Ariane Chagas Leitão, advogada, militante feminista e ex-secretária de Políticas para as Mulheres do PT no Rio Grande do Sul, recebeu com alívio a notícia de que o ex-colega de trabalho acusado de violentá-la sexualmente tornou-se réu por estupro. Em setembro, um ano e nove meses após o ocorrido, a Justiça aceitou a denúncia apresentada pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul contra Gilson Alberto dos Santos Gruginskie. 

O inquérito foi conduzido pela 1ª Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) de Porto Alegre (RS) e foi concluído com um laudo do Instituto-Geral de Perícias (IGP), que apontou indícios suficientes de que o ex-assessor do PT constrangeu a vítima mediante violência para “praticar atos libidinosos”. Tipificado como estupro, o crime está previsto no artigo 213 do Código Penal, que prevê pena de 6 a 10 anos de prisão. 

“Depois do fato, a vítima adoeceu psicológica e fisicamente, somente admitido que fora estuprada depois de buscar atendimento psiquiátrico”, afirma na denúncia a Promotora de Justiça Letícia Viterbo Ilges. 

O crime ocorreu em dezembro de 2022, durante uma confraternização de fim de ano nas instâncias internas do PT de Porto Alegre (RS). Leitão relatou o caso à direção do partido em setembro de 2023 e, em novembro, formalizou a denúncia de assédio sexual e estupro ao Ministério Público.

“Os dias passam lentos para quem espera por justiça… ela vem a ‘conta gotas’ e repleta de outras violências que vamos passando, na dura caminhada da denúncia, em busca da tão esperada justiça… Mas com passos firmes e determinados seguimos, pois não é possível desistir!”, escreveu a advogada em rede social

Inquérito inclui depoimentos de outras vítimas de violência sexual

Além do depoimento de Leitão, a conclusão do inquérito destacou relatos de outras quatro mulheres que foram encorajadas a testemunhar no caso, pois também tinham sido assediadas ou abusadas pelo suspeito. 

“Uma das mulheres contou que não sabia se havia sido estuprada, pois estava embriagada e não lembrava dos detalhes. No entanto, é considerado estupro quando a pessoa está embriagada e incapaz de consentir. Nem todas tiveram coragem de denunciar, mas já foi um passo importante que algumas tenham prestado depoimento no inquérito policial”, afirma Rubia Abs, advogada feminista e representante de Leitão no caso.  

O relatório cita que ele se utilizou do mesmo modus operandi nestes outros casos, “se valendo de sua posição de liderança e superioridade dentro do partido”. 

O que diz a defesa do acusado

Procurada pelo Catarinas, a defesa de Gruginskie respondeu de forma sucinta, afirmando que ele “ainda não foi formalmente citado e, por isso, desconhece o conteúdo completo da acusação”, o que significa que ele ainda não foi localizado para receber a notificação oficial.

“De todo modo, esclarece-se que, por se tratar de um processo que corre sob sigilo judicial, todas as manifestações permanecerão restritas aos autos. Por fim, reforça-se que a presunção de inocência é um princípio civilizatório e normativo, o qual determina que ninguém deve ser considerado culpado por antecipação, independentemente das acusações que lhe são imputadas, devendo tal princípio ser respeitado tanto pela mídia quanto pelos indivíduos em suas redes sociais”, completa a nota assinada pelos advogados Daniel Achutti, Fernanda Osorio e Fernando Nerung.

A advogada da vítima explica que o oficial de justiça já visitou dois endereços diferentes na tentativa de localizar o réu, mas sem sucesso. Caso ele permaneça sem ser encontrado, será feita uma citação por edital e, se não houver resposta, o processo seguirá à revelia, ou seja, sem a participação do réu.

Após ser citado, Gruginskie terá um prazo de 10 dias para apresentar sua resposta à acusação. Ex-assessor na bancada do PT na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, ele foi exonerado quando o caso passou a ser investigado.

Ação por violência política contra dirigentes do PT/RS

Além da denúncia por violência sexual, Ariane Leitão moveu uma ação por violência política contra três dirigentes do Partido dos Trabalhadores (PT). Segundo a representação apresentada ao Ministério Público Federal, os dirigentes coordenaram retaliações contra ela desde fevereiro de 2023, quando a advogada relatou ao seu superior na Assembleia Legislativa a violência sexual que sofreu.

