Estudo terá mais duas etapas e levará demandas da comunidade lésbica ao poder público
Está no ar o relatório da 1ª etapa do LesboCenso: Mapeamento de Vivências Lésbicas no Brasil que conta com a coordenação da Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) e da Associação Lésbica Feminista de Brasília – Coturno de Vênus. O estudo reúne as respostas de mais de 21 mil lésbicas, com mais de 18 anos, de todos os estados brasileiros. O LesboCenso é a primeira pesquisa demográfica do mundo voltada especificamente para a população lésbica.
“O I LesboCenso Nacional é um projeto que foi e está sendo realizado a muitas mãos, unindo o rigor científico com as demandas dos movimentos sociais de lésbicas e sapatão. É um projeto comprometido com os corpos, as práticas e as experiências daquelas que ficaram pelo caminho, das que aqui estão e das que virão”, descreve o estudo.
Em Santa Catarina, o LesboCenso foi supervisionado pela bibliotecária Guilhermina Cunha e pela antropóloga Anahi Guedes, com a coordenação da Coletiva Mudiá. Cunha destaca que esta é a primeira iniciativa voltada exclusivamente para lésbicas registrada em todo o mundo. “É um censo que, apesar de ter tido uma primeira etapa realizada quase exclusivamente online, atingiu as metas e tivemos uma amostra nunca antes vista no Brasil, na América Latina e no mundo”, afirma a entrevistada.
O levantamento reúne informações sobre autoidentificação, relacionamentos afetivos, religião, escolaridade, trabalho, violências enfrentadas, redes de apoio, experiências de maternidade, acesso à saúde, práticas sexuais, entre outras.
“Agora temos certeza do que já sabíamos, que estamos em todos os lugares, classes, raças, origens e idades”, ressalta Cunha.
O LesboCenso ainda terá mais duas etapas. Uma delas com a realização de entrevistas para aprofundar temas abordados nos questionários e a terceira por meio de encontros e seminários. “Levaremos as demandas aos governos para criarmos políticas públicas focadas em lésbicas, como ampliar as leis de igualdade de direitos e de proteção”, explica a Cunha.
Autoidentificação
A maioria das respondentes se autoidentificam como lésbicas (51%) e sapatões (26%). A identidade de gênero predominante foi cisgênero (85%), seguida de não binária (6%), agênero (1%) e pessoa trans (1%). Em relação à expressão de gênero, as respondentes se identificaram mais com o padrão social de feminilidade.
As participantes residem, em sua maioria, em bairros de classe média (37%), zona central (24%) e em bairros de classe média baixa ou periferia (14%). Em relação à raça e etnia, 34% se autoidentificou como negra e 62% como branca.
Sobre estado civil e relacionamentos, na época da pesquisa, 62% declarava solteira como estado civil, e 60% das respondentes disseram estar num relacionamento, predominando relacionamentos fechados (84%).
Sessenta e sete por cento delas disseram ser assumidas em todos os espaços e lugares de convívio e 32% em apenas alguns. Entre os lugares em que não eram assumidas, destacam-se a família (28%), o trabalho (21%), a instituição religiosa (18%), a escola ou a universidade (16%) e as amizades (15%).
Quando questionadas sobre a religião, 36% responderam que não tinham nenhuma religião, 12% disseram ser adeptas de religiões afro-brasileiras e 11% católica. Entre as que afirmaram ter alguma religião, 36% frequentam cultos ou atividades religiosas algumas vezes por ano, sendo que 66% se sentem acolhidas nessas atividades religiosas e 17% não.
Quatrocentos e noventa e quatro das participantes, cerca de 2%, afirmaram ter alguma deficiência, sendo que a física é a predominante (36%), seguida de visual (14%), intelectual (14%), transtorno do espectro autista (14%) e auditiva (12%).
A maior concentração de respostas relacionadas à escolaridade foi do ensino médio completo (14%), ensino superior incompleto (28%) e ensino superior completo (26%). Das que afirmaram estar cursando o ensino superior ou possuir níveis de escolaridade acima, 68% eram ligadas a formações da área de Humanas.
Trabalho
Entre as participantes, cerca de 73% responderam estar trabalhando no momento da pesquisa. A maioria delas, com carteira assinada (37%) ou de forma autônoma (22%). As principais fontes de renda nos 30 dias anteriores à pesquisa relatadas foram o trabalho regular com carteira assinada (22%), por conta própria/autônoma (20%), família, parceira ou amigas (14%) e trabalho regular sem carteira assinada (10%).
Lesbofobia
A maior parte das entrevistadas, 79%, já sofreu algum tipo de lesbofobia e tem conhecidas que já sofreram violência por serem lésbicas ou sapatões (77%). Os tipos de atos lesbofóbicos mais destacados foram assédio moral (31%), assédio sexual (21%) e violência psicológica (18%).
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Em relação às situações de violência, as que mais se destacaram foram a interrupção da fala (92%), contato sexual forçado sem penetração (39%), impedimento de sair de casa (36%) e obrigadas a manter relações sexuais com penetração (25%).
