnaval 2024: a já citada “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, mas também “Meu destino é ser onça”, de Alberto Mussa, e “A queda do céu”, de Bruce Albert e Davi Kopenawa. O portal Sumaúma reportou que, antes de Salgueiro entrar no Sambódromo, o autor e líder Yanomami, que também colaborou com a elaboração do desfile da escola deste ano, quis demonstrar aliança por respeito entre seu povo e o povo negro. Com outros doze indígenas do território, Kopenawa percorreu a concentração da escola para demonstrar a alegria pelo acolhimento.

O enredo falou da luta, sabedoria e beleza dos Yanomami ao ecoar o grito “Ya temi xoa!” (ainda estamos vivos!), e apontar muito claramente a direção de onde vem a violência que eles sofrem, através das alegorias da ala de militares com caveiras nos quepes, e dos carros alegóricos em forma de draga comedora de árvores e indígenas em respiradores ligados à mata, representando a destruição provocada por governos e garimpo.

“Eu já conhecia o Carnaval, mas a Salgueiro eu não conhecia, onde eles moram, no Rio de Janeiro. Foi muito bom, pois encontrei a união. Eles são povo negro, que veio trazido pelo homem branco. Já escutei história deles. O homem branco os tratava mal, batia neles. Nós, do povo Yanomami, como povo brasileiro, indígena, o homem branco também não gosta. O homem branco, que vem de longe, não gosta de nós. Então foi bom, demorou, mas, foi bom encontrar (com eles)”, Kopenawa disse ao g1

Voltando às musas abstratas e apropriação cultural de gente branca frente a culturas negras e indígenas que insistem em usurpar sob a ilusão de estar representando, a página oficial da Rede Amazônica no Instagram comentou que o icônico devir onça de uma das mais reconhecidas musas abstratas, Paolla Oliveira, ocorre anos depois que Isabelle Nogueira – cunhã-poranga do Boi Garantido no tradicional Festival Folclórico de Parintins, e atual e primeira residente indígena da casa do Big Brother Brasil – apresentou a ideia de pisar no chão dos festivais como bicho. Em 2023 Isabelle se transformou em uma arara durante a apresentação do boi-bumbá, e antes disso já havia sido pantera (foto), gavião e até onça. 

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À esquerda, Paolla Oliveira na Sapucaí em 2024; à direita, Isabelle no Festival de Parintins | Crédito: Marcos Serra Lima/gshow; Arquivo pessoal.

A crítica da página Samba Abstrato é a mesma que informa os comentários de Elisa Lucinda, Barbara Carine, Paulo Vieira e Meri Puri: usurpação branca de cultura alheia, espraiada pelo poder da mídia de massa por quem tem dinheiro para aparecer e faturar mais. A  “lógica abstrata” é feita de racismo, apropriação e apagamento concretos. E se a escola é de samba, quem mais precisa estudar e mudar de atitude somos nós que somos brancos. 

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  • Joanna Burigo

    Joanna Burigo é natural de Criciúma, SC e autora de "Patriarcado Gênero Feminismo" (Editora Zouk, 2022). Formada pela PU...

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