*Por Raiz Policarpo

A menstruação é o processo de descamação do endométrio, uma membrana interna do útero, que é expelida pelo canal vaginal junto com muco e sangue, quando não acontece a fecundação do óvulo. A menstruação é um dos momentos do ciclo menstrual, que é formado pela fase pré-ovulatória, ovulatória, pré-menstrual e menstrual. A primeira menstruação recebe o nome de menarca, e se dá durante a puberdade, momento de mudanças corporais que marcam um período de transição entre a infância e a adolescência.

A menarca é revestida por um imaginário social, que marca a menstruação como um processo simbólico e de transição para uma fase adulta. Mais especificamente para uma fase adulta enquanto “mulher”. A menstruação quando definidora deste novo status: “mulher”, demonstra a assimilação da identidade de gênero feminina a partir de aspectos apenas reprodutivos. É esta construção social que impõe, também, a maternidade sobre mulheres cis e que limita a “saúde da mulher” a aspectos ligados ao sistema reprodutivo. 

Porém, a menstruação não é algo que cria ou reafirma a identidade “mulher”. Não são todas as mulheres que menstruam. Mulheres trans, são aquelas que nasceram com uma designação social de gênero masculina e não se identificam com este marcador. Portanto, são corpos que não possuem vulva e útero, não tendo então a menstruação como um atravessamento. Outras mulheres que, também, não menstruam, são mulheres cis que já passaram pela menopausa, que é a última menstruação de uma pessoa, ou que possuem questões de saúde que afetam a menstruação. 

Porém, além de algumas mulheres cis, que são aquelas que se identificam com o gênero designado no nascimento, outros corpos também são marcados pelos processos da menstruação. Pessoas transmasculinas, como homens trans e pessoas não-binárias, assim como pessoas intersexo também podem menstruar. Por esse motivo o marcador “pessoas que menstruam” é muito importante nas discussões sobre saúde integral e direitos sexuais e direitos reprodutivos. 

A expressão “pessoas que menstruam” não surge para substituir a categoria “mulheres”, assim como não é um novo marcador para identidades de gênero, é simplesmente uma forma de identificar um grupo diverso que tem em comum demandas acerca do período menstrual.

Além de não invisibilizar a identidade de mulheres cis, esta expressão visa romper com a invisibilidade e apagamento que permeia a vivência de outras pessoas que menstruam e que não se identificam como mulheres.  

No último 28 de maio, foi o Dia Internacional da Dignidade Menstrual, data criada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), para promover um diálogo e estratégias que combatam a pobreza menstrual. Nesse dia, promovemos em Belo Horizonte/ MG atividades de ocupação dos espaços públicos, através da campanha “Dignidade menstrual também é saúde pública!”.

Sobre o que diz a dignidade menstrual?

O conceito de dignidade menstrual, aborda sobre uma perspectiva de política pública e garantia de dignidade durante o período menstrual. É fundamental para a garantia de saúde integral, visto que é uma realidade que acontece todos os meses na vida de meninas, mulheres cis, pessoas transmasculinas e intersexo. Esta é uma demanda, então, que afeta mais da metade da população brasileira. 

A realidade aponta para múltiplos tabus e estigmas, que resultam em violências e se expressam na pobreza menstrual, que é a ausência de instrumentos e estratégias que garantam a dignidade, através da falta de acesso a itens e infraestrutura básica para o período menstrual, além da falta de informações e respeito no trato à higiene menstrual. 

Pesquisas realizadas pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), apontam que mais de 4 milhões de meninas, entre 10 a 19 anos, não têm acesso a itens de cuidados menstruais nas escolas do Brasil. São 200 mil meninas que não têm condições mínimas para cuidar da menstruação no ambiente escolar. Além disso, 713 mil vivem sem acesso a banheiro ou chuveiro em casa. A pesquisa foi realizada com dados da Pesquisa Nacional de Saúde, de 2013 a 2018, e aponta também que 62% das pessoas que responderam às perguntas afirmam que já deixaram de ir à escola ou a algum outro lugar por causa da menstruação, e 73% sentiram constrangimento nesses locais.

Dignidade menstrual contempla diversos ângulos, diz sobre o acesso a produtos básicos para a higiene menstrual, como absorventes, coletores menstruais, sabonetes e remédios, aborda também questões estruturais como o acesso a banheiros, ao saneamento básico, esgoto e coleta de lixo.

Mas também aborda sobre questões sociais, como acesso à informação, e os aspectos que permeiam os estigmas e preconceitos, como transfobia, racismo e as violências de gênero. 

O absorvente é catalogado no Brasil como cosmético e não como item de higiene. Isso aumenta o custo no acesso ao produto, tornando o absorvente um privilégio, diante a realidade de vida de muitas pessoas, principalmente negras, pobres e periféricas. Absorvente deve ser considerado um item básico de higiene, visto que é essencial para a saúde humana. Pessoas que menstruam passam 1/6 do tempo menstruadas, e a menstruação não deveria atrapalhar o dia a dia de ninguém, os afazeres diários, as vontades, desejos e expressões.