Entre as atitudes descritas estão difamação em espaços políticos, questionamentos sobre sua sanidade mental, tentativas de descredibilizar sua palavra e restrições ao exercício de seus direitos políticos, criando um ambiente hostil e inviabilizando sua atuação. As retaliações teriam ocorrido tanto pessoalmente quanto em grupos virtuais e se intensificaram após a denúncia formal do estupro, em setembro daquele ano.

“Em vez de ser acolhida, fui maltratada. Hoje, meus direitos estão restritos, e estou impedida de frequentar certos lugares, como a Assembleia [Legislativa], onde fui difamada por dirigentes, homens e mulheres. Vivo uma situação de hostilidade até nas ruas. Durante o período das enchentes no Rio Grande do Sul, fui atacada diretamente por representantes do partido em reuniões. É desolador”, desabafou Leitão em entrevista ao Catarinas.

A ação tem como base o artigo 326-B do Código Eleitoral, o artigo 359-P do Código Penal e tratados internacionais como a Convenção de Belém do Pará e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw) da ONU, ambos compromissos internacionais de proteção dos direitos das mulheres. 

“Mesmo antes do próprio caso, Ariane já estava indignada ao saber de outros episódios de estupro não denunciados, e que a liderança do PT, mesmo informada, não agiu. Quando sofreu a violência, tentou expor o que acontecia, mas não encontrou apoio e acolhimento. As pessoas que a difamaram e a caluniaram, inclusive chamando-a de drogada, estão agora sob avaliação do Ministério Público”, afirma Rubia Abs. 

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Ariane Leitão participa do Ciclo de Debates sobre Violência Política de Gênero do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Mulher e Gênero (NIEM) da UFRGS. Crédito: Arquivo Pessoal.

A situação já havia sido exposta pela ex-secretária do PT em entrevista ao Catarinas, em janeiro de 2024. Na ocasião, ela relatou que, entre fevereiro e maio de 2023, sofreu diversos episódios de violência política e assédio moral, em que suas falas não eram encaminhadas ou consideradas. 

Durante esse período, foi convidada a participar da criação de um projeto para um espaço público federal no governo Lula. No entanto, na última reunião sobre o projeto, informaram que ela não o executaria e estava excluída da iniciativa. Segundo Leitão, seu trabalho foi plagiado e apresentado sem qualquer crédito a ela, reforçando um ambiente que visava desgastá-la.

Apesar das críticas sobre como o partido conduziu o caso, a representação é direcionada especificamente aos três dirigentes.

“Deixamos claro que não é uma ação contra o PT, mas contra membros que praticaram violência política”, afirma Rubia. 

Ela também explica que, embora Leitão não seja candidata ou parlamentar, há jurisprudência no Ministério Público Federal que reconhece casos de violência política contra pessoas sem mandato ou candidatura, mas que têm atuação política no partido. Por isso, as retaliações foram reconhecidas como tal. 

A ação foi inicialmente recebida por um procurador no Ministério Público Federal e agora está sendo analisada por outra procuradora, que examina a formalização da denúncia conforme os termos da lei.

Comissão de Ética que julgou violência sexual não contemplou requisitos técnicos 

Procurado pela reportagem, o PT/RS informou que, assim que a denúncia de estupro foi recebida, a Comissão Executiva do partido acolheu o relato da vítima e comunicou o caso ao Ministério Público, solicitando a designação de promotoras mulheres para acompanhar o processo, pedido que foi atendido. A Executiva também determinou a abertura de uma Comissão de Ética e Disciplina para apurar o caso e afastou cautelarmente o acusado do partido.

“A Comissão de Ética trabalhou ouvindo as partes, advogados/as e testemunhas e apresentou um relatório à Comissão Executiva Estadual, com cópia à denunciante e ao denunciado. Além de relatar as oitivas e os procedimentos adotados, a Comissão propôs a suspensão da tramitação do processo ético até a conclusão das investigações pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário, se fosse o caso. A Executiva acatou o pedido de suspensão e decidiu renovar a medida de suspensão cautelar do acusado”, afirmou Selene Michielin, Secretária de Comunicação do PT/RS.

