“Somos as netas daquelas bruxas que não puderam queimar saímos todas a lutar, a lutar, a lutar este é meu corpo e eu decido que o aborto seja legal”

Foi uma construção de anos. De feministas históricas que nunca abandonaram esta pauta radical e fundamental para a vida das mulheres e para a democracia. De três décadas de encontros nacionais de mulheres que reúnem milhares delas anualmente. Das garotas do Ni Una a Menos. Da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal Seguro e Gratuito, que impulsionada há 13 anos, hoje reúne mais de 500 organizações e o movimento feminista em geral em torno do propósito de instituir “educação sexual para decidir, anticonceptivos para não abortar e aborto legal para não morrer”. As mesmas insígnias universais que mobilizaram o Uruguai rumo à legalização do aborto.

Como símbolo a campanha atualizou o lenço das Mães e Avós da Praça de Maio, na cor verde. Continuidade e renovação. Lutas afins e que persistem. Mas a militância, esta está se renovando com um feminismo jovem, ousado e valente, potente e vibrante!

O debate contagiou toda a sociedade. Um coletivo de atrizes famosas surgiu durante a campanha, se posicionou publicamente e influenciou para ampliar adesões. Atores gravaram depoimentos. Não só deputados/as fizeram reuniões para convencer colegas, suas assessorias também se dedicaram a isso. E o que se afirma é que, diferente de outras leis, neste caso nada foi negociado em troca de votos.

Pessoas anônimas fizeram um trabalho de formiguinha, corpo a corpo. Houve manicures e cabeleireiras, por exemplo, que deixaram de cobrar para quem pintava as unhas e os penteados de verde. Escolas e faculdades debateram o tema, e houve, inclusive, algumas ocupações de estudantes com oficinas e vigílias durante a votação. A lista do engajamento e contribuições é interminável e abrangeu todo o país.

O reconhecimento maior, no entanto, vai para a inquestionável e arrebatadora presença das jovens que tomaram as ruas de cores, música, posicionamento político e alegria. A de viver e a de lutar pela vida. Uma expressão lida ajuda a resumir: foi uma “tomada de consciência por autocelebração!”.

Dos dias 13 ao 14 de junho foram 27 horas de vigília sob um vento gelado de inverno. O video abaixo nos dá uma “palhinha” de como foi o movimento:

Foram 129 votos, num daqueles casos em que o resultado é muito maior que a soma das partes. Segundo a militante histórica Marta L. Rosenberg, o resultado veio a partir da melhor forma de se fazer política: com a participação de todos/as, paciência e perseverança. Foi colocando o tema na rua, tirando-o da clandestinidade e obscuridade e alçando-o ao debate público que a adesão foi crescendo. O jeito feminista de democratizar a sociedade se impôs. Não foi simples ou fácil. Mas são momentos como estes que fazem tudo valer a pena. São conquistas que não se perderão jamais, ainda que processos de transformação possam ter curvas de direções inesperadas e que muito há a ser enfrentado pela frente.

Mas, o que diz o Projeto de Lei (PL)? Ele se fundamenta nos direitos e na dignidade da vida, na autonomia, na saúde, na integridade, na diversidade corporal, na intimidade, na igualdade real de oportunidades, na liberdade de crenças e de pensamento e na não discriminação.

Resumidamente: estipula a possibilidade de interrupção da gravidez até as 14 semanas, à exceção de casos especiais; que a intervenção deverá estar garantida em todos os centros de saúde públicos ou privados, a partir de cinco dias de feito o requerimento; prevê o acesso para meninas até os 16 anos, considerando a legislação existente, mas respeitando o direito de também serem ouvidas. A objeção de consciência está garantida, mas o não atendimento poderá ser punido. O PL prevê ainda a criação de políticas para a prevenção da gravidez não desejada e de fortalecimento da saúde sexual e reprodutiva da população, o que inclui programas de educação sexual integral e criação de registro estatístico para monitoramento e avaliação. Foi o resultado de muito debate e negociações coletivas.

Insígnias universais mobilizaram o Uruguai rumo à legalização do abortoInsígnias universais mobilizaram a Argentina rumo à legalização do aborto/Foto: Beatriz Giri

No blog economiafeminita.com (é sem o s em feminista mesmo) existem planilhas colaborativas que computaram os votos dos deputados e agora permitem acompanhar o provável voto de senadores/as. Nelas pode-se encontrar dados como a província de origem de cada parlamentar, partido, contatos de e-mail, Twitter, Facebook, Instagram etc… dados que facilitam o acesso para eleitores/as que queiram se manifestar.

Foi nessa planilha que vi que a senadora Cristina Kirchner, que antes se posicionava contrária ao direito ao aborto, vai votar com o PL, assim como as outras senadoras. Num total de oito, todas afirmam que votarão a favor. O bloco Frente para la Victória, do qual Cristina faz parte, também está coeso. Mas, segundo um levantamento do jornal Página 12, a votação no Senado – que não deve demorar muito a acontecer – promete a mesma tensão/sofrimento da contagem voto a voto. Até a semana passada previam 28 a favor, 30 contrários/as, 14 sem definição ou pronunciamento. Segura o coração! E parte pra ação!