Porém, o que podemos perceber é que a menstruação prejudica a educação e o acesso a espaços de formação, de convivência, cultura e políticas públicas desde a infância. A menstruação marca a infância de meninas com experiências ligadas a privação, vergonha e constrangimento. Dados já conseguem apontar essa realidade, que é acentuada para meninas negras, pobres e moradoras de periferias, como aponta a pesquisa “Livre para menstruar”, realizada por Girl UP. A pesquisa aponta, que cerca de 213 mil meninas não têm banheiro em condição de uso na escola, dessas, 65% são negras e quase todas estão na rede pública de ensino. Isso evidencia como a pobreza menstrual é um problema que se sobrepõe às desigualdades de raça e de classe. 

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Crédito: Beatriz Magalhães.

Precisamos construir estratégias para contrapor esta realidade, e precisamos construir dados que abordem sobre as vivências de pessoas transmasculinas e intersexo, entendendo como a transfobia e a imposição de padrões sociais vulnerabilizam ainda mais estes corpos. Como podemos pensar nas infâncias e adolescências de pessoas transmasculinas? Como podemos perceber a menstruação para as infâncias e adolescências trans?

Diversos outros marcadores acerca da dignidade menstrual precisam de aprofundamento e de uma atenção especial que não conseguiremos abarcar em totalidade neste texto, porém é fundamental que a gente entenda que esta experiência corporal é muito diversa e marcada para além de fatores biológicos. Fatores sociais e políticos divergem esta experiência para as vivências na infância, para pessoas negras, pobres e periféricas, pessoas com deficiência, em situação de rua ou em privação de liberdade, assim como para pessoas transmasculinas.

Dignidade menstrual para pessoas transmasculinas

Algumas pessoas trans optam por processos de transexualização, como cirurgias de mastectomia, mamoplastia, redesignação sexual e o uso de hormônios. Estes são mecanismos de gênero opcionais para que pessoas trans possam expressar o entendimento que possuem de seus corpos e vontades. Nenhum destes processos de transexualização são obrigatórios e requisitos para uma identificação enquanto pessoa trans. Entendendo isso, podemos dialogar acerca da diversidade de experiências de pessoas transmasculinas com a menstruação.

Algumas pessoas transmasculinas fazem uso do hormônio Testosterona (T), dentre os efeitos deste hormônio está a possibilidade de cessar a menstruação, que pode interromper desde a primeira dose do hormônio, mas também pode levar alguns meses. A interrupção da menstruação por meio dessas terapias hormonais varia do organismo de cada pessoa, além do tempo e da dose utilizada. Uma outra parcela de pessoas transmasculinas não fazem uso de terapias hormonais, isso pode ser por escolha, por não poderem arcar com os custos ou por falta de atendimento adequado em saúde. 

A menstruação pode provocar sentimento de disforia de gênero para homens trans e não-bináries, isso principalmente ligado à visão social de que menstruação é “coisa de mulher”. Isso faz com que algumas pessoas trans tenham que esconder a menstruação por medo de sofrerem violências e de terem sua identidade de gênero expostas.

É importante lembrarmos que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans pelo 14º ano consecutivo, segundo dados da ANTRA, Associação Nacional de Travestis e Transexuais, isso faz com que muitas pessoas trans se sintam coagidas a esconder a identidade de gênero em espaços de trabalho e estudo. 

A transfobia e a violência estrutural que permeia os espaços de acolhimento em saúde, provoca inúmeros agravos na saúde física e mental de pessoas trans. Quando doenças, infecções e outras questões de saúde são marcadas por uma imposição de gênero, torna mais difícil que pessoas trans e intersexo tenham acesso aos cuidados de saúde. Por esta falta de acesso, muitas pessoas trans podem iniciar o tratamento hormonal por conta própria, o que pode gerar graves problemas de saúde. 

A menstruação é uma função biológica, todas as pessoas que têm útero e ovário podem menstruar, assim como podem engravidar, gestar, parir ou abortar. O uso de pronomes de forma adequada e uma linguagem inclusiva e não sexista são direitos humanos básicos e podem assegurar o tratamento adequado, sem constrangimento, exposição e violências. 

O impacto social também é um fator que gera pobreza menstrual para este grupo, isso porque os banheiros se estabelecem como relação de poder, e geram um não lugar de acesso e circulação pelos espaços. Banheiros femininos são um espaço de gatilho para muitas pessoas transmasculinas, quando estas são lidas enquanto uma expressão de gênero masculina, podem ser negadas de usar o banheiro ou passarem por diversos tipos de violências. No banheiro masculino, as violências também são possíveis, principalmente para corpos que são percebidos como trans, além disso muitos banheiros masculinos possuem apenas o mictório, o que dificulta o uso para pessoas transmasculinas, principalmente durante o período menstrual.

Portanto, percebemos como essas pessoas também são atravessadas pela pobreza menstrual, ao evidenciarmos a ausência de ferramentas e estratégias para lidar com menstruação sem que esta provoque disforia e angústia em relação ao gênero que a pessoa se identifica e ao que foi atribuído no nascimento.

