Na cidade que se vende como LGBT-friendly, Aline Dias reflete sobre padrões brancos e femininos dentro da visibilidade lésbica.

Quando Aline Dias, 36 anos, se mudou para Florianópolis, em 2015, foi por amor. Após quatro meses se relacionando à distância com uma moradora da Ilha, Aline se jogou no romance e mudou de estado. Um ano e meio depois, com o fim do relacionamento, foi que se percebeu como moradora de Florianópolis. “Morava num lugar afastado, lá no Norte da Ilha, no meio de barcas e praias. Eu estava vivendo num conto de fadas. Eu não conhecia a Florianópolis real”, comenta. 

Nascida e criada em Capão Redondo, na zona sul de São Paulo, Aline é professora de história. Hoje, mestre em História pela UDESC, e doutoranda na UFSC. Em São Paulo, sua vivência era outra. Durante muito tempo, trabalhou como operadora de telemarketing. 

“Isso faz parte da minha história, e faz parte da história de muitas lésbicas. Principalmente em cidade grande assim. A gente vai pro Telemarketing porque não tem outro emprego pra gente ir”, afirma

Aline em 2015, quando se mudou para Florianópolis. Foto: Acervo pessoal

Com o término do relacionamento, Aline se mudou para o centro da cidade. E foi ali que começou a desbravar a ilha. Parte fundamental deste processo foi o estímulo dos amigos para que conhecesse as universidades. Depois de muitos anos trabalhando em dois empregos para se sustentar, ela conheceu em Florianópolis “a possibilidade de estar na cidade como uma intelectual”.

O contato com este novo universo mudou Aline como pessoa. Com a bolsa do mestrado, não precisava mais se forçar a ser feminina para conseguir um emprego. Conseguia se manter e ser quem eu realmente queria ser. “Meu lance com o feminino sempre foi esse, eu preciso ter uma aparência passável, pra eu conseguir trabalhar, transitar. Se não, eu vou sofrer mais discriminação ainda”.

É importante ressaltar que para Aline, a feminilidade tem um peso diferente. Mulher negra, com 1.85 de altura, não passa despercebida nos lugares. Sempre sentiu diferença no tratamento que recebe, quando comparada a de lésbicas brancas. Para ela, as duas coisas não se separam: 

“Eu não consigo desvincular o fato de ser negra e ser lésbica. Desde que eu entendi que eu era lésbica, eu percebo as mulheres que são lésbicas, independente do padrão de feminilidade delas, sofrendo preconceitos diferentes dos meus”, relata.

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Racismo e violência policial

Entre estes preconceitos originados no racismo, está a violência policial, que Aline vivenciou quando morou no Morro da Queimada, periferia no centro da cidade. A primeira abordagem ocorreu no início de 2017, às 6 horas da manhã, quando a jovem descia o morro caminhando. “A polícia estava subindo o morro, apontando a arma pra minha cabeça, mandando eu deitar no chão. Eu fiquei paralisada. Aí o cara colocou a mão em mim, nisso ele percebeu que eu era mulher, aí ele pediu desculpas”, conta. 

Apesar das desculpas, o pedido veio seguido de ofensas. O policial lhe disse que “tinha que sinalizar, a gente não é obrigado a saber que você é uma mulher, você parece um cara”. Assustada, Aline acabou ignorando a violência sofrida. Mas, 15 dias depois, o ato se repetiu. Lembrando do recado do policial, Aline tentou abrir o zíper do casaco que usava, para que os seios sinalizassem que era uma mulher. 

O ato quase custou sua vida. “O policial achou que eu era um moleque negro descendo a rua, eu não podia ter feito o movimento de abrir minha blusa. O cara apontou uma metralhadora gigantesca na minha cara. O outro veio por trás e me puxou pro chão. Foi quando eu me deitei no chão, que a minha blusa abriu e ele viu. Ele começou a me xingar um monte. Falando que pessoas como eu não deveriam existir, porque eu era nojenta.”

Foi então que Aline percebeu que a mesma cidade que liberta com uma mão, oprime com a outra. Ao abrir mão da feminilidade, era confundida com um homem negro. O que, no Brasil, significa risco de morte. Ao sentir que podia ser morta pela polícia a qualquer momento, Aline voltou a utilizar acessórios considerados femininos, para tentar se sentir mais segura. 

Porém, os comentários de amigos, colegas e conhecidos, a constrangiam. Recebia tantos elogios, que se sentia pressionada a estar dentro do que a sociedade impõe como ser mulher. “Parece que é um convite a ser feminina. Como se estivesse errado ser quem eu gosto de ser”. Sentindo-se violentada, Aline decidiu abdicar completamente da feminilidade, pois percebeu que seria agredida de todas as formas. 