Ela também ressaltou que a atuação da Comissão de Ética se baseia no Art. 220 do Estatuto do PT, que delimita suas funções como “órgãos de cooperação política dos Diretórios correspondentes e suas funções não terão, portanto, cunho policial e judicial (…)”. “Portanto, a Comissão concluiu o que estava na sua esfera de competência”, completou.

Ariane Leitão, no entanto, contesta a condução do processo ético. “Fui execrada na Comissão de Ética. O processo não atendeu aos requisitos técnicos mínimos, nem numeração de processo havia, o que revela o amadorismo das audiências. Fui revitimizada e, a partir dali, minha saúde mental se deteriorou ainda mais”. 

“Fui difamada tanto por dirigentes partidários quanto por dirigentes da Assembleia Legislativa. Me chamaram de mentirosa, drogada, promíscua, golpista, tudo o que se possa imaginar. Me acusaram de estar denunciando só para conseguir um cargo”, elenca. 

Leitão afirma que, além de não receber apoio do partido, foi exonerada enquanto estava de licença-saúde, perdendo inclusive o acesso ao plano de saúde.

Atualmente, ela atua como coordenadora jurídica do “Instituto E Se Fosse Você?”, organização fundada em 2018 por Manuela d’Ávila com o objetivo de auxiliar no combate à violência política de gênero e raça no Brasil.

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Manuela d’Ávila e Ariane Leitão | Crédito: Flávia Hernandes.

“Vou atrás de justiça e reparação. Perdi as contas do quanto gastei de dinheiro. Não só eu, mas a minha família inteira adoeceu. Por isso, a violência política é tão perversa, porque ela é recheada de uma série de crimes. Graças ao instituto, ao acolhimento da Manuela e de toda a equipe, consegui voltar à esfera pública, embora com muitas limitações”, relata. 

Isolamento e tratamento de silêncio 

Nem Ariane Leitão nem sua advogada, Rubia Abs, têm confirmação de que o caso de violência sexual e política tenha chegado ao diretório nacional do partido. Leitão, inclusive, acredita que o caso não tenha se nacionalizado devido ao isolamento e ao tratamento de silêncio promovido por seus ex-colegas.

A reportagem entrou em contato com a representação nacional do partido para confirmar se o caso chegou ao diretório nacional. Questionamos também como o partido lida com denúncias internas de violência sexual e pedimos esclarecimentos sobre as acusações de violência política relatadas por Leitão, buscando entender como a sigla trata casos semelhantes em suas instâncias internas. Até o fechamento desta matéria, no entanto, não houve retorno.

“Os partidos políticos, os espaços de poder, não estão preparados para atender vítimas de violência, sobretudo vítimas de violência sexual, que é um crime de difícil comprovação. Estamos no meio de um processo onde até uma ministra [Anielle Franco, Ministra da Igualdade Racial] é colocada em xeque, mas várias outras vítimas de crimes sexuais enfrentam a mesma dificuldade”, avalia Leitão. 

A advogada relata que inicialmente recebeu a solidariedade de algumas mulheres do partido, mas o apoio durou pouco, e o silêncio se intensificou com a proximidade do ano eleitoral. Ela também menciona a falta de acolhimento de alguns movimentos feministas no Rio Grande do Sul, que a afastaram de atividades ou ignoraram seus pedidos de ajuda para divulgar o caso, ampliando a sensação de isolamento e perseguição já sentida em relação a seus ex-colegas do PT.

Para Leitão, esses episódios refletem o que chama de “pacto do patriarcado” para silenciar e punir mulheres que se solidarizam com vítimas de violência. “Denunciar a violência política não faz parte do pacto do patriarcado. Se você denuncia, está fora do pacto, não é bem-vinda. Vai ser queimada na fogueira, ficar sem trabalho, adoecer, e ninguém vai te apoiar”, conclui.

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  • Kelly Ribeiro

    Jornalista e assistente de roteiro, com experiência em cobertura de temas relacionados a cultura, gênero e raça. Pós-gra...

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