Andrielli vai passar o primeiro Dia das Mães com a filha
No dia 9 de maio, o TJSC decidiu pelo desacolhimento da menina, que havia sido retirada da mãe imediatamente após o nascimento em maternidade de Florianópolis
Leia a primeira reportagem que fizemos sobre o caso aqui.
Um ano e dez meses após ter sua filha retirada dos braços ainda na maternidade pelo Conselho Tutelar, Andrielli Amanda dos Santos, de 22 anos, recupera o direito de exercer a maternidade. A Vara da Infância e Juventude da Comarca da Capital, em Florianópolis, decidiu pelo desacolhimento da pequena Suzi em decisão publicada na última terça-feira (9). O Dia das Mães será de alegria para a jovem, que não deixou de sonhar e lutar pelo retorno da criança. “É um presente tê-la comigo, estou bastante feliz e realizada com a vinda dela”, disse Andrielli em entrevista ao Catarinas.
As duas estão vivendo em uma quitinete no Morro do Mocotó, região central de Florianópolis, e ainda se adaptando à nova dinâmica. “Esse primeiro dia foi cansativo, ela quase não dormiu, mas já estou pegando a rotina dela. Eu me sinto mãe de primeira viagem, apesar de ela não ter sido a minha primeira criança. Estou aprendendo com ela, ela está aprendendo comigo, tem sido uma experiência bem gostosa de viver”, fala Andrielli. A casa está sendo mobiliada aos poucos. A família tem fogão e gás, falta somente a geladeira e a instalação de um chuveiro quente, detalhes que estão sendo providenciados com auxílio da rede de apoio.
Serviços de atendimento social devem acompanhar a família
A decisão pelo desacolhimento da menina em favor da mãe foi emitida com algumas condições. A família deve permanecer no município de Florianópolis, tendo em vista a necessidade de atendimentos especializados, bem como o vínculo com o Serviço de Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI), que deve oferecer um apoio frequente. Andrielli, que teve que cuidar da saúde mental ao longo da trajetória de recuperação da filha, deve seguir o acompanhamento psicológico no posto de saúde. A justiça também determinou a inclusão da criança na creche do bairro em período integral.
O defensor público do Estado, Pedro Pedro Luporini Ferreira, que atua no caso, explica que quando ocorre o desacolhimento, não significa que o processo se encerrou, mas que a medida protetiva de acolhimento institucional, uma das previstas no ECA (art. 101), não se faz mais necessária.
“Em geral, após o desacolhimento o núcleo familiar continua sendo acompanhado pelos serviços socioassistenciais e pela entidade de acolhimento de referência. Isso serve como uma forma de verificar a dinâmica familiar após o desacolhimento e se os direitos da criança ou adolescente estão sendo garantidos. Embora seja importante esse acompanhamento, é preciso destacar que, por vezes, isso serve como forma de manter uma vigilância constante às famílias que passaram por um processo de institucionalização”, diz o defensor. Os serviços públicos tornam-se extremamente importantes não só após a institucionalização, mas também anteriormente para evitar qualquer tipo de violação de direitos das crianças, dos adolescentes e dos responsáveis.
Em um trecho da decisão, a juíza Brigitte Remor de Souza May vetou a exposição da Suzi nas redes sociais. Gabriel Amado, psicólogo que atua junto ao movimento da população de rua e acompanha o caso, reclama do que considera violação ao direito de expressão da mãe.
“No início desse processo, também foi pedido sigilo, mas foi devido à nossa atitude de compartilhar e jogar isso nas redes sociais que deu um resultado positivo para a família. Foi um movimento de proteção da criança e da mãe publicizar. Nesse caso, o sigilo sempre foi para proteger a justiça, não a criança, não a família e a mãe. É para proteger as arbitrariedades que eles mesmos cometem”, fala.
O psicólogo que atua movimento sociais abraçou a causa da Andrielli. Ele esteve com ela durante o parto e presenciou várias violências desde a cesária até a retirada da criança. Inclusive, foi convidado para ser padrinho da Suzi por conta dessa relação de parceria que criaram. Para ele, a justiça está tirando o direito da jovem comemorar a maternidade, principalmente na semana do Dia das Mães.
“Não podemos celebrar nas redes essa conquista. As redes são um dos principais meios de comunicação na sociedade, a maneira dela se comunicar com familiares, mostrar para as amigas, é fundamental para o fortalecimento e para a autoestima dessa mãe. E não pode? Até quando?”, questiona.
Andrielli se diz entristecida por não poder expor os seus momentos de felicidade com a filha nos seus perfis pessoais. “Vai chegar o Dia das Mães, eu vou ver todo mundo publicando fotos com os filhos e não vou poder. Isso é bastante errado”.
Leia mais
- A palavra da vítima é prova nos casos de assédio sexual
- Histórias de assédio como um lugar comum para as mulheres de carreira jurídica e acadêmica
- Fernanda Torres: a família é uma questão política
- Filmes para debater o aborto que você pode assistir em streamings
- Curitiba recebe 9ª Marcha do Orgulho Crespo em celebração à identidade negra
Sobre o tema, o defensor diz não haver previsão expressa do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), embora considera ser discutível a necessidade de medidas nesse sentido tendo em vista o microssistema de proteção da criança e do adolescente.