Há um consenso de que a presença de mulheres no parlamento argentino (38,9%, 100 de 257 deputados e 8 senadoras) contribuiu para o resultado. Não necessariamente pela forma como votaram ou se posicionaram: das 100 deputadas 50 foram a favor, 49 contrárias e uma se absteve. Mais equilibrado, impossível, não é mesmo? Porem, a presença delas possibilita que os direitos das mulheres e a perspectiva de gênero estejam mais presentes nos debates legislativos. Para confirmar que essas conquistas não estão isoladas. E entender o significado grave de no Brasil termos apenas 10% de mulheres nos parlamentos, nenhuma ministra, extinção de ministérios/secretarias voltados para políticas para mulheres e negros/as, etc. Dados que não podem ser esquecidos em ano de eleições majoritárias.

 

Que sea ley

No blog também se encontram informações sobre os dois meses de debates que mobilizaram diversas comissões da Câmara de Deputados/as Argentina. Foram 18 seções, 106 horas e 738 expositores/as que – a partir das suas experiências e áreas de conhecimento – aprofundaram o tema sobre as mais diversas perspectivas. Se você tem interesse em saber como eles se posicionaram, dê uma olhada aqui.

Interessante ver que advogados/as e médicos/as são aqueles cuja maioria esteve contrária à aprovação do projeto. A historiadora argentina Dora Barrancos, em entrevista ao portal NODAL, disse que não acredita que a restrição de médicos/as se faça por questão religiosa, mas por questão de poder, já que, de forma corporativa, pensam que deveria caber a eles as decisões sobre os corpos.

Lembrem que muitas organizações feministas que surgiram nos anos 70/80 do século passado, caso do SOS Corpo e do Grupo Curumim, noRecife, começaram como grupos que se reuniam para aprofundar o conhecimento sobre o corpo e a saúde das mulheres, com o propósito de autoconhecimento, fortalecimento da autonomia, o que incluía a contraposição ao poder médico. Observem que parece que a advogados/as interessa também, de forma corporativa, a continuidade da criminalização das mulheres. Não precisa dizer porque.

Mas é importante reconhecer que nas duas categorias também existem feministas parceiros/as. A historiadora argentina, consonante com os movimentos feministas do qual é parte, afirmou ainda que com este resultado “haverá uma mudança notável no sentido da autonomia das mulheres”. Reforçou que “não há cidadania sem autonomia” e que ao se garantir a capacidade de decisão das mulheres, se ampliarão as possibilidades de segurança pessoal e de equidade em relação ao exercício da sexualidade. É o esperado!

Dois dias depois do resultado o Papa Francisco o criticou de forma lamentável e equivocada. Comparou o aborto a práticas nazistas e a uma “moda” eugênica. Desconsiderou que o problema sempre existiu. Desconsiderou o que significa para a vida das mulheres. Desconsiderou sujeitos políticos e históricos das lutas em defesa dos direitos sexuais e reprodutivos. Como era de se esperar do líder da instituição símbolo do patriarcado. Mesmo que ele venha nos surpreendendo positivamente por alguns de seus posicionamentos, parece que em relação às mulheres a Igreja de Francisco vai continuar aonde sempre esteve: relegando-as à margem, inclusive da própria capacidade de compreensão e de compaixão. Ressalto essa manifestação porque ela é representativa da força contrária à aprovação do projeto. Ao mesmo tempo pelo fato de que nela não há novidade. A novidade está na sua superação, o que justifica a existência dos movimentos. A novidade está na mudança cultural que estamos vivendo.

Argentinas em luta

Para terminar, um pouco de sentimento pessoal: deu muita pena não estar em Buenos Aires. Além de uma inveja danada, não é mesmo?! Li e reli muitos artigos nos últimos dias. Vi e revi vídeos das audiências e das defesas no Parlamento. Fui contagiada por eles. Fiz isso como forma particular de comemoração à distância. A Irlanda foi muito importante, sem dúvida nenhuma. Mas, para nós brasileiras não dá pra comparar a emoção, já que esta é uma realidade mais próxima, conhecida, compartilhada.

Parabéns Argentina! Bravo companheiras!

Na próxima coluna situarei sobre o aborto aqui na África do Sul, legalizado em 1997. Até lá.

Publicação em parceria com a Folha de Pernambuco.

* Carla Gisele Batista é historiadora, pesquisadora, educadora e feminista desde a década de 1990. Graduou-se em Licenciatura em História pela Universidade Federal de Pernambuco (1992) e fez mestrado em Estudos Interdisciplinares Sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela Universidade Federal da Bahia (2012). Atuou profissionalmente na organização SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia (1993 a 2009), como assessora da Secretaria Estadual de Política para Mulheres do estado da Bahia (2013) e como instrutora do Conselho dos Direitos das Mulheres de Cachoeira do Sul/RS (2015). Como militante, integrou as coordenações do Fórum de Mulheres de Pernambuco, da Articulação de Mulheres Brasileiras e da Articulación Feminista Marcosur. Integrou também o Comitê Latino Americano e do Caribe de Defesa dos Direitos das Mulheres (Cladem/Brasil). Já publicou textos em veículos como Justificando, Correio da Bahia, O Povo (de Cachoeira do Sul).

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