É essencial que as pessoas tenham acesso a informação e aconselhamento em saúde adequado para a escolha ou não da terapia hormonal e de outros processos de transexualização, assim como no exercício pleno de acesso à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos. 

Como é a comunicação sobre menstruação?

Praticamente toda a comunicação sobre a menstruação estabelece uma relação direta entre menstruar e a identidade enquanto mulher, isso desde livros de biologia, até propagandas de itens voltados à menstruação. Muitos dos conteúdos voltados para a educação sexual no acesso a informações sobre menstruação, utiliza unicamente da linguagem feminina e impõe uma realidade que violenta as vivências de pessoas transmasculinas, que não podem se identificar e ter também o acesso adequado à informação de vivências que permeiam seus corpos. 

As propagandas de itens menstruais, principalmente do absorvente, apresentam um padrão de feminilidade e de corpos, através de símbolos que permeiam o universo feminino, como a cor rosa e o uso de flores. Além disso, as pessoas que aparecem nessas propagandas geralmente são mulheres cis, brancas e que tem uma corporalidade padrão na sociedade, são corpos magros, esbeltos e que demonstram uma relação romantizada com a menstruação. Essa realidade além de não dialogar com pessoas transmasculinas, também não dialoga com mulheres cis que não performam a feminilidade desta forma.

Estes meios comerciais também não dialogam com corpos que fogem a estes padrões estéticos impostos, e nem com grupos em situação de vulnerabilidade, como os recortes sociais que citamos ao final de Sobre o que diz a dignidade menstrual?

São todos estes atravessamentos que nos mobilizam para a luta pela garantia de dignidade menstrual. Através da campanha “Dignidade menstrual também é saúde pública!” organizamos em Belo Horizonte/MG, no domingo, 28 de maio, ações de ocupação da rua e mobilização social. Um grupo de pessoas ocupou a Praça da Liberdade, em uma discussão sobre pobreza e dignidade menstrual, através da condução de Pontos de Luta na construção coletiva de um mural com um absorvente gigante em que as pessoas presentes podiam expressar suas percepções e sentimentos com relação a menstruação através do bordado. 

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Crédito: Beatriz Magalhães.

Enquanto isso, um outro grupo circulava pela cidade, auto convocades através da atuação em Basuras Coletiva, colando lambes e murais de lambe lambe com mensagens de reivindicação e comunicação popular sobre dignidade menstrual e saúde sexual e reprodutiva. Os lambes da ação tem ilustrações da artista visual BeaLake, e se compõe aos produzidos por diversos artistas independentes do Brasil, que somam através da “Chamada aberta pelo Direito de Decidir”, já puxada pela coletiva desde 2018. As atividades se somam à coleta e distribuição de absorventes e uma roda de conversa realizada no domingo de tarde em A Casa Elza.

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Crédito: Acervo Basuras Coletiva.

Diante a invisibilidade e desumanização imposta sobre corpos dissidentes de gênero e dissidentes de outros padrões e imposições sociais, precisamos nos organizar para criar as nossas narrativas e as nossas referências visuais. Aqui evidenciamos diversas dimensões e interseccionalidades importantes para construção das políticas públicas por dignidade menstrual. Ferramentas de comunicação popular como lambe lambe e zines, são estratégias possíveis na dimensão de construção de outros jeitos de comunicar, sendo os elementos estéticos e visuais, fundamentais para a efetivação da participação social e exercício de autonomia para todos corpos possíveis. 

A lei nº 23.904, trata sobre dignidade menstrual e determina o acesso a absorventes higiênicos em Minas Gerais. A lei contempla mulheres em situação de vulnerabilidade social e distribui absorventes para mulheres de até 49 anos nas unidades prisionais e socioeducativas femininas, nas escolas públicas estaduais e nas unidades de acolhimento. A lei ainda não aborda “meninas” apesar do público de acesso nas escolas, e não aborda outras pessoas que têm a possibilidade de gestar, como pessoas intersexo e transmasculinas. Além disso, a lei ainda versa apenas sobre a distribuição de absorventes convencionais, ainda não contemplando as demandas por absorventes de pano, coletores, calcinhas e cuecas menstruais. Este movimento é muito importante, visto os altos custos para a produção de absorventes de plástico e os diversos prejuízos para o meio ambiente, através do descarte destes. Estas problemáticas, foram evidenciadas na Audiência Pública por Dignidade Menstrual realizada na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, em 29/05/2023, segunda-feira. 

Estas ações e articulações tiveram a participação do Coletivo Se Lambuza, A Casa Elza, Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, Basuras Coletiva e Frente Mineira Legaliza o Aborto, através da “Chamada para Ação: Maio de Luta” da Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto.

Dados

Livre para menstruar – pesquisa de Girl UP

Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), pesquisa foi realizada com dados da Pesquisa Nacional de Saúde

“Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras”, da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais)

*Raiz Policarpo é uma pessoa transmasculina não-binária, comunicadore popular e psicólogue social. Trabalha e milita por saúde, justiça socioambiental e direitos sexuais e reprodutivos. É uma pessoa que menstrua.

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