A rua foi o local onde, com maior frequência, ocorreu a lesbofobia (20%), seguida pela casa (15%) e local de lazer (12%). No que se refere ao agente causador de violência, a família aparece com 29%, número em que se destacam as figuras da mãe (10%) e de outros familiares fora da família nuclear (8%) como principais agentes de lesbofobia.
Após a última agressão lesbofóbica sofrida no momento da pesquisa, 38% das respondentes não fizeram nada, 22% procuraram ajuda de amigas/os e apenas 7% acionaram a polícia, o Judiciário ou órgão oficial.
A lebosfobia é o preconceito contra mulheres que têm relacionamentos sexuais e/ou afetivos com outras mulheres. Em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que os atos de homofobia podem ser enquadrados no crime de racismo, com penas entre 1 e 3 anos. “A partir dos resultados do LesboCenso, nunca mais vão dizer que lesbofobia é mimimi”, aponta Guilhermina Cunha.
Redes de apoio
A rede de apoio das participantes é concentrada nas amizades e família (71%). Os movimentos sociais apareceram em 11% das respostas como rede de apoio.
Entre as respondentes, 26% participavam de algum coletivo, associação, grupo, sindicato, movimento social e/ou grupo de pesquisa. Sendo que 25% delas frequentavam há menos de um ano e 48% entre um e cinco anos.
Apenas 36.31% desses coletivos, associações, grupos, sindicatos, movimentos sociais e/ou grupos de pesquisa eram focados em lésbicas/sapatões. Isso revela, segundo o estudo, que a maioria das respondentes não era ativista/militante
Família
Cerca de 10% das participantes responderam ter filhas/es/os. Delas, 82% conceberam por meio de sexo vagina-pênis e 13% por inseminação artificial.
Entre as mães, 10% afirmaram ter sofrido situações de lesbofobia durante a gestação, parto e puerpério. Já em relação a situações de lesbofobia com filhas/es/os, 28% disseram que foram vítimas, sendo que a maioria das violências ocorreu em espaços de sociabilidade (25%), realização da matrícula na escola (16%) e acesso à saúde (12%).
“É fundamental a realização de um trabalho de valorização, reconhecimento e respeito à diversidade e aos diferentes tipos de família, entre os quais, têm-se as famílias lesboafetivas, a fim de evitar situações violentas e constrangedoras”, ressalta o estudo.
Saúde
Em relação ao acesso à saúde, a grande maioria (67%) respondeu que tem atendimento pela rede privada e apenas 31% pelo sistema público.
Quando questionadas se tinham medo, receio ou constrangimento de falar sobre sua sexualidade ou orientação afetivo-sexual em algum atendimento de saúde, 73% responderam que sim. Entretanto, 88% nunca tiveram um atendimento de saúde negado por ser lésbica.
No que se refere à frequência que realizavam exames ginecológicos, 26% afirmaram que os realizavam sem regularidade, 13% nunca realizaram e 12% de 2 em 2 anos. Segundo o estudo, essa situação pode estar relacionada ao fato de 25% das participantes relatarem que se sentiram discriminadas ou violentadas por serem lésbicas em atendimento ginecológico.
Sobre as práticas sexuais e prevenção, 82% das entrevistadas relataram que na última relação sexual com uma mulher a penetraram e 81% foram penetradas. Cerca de 83% fizeram sexo oral e 81% receberam na última relação sexual. Por outro lado, a maioria das participantes, 82%, não usaram proteção para IST, HIV ou Aids na última relação sexual.
“Situações que demonstram que ainda precisamos atuar fortemente na aproximação entre as usuárias e os equipamentos de saúde, fortalecendo a saúde pública e coletiva”, destaca o LesboCenso.
Próximas etapas
Os dados quantitativos do Lesbocenso são a primeira etapa de três que formam o estudo. Entre setembro de 2022 e março de 2023 serão realizadas duas novas etapas. A primeira delas é a realização de entrevistas com participantes que responderam o questionário e se voluntariaram para esta etapa, que busca um maior aprofundamento dos dados coletados.
“Em Santa Catarina, faremos as entrevistas aleatoriamente com as mais de mil respondentes, abordando todos os recortes: cidade, campo, periferia, rua, ribeirinhas, indígenas e quilombolas”, cita Guilhermina Cunha.
Outra frente do LesboCenso é a realização de oficinas de formação política junto a coletivos regionais e nacionais abertas a lésbicas e sapatões, cujo resultado será levado ao poder público.
Participam da realização das próximas duas etapas a Liga Brasileira de Lésbicas (LBL), Articulação Brasileira de Lésbicas (ABL), Rede Nacional de Lésbicas e Bissexuais Negras Feministas Autônomas (Rede Candaces), Rede Nacional de Ativistas e Pesquisadoras Lésbicas e Bissexuais (Rede LésBi Brasil), Rede Nacional de Promoção e Controle Social da Saúde, da Cultura e dos Direitos Humanos das Lésbicas e Bissexuais Negras (Rede Sapatá – LésBicas Negras), Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) e Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
O LesboCenso foi realizado por uma equipe voluntária. O desafio para a realização da segunda edição será atingir lésbicas e sapatões que têm pouco ou nenhum acesso à internet.