“Ou eu ia ser lida como um homem negro, e apanhar, de repente tomar um tiro na cara. Ou eu ia ser lida como mulher negra, e sofrer algum fetiche. Ai eu pensei, se não tem escapatória, eu vou ser quem eu quero ser, e vou arcar com as consequências. E aí que as coisas ficaram mais difíceis”. 

Nas abordagens policiais que se seguiram, Aline passou a usar a sua voz, um marcador de feminilidade, como escudo. Quando os policiais se aproximavam, anunciava: “Oi, eu sou a Aline, eu sou uma menina”. Apesar de se proteger de violências físicas, a lesbofobia se manteve presente. Escutou que não devia existir, que era uma “mulher errada”. Em uma das abordagens, um dos policiais disse que ela gostava tanto de imitar homens, que a vontade dele era tratá-la como um. “Aí eu tive coragem de olhar pra ele e perguntar: o que é ser tratado como homem? Ele olhou pra mim, colocou a arma perto do pênis dele, e falou ‘Você não quer saber’”, relembra. 

Depois desta violência, Aline se mudou. Sabia que ali não poderia existir tranquilamente. Abandonou os morros e foi viver na praia, perto de amigas. Uma das motivações para a mudança foi o fim do mestrado. Sem vínculo com a Universidade, Aline deixava de ser “estudante”, para ser “apenas” preta e sapatona. Não havia mais nenhum escudo que lhe protegesse de maiores violações. Nas abordagens policiais, o interrogatório era quase sempre o mesmo: 

“Quando eu falava que era de SP, eles perguntavam se eu já tive algum envolvimento com o PCC. Tipo, não faz nenhum sentido, sabe? Eu sou uma menina. Mas pra eles faz, porque eu sou negra. Aí eles perguntavam por que eu tinha me mudado pra cá, porque eu morava naquele morro, porque eu morava naquela casa, quanto que eu pagava, se eu pagava, se era alguém pagava pra mim. E no meio dessa conversa toda eu aprendi a dizer: eu faço mestrado na UDESC, sou professora de história. Eles sempre pediam a documentação, e eu entregava o comprovante de matrícula, que está sempre no bolso da minha camisa. E aí eles falavam “Ah, é estudante”. Ai aliviavam”, explica.

Aline, 2017. Foto: Acervo pessoal

Violências silenciosas

No alto Ribeirão, as violências mudaram de forma. Da truculência policial, passou para um racismo silencioso de carros de aplicativo, amplificado com o período de pandemia. Para uma viagem de 15 minutos até o mercado, são quatro ou cinco motoristas que cancelam a viagem quando veem Aline. 

Conversando com os poucos motoristas que aceitam as corridas, Aline sempre chega às mesmas respostas: por não ser feminina é lida como um homem negro. E, segundo os motoristas, “rapazes negros pedem Uber pra fazer assalto, a gente fica com medo e cancela”. Gosto de perguntar, para eles ficarem constrangidos, porque eu vou lá e rebato: olha, eu entendo essa dificuldade, mas eu sou uma pessoa. Assim como moleques negros são pessoas. Tem que ter outro jeito de lidar com isso, sem ser cancelando”.

O episódio mais marcante aconteceu no início deste mês. Na volta do mercado, chamou um carro, e a motorista era mulher. Apesar de ser a única pessoa no estacionamento, não foi reconhecida como “Aline”. Ao se aproximar do carro, pode ver o medo no rosto da motorista. Antes de entrar, anunciou “Oi moça, tudo bem? Eu sou a Aline”. A motorista respondeu logo em seguida: “Que alívio!”. 

Eu senti uma mistura absurda de coisas. Porque eu entendo o lado dela, tenho empatia com ela. Eu entrei e fiquei constrangida. Não consegui falar com ela. Fiquei com vontade de chorar, sabe? Cara, estou causando medo nas pessoas. O que é isso? Eu sou uma estudante. Voltei pra casa, chorei pra caramba naquele dia. E comecei a pensar em como é esquisito isso. A mesma cidade que me diz com uma mão que eu posso ser quem eu quiser, que a cidade vai abraçar – porque Florianópolis é uma cidade que se vende como LGBT-friendly. Na outra mão, a cidade é extremamente conservadora, e fica fazendo eu me sentir como se estivesse errada. Como se fosse errado não ser feminina. Como se fosse errado não parecer uma mulher. É muito importante parecer uma mulher e eu não quero parecer uma mulher. Porque eu sou assim”

A soma das violências sofridas levou Aline ao adoecimento e transtorno de ansiedade. Antes de sair de casa, pensa em como sair das situações de violência que irá enfrentar. Um dos gatilhos ocorreu no início de 2020, antes da pandemia de coronavírus. Saindo da academia, Aline foi agredida. “Um carro passou, o cara cuspiu em mim e gritou: Sapatão tem que morrer. Eu fiquei tipo: cuspiram em mim. O que mais vai acontecer nesse lugar? O que vai acontecer amanhã?”.

