Um ano após a execução de Marielle Franco, voltamos à Escadaria da Igreja do Rosário, no centro de Florianópolis, local emblemático à população negra que no passado viu seu povo extirpado de sua religiosidade e forçado a construir aquela igreja para professar a fé cristã em um espaço exclusivo, já que não poderia ocupar os templos destinados aos brancos. Voltamos para mostrar que Marielle é símbolo que dá unidade às diversas lutas, como mulher preta, favelada, feminista, que amava outra mulher, e socialista. Marielle estava presente no grafite que estampa seu semblante de força e ternura, no ramalhete de girassóis, que passou a ser símbolo de sua morte, e nas presenças que florescem da sua força política: todas ali eram sementes.

Madalenas na Luta encenaram a morte de Marielle/Foto: Alice Sima

As Madalenas na Luta abriram o ato com a performance Marielle Presente, seguida de falas públicas, da exibição de um vídeo do 8M Santa Catarina em homenagem à vereadora, e do Sarau Mulheragens de Desterro destinado à quem quisesse declamar poesia, texto ou canto.

“Ela carregava tudo isso no próprio corpo, a compreensão de que todas essas lutas não se contradizem, mas se complementam, nos fortalecem. A compreensão de que não é a luta LGBT, antirracista, feminista que afasta a luta da classe trabalhadora, mas é a permanência dessas violências racistas e patriarcais no seio da classe trabalhadora que nos impedem de caminhar juntas. Não há entre nós nenhuma contradição insolúvel ou obstáculo intransponível”, apontou em um texto preparado especialmente para o ato, a advogada Lorena Duarte, integrante do gabinete do vereador Marquito (PSOL).

Para Lorena os assassinos de Marielle miraram no projeto político de país que ela representava, uma mulher que acreditava que só seria possível superar a barbárie socializando os bens da vida. “Favelada, sabia que o parlamento não iria até a favela por isso levou a favela para dentro dele. […] Só quem pode fazer qualquer coisa parecida com justiça somos nós, multiplicando a Marielle, fazendo com que ela apareça em cada canto da cidade, na cara e no corpo de cada mulher preta que transita na cidade, fazendo seu sonho e luta ecoarem, assombrando o sono da casa Grande, assim como antes assombraram Zumbi e Dandara, Luísa Mahin e Luís Gama”.

Lorena leu um texto sobre a potência da luta política travada por Marielle/Foto: Alice Sima

As sementes de Marielle estão a florescer em vários espaços, principalmente na política institucional por meio das mulheres negras que passaram a ocupar o parlamento brasileiro neste ano. “Quando Marielle ocupou aquela cadeira na Câmara do Rio se enganava quem via somente uma mulher. Marielle era um quilombo e por isso nunca andou só. O projeto político de Marielle transcende seu corpo porque foi construído com base sólidas e raízes infinitas no seio de mulheres pretas. Quando o seu corpo tombou, muitas mulheres pretas ocuparam o seu lugar e tocam sua luta adiante pelo país inteiro”, argumentou a psolista.

“A pessoa que não tem medo da polícia, provavelmente não é preta”, colocou Cauane Maia, antropóloga integrante do Cores de Aidê e Portal Catarinas, referindo-se à violência cotidiana que o povo negro e periférico sofre pelas mãos de quem os deveria proteger. Maia caracterizou a execução de Marielle não somente como parte da política de genocídio dessa população, mas também como um epistemicídio: o silenciamento de uma voz que produzia conhecimento acadêmico sobre a realidade dessas comunidades. “Ela tanto estava inserida como mulher de comunidade periférica na favela da maré como intelectual que produzia academicamente um material muito potente para se contrapor às falácias sobre as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora)”.

Cauane falou sobre a luta da população negra para resistir ao racismo presente desde a escravidão/Foto: Alice Sima

A ativista lembrou das execuções de Amarildo Dias de Souza, Cláudia Silvia Ferreira, dançarino DG, e de outras chacinas no Rio de Janeiro pela polícia. “Marielle não incomodou somente enquanto militante de esquerda, porque haviam outros políticos com projeção. Por que executaram uma mulher negra no centro do Rio de Janeiro? Ela não era só política e de esquerda, mas também negra, bissexual, mãe de adolescente, tinham outras transversalidades que a colocavam como alvo, a executaram como mais um corpo matável nessa necropolítica. Há fortes indícios que pela mão do Estado; por meio da milícia”.