Casa de referência e defensoria foram importantes para desacolhimento
Até o começo desse ano, a situação não estava muito favorável para o desejo de Andrielli de criar a filha. A jovem relata que foram proibidas as visitas regulares, ela inclusive deixou de receber as fotos da bebê que eram enviadas pelo abrigo. “O PAEFI tentou fazer uma visita e não encontrou a Andrielli em casa. Depois disso, eles tentaram dizer que não havia mais volta. Eles estavam se preparando para a destituição familiar”, conta Amado.
A atuação da defensoria e a troca de gestão do abrigo foram essenciais para mudar esse cenário, segundo o psicólogo. “A nova coordenadora foi quem trouxe um novo olhar, porque a postura da anterior era de que a Andrielli poderia fazer qualquer coisa que eles não iriam devolver a criança para ela. Quando a nova coordenadora entrou, ficou apavorada com o caso, disse que era puro preconceito”, relata Amado. A equipe técnica da casa de acolhimento se posicionou a favor do desacolhimento na audiência da última terça-feira.
Já as condições de Andrielli se mantiveram as mesmas da época do parto. Ela recebe Bolsa Família e Auxílio Gás, que tiveram pequenos reajustes, e trabalha como diarista. Mas como explica o defensor público Pedro Luporini Ferreira, em processos como esse, alguns fatores se mostram muito importantes para a improcedência do pedido de destituição ou perda do poder familiar, como a adesão aos encaminhamentos feitos pela rede de proteção. Andrielli sempre foi constante nas visitas à filha e buscou serviços voltados ao fortalecimento dos vínculos familiares, além dos seus direitos.
“Sempre mantivemos o acompanhamento de saúde mental dela, porque é uma violência extrema o que aconteceu. Foram muitas situações durante esses dois anos, de pensamentos suicidas, oriundas dessa violência de Estado, mas nós sempre nos mantivemos organizados”, diz Amado. Não bastasse a retirada forçada da criança após o parto, ela também foi alvo de uma laqueadura sem o seu consentimento (cirurgia para esterilização definitiva, na qual as trompas são amarradas ou cortadas).
Em processos de destituição familiar, a suspensão liminar do poder familiar e da proibição de visitas, previstas no ECA, devem ocorrer somente em casos excepcionais, mas a prática demonstra que a exceção parece ter virado a regra, de acordo com Luporini.
“Esse tipo de postura de proibição de contato de forma desmedida acaba gerando uma profecia autorrealizável. Há a proibição de visitas, com isso os laços familiares se esgarçam, todos os envolvidos passam por um processo de sofrimento, e em razão desse distanciamento criado por meses de afastamento, percebe-se que não há mais condições de reinserção”, afirma o jurista.
Em entrevista ao Catarinas, o defensor fala sobre como os processos de destituição familiar podem ser permeados de diversas opressões, sejam elas de classe, raça, gênero, orientação sexual, saúde mental, entre outras. Muitos casos tratam sobre pessoas com diversos fatores de vulnerabilidade, e o ECA veda expressamente a perda ou a suspensão do poder familiar em decorrência da falta ou carência de recursos materiais (Art.23).
“A minha crítica é de que isso é utilizado como argumento de forma disfarçada em muitos casos. Quando se aponta a impossibilidade de a criança retornar para a residência da família em razão de, por exemplo, ‘não ter comida na geladeira’, não ter uma moradia com condições adequadas, ausência de emprego formal dos genitores, entre outros argumentos, ao fim e ao cabo estamos falando de uma questão de pobreza e classe, o que nada mais é do que decorrência de uma ‘falta ou carência de recursos’”, diz o defensor.
O Ministério Público manifestou-se desfavoravelmente ao desacolhimento, indicando ser prudente que se aguardasse um pouco mais os trabalhos do PAEFI, da mesma forma o serviço de atendimento especializado a família e indivíduos demonstrou desacordo. Ainda assim, a observação positiva da casa de acolhimento em relação ao vínculo entre mãe e filha foram cruciais para esse desfecho.
A pequena Suzi apresenta um diagnóstico de Atraso Global do Desenvolvimento, que ainda está em investigação. Ela está aprendendo a falar e começando a ficar em pé. Por essa condição, visita a APAE Florianópolis duas vezes por semana, e a partir da próxima segunda-feira será levada por Andrielli à creche. Com isso, a mãe espera encontrar um trabalho fixo. Acostumando-se com a nova rotina, Andrielli diz que uma das coisas que mais gosta de fazer com a filha é assistir a filmes. “Ela gosta de ver desenho, se desligar a TV fica chateada. E eu adoro assistir com ela”, conta.
Embora na certidão de nascimento a menina esteja registrada como Susi, nós optamos pela grafia defendida pela mãe, que também desejava um segundo nome para a menina (Suzi Rebeca), mas não teve a sua vontade atendida.