Nessa época, Aline cogitava voltar para São Paulo, pois sentia que a violência em Florianópolis tinha aumentado muito desde as eleições de 2018. Podia sentir ódio no olhar das pessoas. Com o lockdown, acabou ficando na cidade. A nova rotina, agora isolada de outras pessoas, foi um processo importante para que se recuperasse.  “Eu comecei a interagir muito com as sapatonas da cidade pela internet, entendi que muitas delas estavam sentindo coisas parecidas. Só que como a gente não fala sobre violência, eu achei que ia viver isso sozinha, porque ninguém ia me entender”

Resistência na “Ilha da Magia”

Da troca com outras mulheres sapatonas, Aline encontra forças para ser resistência. São diversos emails enviados para os carros de aplicativo, relatando as violências sofridas e exigindo mudança. “Não é um problema do motorista, é um problema da empresa, que precisa fazer alguma coisa pros motoristas se sentirem seguros e não serem preconceituosos. O racismo e a lesbofobia já estão neles. A empresa precisa me garantir que isso não vai me deixar insegura.”

De tantas e variadas experiências, Aline reflete muito sobre as múltiplas possibilidades de Floripa. De um lado, a cidade que lhe permitiu se descobrir. Ao mesmo tempo, a cidade lhe agride por não abrir mão de ser quem realmente é. Não se parecer com uma mulher a faz deixar de ser atendida em farmácias, mercados – além de todas as violências físicas e verbais que já sofreu.

“Eu entendi que pra cidade é um desconforto muito grande, ter uma pessoa de 1.85, com essa voz fininha, com roupa masculina, e com uma mulher do lado. É uma cidade muito conservadora, onde as pessoas simplesmente não concordam com a sua existência”, comenta.

Aline, 2021. Foto: Acervo Pessoal

Mesmo com os constantes e incansáveis ataques, Aline resiste ao continuar existindo e mobilizando pessoas ao seu redor, buscando conscientização. Orgulhosa de quem se tornou, não desiste da luta, mesmo que o preconceito a limite a acessar sempre os mesmos espaços. 

“Eu gosto muito de ser quem eu sou. Eu estou muito feliz por ser uma pessoa sapatão. Eu gosto muito quando acontece de pessoas me tratarem bem nos lugares. Por isso, eu vou sempre nos mesmos lugares. Eu vou sempre na mesma farmácia, na mesma padaria, se possível vou sempre na mesma caixa do supermercado. É pensando na minha segurança. Essas pessoas não vão cometer violência comigo. E ao mesmo tempo, se acontecer alguma violência comigo, elas me conhecem. Talvez eu possa estar um pouco mais segura nesses lugares”.

Visibilidade lésbica – e branca

Uma das principais diferenças sentidas por Aline entre São Paulo e Florianópolis tem sido a branquitude. Apesar do racismo obviamente estar presente nos dois locais, a forma como as pessoas brancas se colocam em Santa Catarina tem um peso diferente. “Tudo em Florianópolis é extremamente branco. Todas as pessoas fazem questão de dizer que são alemãs, italianas. Que elas têm esse outro lugar.” 

Aline sente que no mundo lésbico, isso não é diferente. Todas às vezes que tentou participar ativamente de movimentos lésbicos foi taxada como agressiva, o que tornou difícil permanecer nos coletivos. “As lésbicas brancas querem que você atinja um padrão de negra para ser aceita nos lugares. Esse padrão eu não sei direito qual é. Mas eu sei que tem a ver com ficar calada e concordar. Ter um padrão de feminilidade, de beleza, de comportamento. Ainda que seja uma mulher careca, existe uma feminilidade implícita. Vai ter um batom, um brinco, um jeito de se comportar, pra colocar ali um traço de feminilidade.”

Para a pesquisadora, a lógica branca se mantém mesmo quando o espaço busca visibilidade para pessoas não-brancas. “Um cabelo enorme, uma trança afro. Ou, uma mulher de cabelo curto, mas de brincão, com batom. Que atinge o que uma mulher negra tem que ser por padrão. Tem que ser bonita, bem cuidada, com maquiagem, perfumada, alegre, sorridente”.

