A cada dia nos deparamos com mais indícios de que, no que diz respeito aos direitos das mulheres, nunca saímos da Idade Média. O medo toma conta, a sensação é de que estamos sob ataque o tempo todo. Notícias abundantes de violências que chocam o país, ao mesmo tempo em que movimentações políticas e jurídicas avançam em uma cruzada para restringir e retirar os poucos direitos conquistados. 

Estamos passando por uma série de acontecimentos que evidenciam como a violência é um artifício que segue sendo usado em larga escala para nos oprimir, controlar e dominar.

A história da equipe de enfermagem que filmou um anestesista do Hospital da Mulher estuprando uma gestante em uma sala de cirurgia com diversos profissionais presentes surpreendeu e causou revolta nas pessoas. Isso ocorre em um momento em que inúmeras outras histórias de violência sexual vêm à tona, pois, diferente de antes, mais mulheres estão rompendo o silêncio, na luta para que suas vozes sejam ouvidas. Histórias que denunciam que a misoginia e a cultura do estupro estão em todos os lugares e deixam todas as mulheres em estado perpétuo de insegurança, não importando onde estejam ou o que façam.

Nos espaços de saúde, nos locais de trabalho, na rua e, principalmente, dentro de casa, violências sexuais e outras agressões seguem sendo praticadas indiscriminadamente, por homens que não parecem sentir medo, nem da pena imposta para esses crimes nem de qualquer outra consequência. Em grande parte das vezes, fazem sem sequer reconhecerem que o que estão fazendo é violência, pois convencidos de que agem “provocados”, “no direito” ou simplesmente porque podem, porque enxergam na nossa vulnerabilidade uma oportunidade.

Diante desses casos, a reação mais comum entre as mulheres e os movimentos feministas é o desejo de que, de alguma forma, a justiça seja feita, o que no sistema atual, em teoria, se daria através da punição desses sujeitos, da vingança individual. Homens capazes de fazer o que o anestesista fez são enxergados como “monstros” que devem ser “punidos exemplarmente”, castigados diante um espetáculo jurídico-midiático que leve à pena mais cruel possível, que concretize a ameaça mais severa que o sistema penal possa oferecer.

A depender da perspectiva que se olha, pode parecer que estamos vencendo essa batalha, afinal, mais casos como os noticiados vêm ganhando repercussão e causando comoção pública, mais crimes e qualificadoras tratando de violências específicas de gênero vêm sendo criados e mais penas aplicadas.

Mas a pergunta que fica é, por que ainda assim não nos sentimos seguras? Por que mesmo com um sistema penal tão punitivista, com números altíssimos de encarcerados e condições tão cruéis de tratamento, a violência contra nós não diminuiu? 

E não diminuiu mesmo. Segundo o Anuário de 2022 do Fórum de Segurança Pública, houve crescimento nos índices de violência contra a mulher e violência sexual. Foram registrados 66.020 estupros em 2021 (isso sem contar os crimes que não chegam ao conhecimento das autoridades), sendo que em 75,5% dos casos a vítima era vulnerável, incapaz de consentir. Não por acaso, é apontado no texto do relatório que “é justamente quando as mulheres rompem com os papéis de gênero esperados que sejam cumpridos por elas, que se encontram em maior vulnerabilidade”.

Em uma sociedade em que tentar ser livre significa alto risco de agressão e morte, qual o papel das instituições na contenção dessa violência? E como essas atribuições estão sendo aplicadas na prática? Não basta crer na letra da lei, é preciso observar o contexto como um todo.

A exemplo disso, podemos lembrar que os representantes maiores do Poder Público não tomaram qualquer providência quanto à negativa do aborto da menina de 11 anos que teve seu direito legal negado e foi torturada com a manutenção de uma gravidez de risco. Do contrário, as ações de que tivemos notícia foram uma tentativa de aprovar moção de aplausos para a juíza que praticou a violência e uso de instrumentos jurídicos para intimidar e perseguir a procuradora do MPF que recomendou o aborto, os profissionais que realizaram o procedimento e as jornalistas que denunciaram os abusos.

É preciso observar os caminhos percorridos pelas instituições na tratativa da violência contra a mulher. Olhando de perto perceberemos que a violência institucional é uma constante e que o sistema jurídico é cotidianamente utilizado para autorizar a prática e a legitimação dessa mesma violência.

Há uma narrativa muito bem estruturada que sustenta o sistema penal. A ideia da pena como única solução possível e de que os princípios fundamentais descritos na norma de fato norteiam todas as pessoas envolvidas nesse sistema e no sistema social é fortemente consolidada, mas a realidade revela um cenário diferente. Há outros valores, mais arraigados, que orientam a sociedade em que vivemos e que facilmente se sobrepõem a qualquer artigo do Código Penal ou da Constituição. Fundamentos racistas, classistas e misóginos, impregnados na nossa estrutura, que utilizam do sistema penal como mais um instrumento de dominação, controle e extermínio, modificando e aplicando a legislação com finalidades eleitoreiras, isentando governantes de responsabilidade, promovendo perseguições e validando chacinas nas disputas por poder.

Não há compromisso com os direitos das mulheres ou do povo, apenas com os interesses dos sujeitos dominantes.

Há que se analisar criticamente um sistema estruturado por leis que promovem condenações e penas severas como a única forma possível de justiça ao mesmo tempo que, na prática, dificulta de inúmeras formas o acesso a essa mesma promessa. Há que se perguntar de que adianta demandar punição sem pensar no que causa essas violências e nas barreiras no caminho que dificultam e impedem qualquer promoção de justiça. De quantas outras formas de solucionar os problemas estamos abrindo mão para perseguir a resposta punitiva? Quão satisfatória, educativa ou “ressocializadora” é realmente essa resposta?

Por fim, lembrar que “liberdade é não ter medo” e que, no momento, o medo é uma corrente poderosíssima que aprisiona todas as mulheres.

Limitamos nosso comportamento e reduzimos nossa existência no mundo por temermos ser violentadas (pela sociedade e pelas instituições) e não temos qualquer comprovação de que o sistema punitivo é capaz de nos garantir a segurança que precisamos e temos direito, mas sabemos que ele pode ser usado contra nós e que isso acontece o tempo todo.

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  • Lívia Reis

    Especialista em Ciências Penais, co-fundadora do Coletivo Nós Seguras e do Projeto Transversais, feminista, abolicionist...

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