Vanda Piñedo do Movimento Negro Unificado (MNU) atentou para o assassinato político da população negra pelo racismo que permanece na base que estrutura a sociedade brasileira, refletido na violência policial, na falta de políticas públicas para essa população, e na baixa representatividade política. “Somos assassinados pelas nossas ausências infinitas nos espaços de poder. Nossa presença é cotidianamente assassinada, quando saudamos Marielle estamos saudando a luta de outras mulheres assassinadas pela nossa estrutura, pelo que chamamos de racismo institucional que nos acomete todos os dias na universidade, escola, saúde, parlamento”, denunciou.

Para a representante do MNU o assassinato da vereadora trata-se de um massacre porque afeta a vida e os anseios de tantas outras mulheres negras para as quais ela era referência. “Saudamos Marielle porque teve presença marcante e isso tem repercussão enorme na vida das mulheres negras pra dizer que mulher negra tem autoestima, presença, poder político. Não massacram só Marielle, mas tantas outras mulheres no conjunto dessa referência que ela foi para o Brasil e o mundo”.

Mariana Queiroz que integra o Sarau Mulheragens defendeu que o uso da palavra e do silêncio são armas políticas. “É muito sério gritar Marielle Presente e ocupar trincheiras e fico pensando como o uso da palavra e do silencio são armas políticas. E o quanto a palavra, canto, seja no nosso axé, cordel, rap, poesia, que é extremamente democrática, todas podem ser poeta, mas quem pode editar livros nesse país, de quem é a editora, quem é que fala?”, questionou.

Mariana defendeu a existência de espaços de fala e escuta/Foto: Alice Sima

Mariana explicou que o sarau é um espaço que busca promover um exercício político de fala e escuta, experiência fundamental à existência que tem sido privada por ações de silenciamento, resultando em depressão e suicídio. “São experiências que sem elas adoecemos, elas estão sendo lesadas, o que está acontecendo nas escolas? Querem roubar a palavra, a história. Dinâmicas de violência, misoginia, machismo e racismo também nos impõem o silencio. Essas são formas de estarmos juntas, ocupar a cidade, construir memória e fazer o que é tão difícil nesses tempos”.

“Sou só mais um na multidão no estado mais fascista do Brasil […]. Eu poderia hoje fazer poesia, mas tem uma parada na minha cabeça: enquanto houver burguesia não vai haver poesia”, afirmou o rapper DKG. Ele abordou a impunidade relacionada aos assassinatos cometidos pela polícia e lembrou de um colega rapper que se suicidou no ano passado pela falta de espaços de conversa sobre as violências sociais. “Liberaram os onze policiais que torturaram e assassinaram Amarildo. Não tem justiça nesse país, precisamos estar juntos entendendo a solitude e depressão das pessoas”.

Desta vez DKG não declamou, seu protesto foi silenciar a rima/Foto: Alice Sima

“Doutor eu não me engano o Bolsonaro é miliciano”, cantou uma manifestante levantando o coro das pessoas presentes inquietadas pela pergunta: quem mandou matar Marielle? Ainda que as investigações não apontem o presidente da república como mandante do crime, ele foi relacionado aos algozes de Marielle em vários cantos do país e do mundo por exaltar as milícias e defender as polícias que matam.

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A poeta Daiane Delfino (foto de capa), do Slam Continente, apresentou uma rima de resistência e com uma linguagem papo reto da periferia denunciou o racismo que violenta o povo negro desde a escravidão. Com a autorização da slammer, publicamos o texto na íntegra:

130 anos se passou da abolição,
Mas a gente continua nas cozinha das mansão
Eu continuo abrindo a porta pra herdeiro de senhor de engenho passar.
Ainda sou eu que chama o elevador que a madame branca vai pegar
Continua sendo da minha cor a maioria da população carcerária
E pra PM eu sou só mais uma neguinha favelada
Eu ainda moro nos quartinho de empregada…
Na rua seu nariz fino levantado não te deixa me enxergar
E eu até já cheguei a me perguntar:
Será que eu sou invisível pra você?
Se eu fosse branca do cabelo liso,
Você ia me ver?
Mas a real é que você me vê.
Porque eu sou como Rosa Parks que se nega a levantar!
Eu sou como Dandara, guerreira africana, pronta pra lutar!
E você ainda acha que pode me parar?
Se eu sou o monstro que apavora os seus privilégios
E não tem remédio, procê não tremer quando me vê com meus iguais
E cê pode escrever, nós vai cobrar tudo que nós passa e tudo que passou nossos ancestrais.
Nós continua resistente 
E continuamos gritando: Marielle presente!

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