Ao ficarem de fora deste padrão aceito como “cota dentro dos movimentos”, Aline afirma que lésbicas pretas e não femininas encaram um isolamento e falsas equivalências, que invalidam suas dores. Sempre que comenta sobre as violências sofridas, por exemplo, com os carros de aplicativo, Aline escuta de amigas brancas que estas “já passaram pela mesma coisa”. 

“Vem sempre uma tentativa de igualdade. Mas essa igualdade esconde a gente, desmantela nosso ser. Porque não é a mesma coisa. Um carro de aplicativo cancelar e pedir pra você sair é diferente de um policial apontar a metralhadora na sua cara e você não saber o que ele vai fazer. É muito diferente, porque mesmo quando eles cancelam a corrida, não é violento. É uma ação violenta, mas não existe uma violência verbal, do tipo ‘você tem que morrer, você não devia existir, você é nojenta’”.

Aline questiona inclusive a falta de vozes diferentes em espaços de luta. “Porque que se faz uma programação da Semana Lésbica e tem uma pessoa negra? Por que não se pega o que está acontecendo na cidade? Traz uma lésbica do morro, uma lésbica do continente. São sempre as lésbicas universitárias, que tão ali bonitinhas, com o discurso mais formatado, ameno”.

Aline, 2021. Foto: Acervo Pessoal

Representatividade importa

Uma das motivações de Aline tem sido o contato com uma adolescente de 13 anos, que é parente da mulher com quem se relaciona. A jovem se afirma lésbica em todas as suas relações sociais, na escola, na família, sem recuar. O contato com Aline fez com que a jovem refletisse também sobre sua própria feminilidade. “Ela não quer e descobriu que não precisa. Ela disse pra mim que conhecia pessoas brancas que não eram femininas, mas ela nunca tinha visto uma pessoa negra.”

Para Aline, a surpresa da jovem ao perceber essa possibilidade de existência é consequência da falta de representatividade de mulheres negras, sapatonas, não femininas. Dos poucos materiais que existem, quase nenhum chega para essa faixa etária. Assim, logo no primeiro contato com Aline, a adolescente pode perceber quem deseja ser. 

“Ela tá descobrindo a partir de mim, a partir da minha coragem de ser quem eu sou, que é possível. Ela não precisa ser outra coisa, ela pode ser quem ela é. Às vezes ela pode, em algum momento mais adulta, descobrir que a sexualidade dela é outra, mas que ela não precisa ter uma performatividade feminina. Que ninguém é obrigado a fazer isso. Ela pergunta absolutamente tudo. Pergunta porque meu cabelo é assim, porque que eu gosto da calça tal, porque que meu corpo é assim, se doeu, se pode.” 

Infelizmente, também é preciso conversar com a jovem sobre os problemas que podem surgir, com pessoas ao seu redor que talvez não entendam quem ela é – assim como acontece com Aline. Mas, é importante que essa conversa não tente amedrontar ou querer impedir. “Eu gosto muito desse papel e eu queria muito poder existir em mais lugares. Porque a gente também conversa com ela sobre o problema. Sobre a pessoa que talvez não entenda quem ela é. Mas de um jeito que não deixe ela com medo. Porque o medo é um lugar muito ruim, que paralisa a gente”

Aline Dias, 2019. Foto: Acervo Pessoal

Mercado de Trabalho

Quando Aline chegou a Florianópolis, seguiu a profissão que tinha em São Paulo, trabalhando como operadora de telemarketing. Participou de alguns processos seletivos em escolas, mas nunca conseguiu atuar de acordo com sua formação, como professora de história. O processo era sempre o mesmo: seu currículo era selecionado, ia bem nas entrevistas online, mas as escolas pararam de responder após o envio de fotos.

Em um destes processos, chegou a ir para uma entrevista presencial. Foi barrada no portão. Ao dizer que veio para a entrevista de emprego, a funcionária lhe disse que a vaga de faxineira já havia sido preenchida. Constrangida, Aline insistiu: eu sou professora de história. “Ela me disse, ‘ah moça desculpa, marquei com você, mas eu já contratei a professora hoje de manhã’. Eu fiquei sem reação. Pensei, e falei que ela podia ter ligado pra desmarcar. Ai ela pediu desculpas. Mas estava muito na cara que ela não tinha contratado professora nenhuma. Ela só não gostou do que ela viu”.

 Hoje, além do doutorado, Aline trabalha com pesquisa e transcrições. Apesar do currículo excelente, as portas do mercado de trabalho formal da cidade insistem em se manterem fechadas. A única experiência que teve como professora foi no estágio de docência, quando estava no mestrado da UDESC, na disciplina de História da África. E mesmo lá, o racismo se fez presente. “Tinha um aluno que se recusou a assistir a minha aula. Ele dizia que não ia ter aula com uma professora negra, que eu não tinha nada pra ensinar pra ele”.

Aline resistiu, sendo ameaçada e agredida. Para conseguir ministrar sua aula sobre música contemporânea africana, era preciso chegar acompanhada de sua orientadora, da coordenadora do curso, e de outro professor – homem branco. O estudante era natural de Pomerode, e repetia que orgulho que “eram todos alemães, na sua cidade não havia pessoas negras”. 

Em sua pesquisa de doutorado sobre teatro negro catarinese, Aline previa viajar pelo estado catarinense. Os planos foram impedidos devido à pandemia de coronavírus. Porém, antes mesmo disso, ela já não tinha mais certeza da viagem. Foi orientada pelos amigos a não ir para o interior ou oeste catarinense. “Eu achei que era exagero quando me falaram pra que, se eu precisasse mesmo ir, levasse no mínimo duas pessoas brancas comigo. E que era possível que eu não voltasse”.

Mesmo desejando conhecer outras cidades do Estado, como a serra catarinense, Aline não sente coragem de sair da capital. Para ela, o mais difícil é pensar em como é a vida das pessoas que nasceram nestas cidades, e que não se sentem seguras para ser quem são. 

“É absurdo não poder ser você mesmo. Sinto isso de um jeito esquisito, porque eu só estou sendo. Porque não tem outra opção. Pra mim não tem outro caminho que não seja esse, ser eu mesma. Ter a aparência que eu quero ter, falar do jeito que eu quero falar, de estudar o que eu quero estudar, e ocupar o lugar que eu quero ocupar. Não existe outro meio, outro caminho, outro mecanismo de existência. Só que ao mesmo tempo, tem lugares em que eu preciso convencer as pessoas de que eu sou digna de existir. Que eu não preciso sumir, como aquele cara que cuspiu em mim, e disse que eu tinha que morrer”. 

Incertezas sobre o futuro

A falta de perspectiva de futuro profissional, somada ao clima político de tensões, faz com que Aline não se sinta segura no seu país de origem. Para ela, a permanência depende diretamente do resultado das eleições presidenciais em 2022 – ano em que também termina o doutorado. Se Bolsonaro se reeleger, Aline fará todo o possível para ir embora.  

“Eu não consigo mensurar o tamanho da violência que vem pela frente. E eu não vou conseguir ficar aqui, nem que seja pra pedir asilo político para as sapatonas faveladas. Porque na precarização a maioria já está. Depois da precarização, é só a morte”. 

Caso fique, ainda lhe preocupa que mesmo doutora e com intercâmbio na Alemanha e na Áustria, não consiga ocupar os espaços que lutou para poder acessar. “O doutorado é uma carta de alforria pra me ajudar a transitar em grandes cidades. Mas a falta de conseguir visualizar o futuro é tão grande e tão profunda, que eu não consigo imaginar, neste momento, o país abrindo concurso. E é o lugar onde eu consigo me sentir mais à vontade para ocupar o espaço que eu deveria ocupar, pelo estudo que eu tenho”. 

Aline cogita voltar para o centro de São Paulo, onde possui uma forte rede de apoio e possibilidades de emprego em museus. Sem imaginar conseguir dar aulas em escolas particulares de Florianópolis, Aline teme que a feminilidade volte a ser um pré-requisito para a sobrevivência, como já ocorreu antes. “Se não arrumar emprego, se não tiver o que fazer, eu coloco trança, vou passar um batom e vou trabalhar, porque eu tenho que sobreviver. Chorando, sofrendo, mas é uma batalha de cada vez. Não acho que eu precise fazer isso comigo. Mas se precisar, a gente faz”.  

Sem saber o que o futuro lhe reserva, Aline segue sendo resistência e lutando por um direito que nunca deveria ter sido negado: o de ser uma pessoa. 

“Sapatonas negras são pessoas. A gente tem dignidade, a gente tem direito, a gente tem cultura. A gente sangra igual, a gente chora igual, a gente ri igual. Nosso dinheiro vale igual. Eu sou uma mulher, uma sapatão negra, eu sou uma pessoa. Eu mereço respeito, cuidado, afeto”. 

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  • Gabriele Oliveira

    Estudante de Jornalismo (UFSC) dedicada à escrita de reportagens, com foco na cobertura de direitos humanos. Estagiária...

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