Amores não matam: jovens são as principais vítimas de feminicídio no Brasil
No Dia dos Namorados, Lesfem e Néias alertam para relações que matam.
O Brasil celebra no dia 12 de junho o Dia dos Namorados, data marcada por flores, jantares e declarações de amor. Relacionamentos que, muitas vezes, também envolvem controle, ciúmes, dominação emocional – formas distorcidas de demonstrar afeto normalizadas ao longo dos séculos. Não raro, relações que terminam em tragédia.
Não se trata de achismo, mas de dados: a maior parte dos feminicídios registrados no Brasil acontece dentro de relações amorosas. São 72% dos casos, classificados como feminicídios íntimos, cometidos por companheiros ou ex-companheiros.
Por isso, o Laboratório de Estudos de Feminicídios (Lesfem) e Néias – Observatório de Feminicídios de Londrina lançam uma campanha comum para discutir essa realidade, com um alerta para mulheres jovens.
Dados de 2023 e 2024 do Monitor de Feminicídios no Brasil (MFB), mostram que 52,46% das vítimas de feminicídio no período tinham até 34 anos de idade, sendo a maior incidência entre jovens de 25 a 34 anos. É assombroso ver nossa juventude sendo ceifada pela violência de gênero em sua face mais cruel.
Os dados do MFB relativos aos autores somam ao nosso desespero, quando mostram que 46,8% deles tinham até 34 anos de idade, sendo a maior parte entre 25 e 34. Jovens homens manifestando construções de masculinidades distorcidas e cruéis.
Entre as vítimas, no ano de 2024 a incidência chegou à taxa de 5,2 por cem mil mulheres no grupo etário de 25 a 34 anos. Entre os agressores, o mesmo grupo também foi o de maior incidência, com a taxa de 4,4 por cem mil homens.
Esses números contribuem para que problematizemos a ideia de que poderíamos estar avançando para uma sociedade mais igualitária entre homens e mulheres.
Fenômenos como a urbanização, a democratização e o aumento de escolaridade da população tenderiam a gerar sociedades mais igualitárias. Essa é uma das promessas fundamentais da modernização.
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Quando falamos de relacionamentos amorosos, porém, essa igualdade não chega. Às mulheres seguem sendo negado o direito de pôr fim a relacionamentos, de tomar as rédeas da própria vida, de seguir adiante.
Alerta entre adolescentes
Recentemente, a série “Adolescência”, na qual um jovem de 13 anos assassinou uma garota pouco mais velha, trouxe à tona problemáticas como a construção de uma masculinidade deturpada em espaços virtuais e suas manifestações no mundo real, como a misoginia e o feminicídio.
Dados do MFB mostram que menores de 17 anos foram vítimas em 6,95% dos casos ocorridos em 2023 e 2024. Entre os autores, adolescentes foram 2,43%. Não são índices desprezíveis.
Em outubro de 2024, na mesa de encerramento do II Simpósio de Feminicídios da Universidade Estadual de Londrina (UEL), a desembargadora do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), Priscilla de Placha Sá, que atua junto a adolescentes em conflito com lei, alertou para o aumento na incidência de crimes de violência doméstica cometidos por adolescentes, inclusive feminicídios.
“Eles dizem ‘Doutora, mas ela era minha mulher’”, relatou a desembargadora, em um exemplo anônimo, assombrada com a perpetuação da lógica da mulher como posse entre a juventude, baseada no modelo cultural do “amor romântico”, que idealiza a entrega total, a fusão entre os sujeitos e a subordinação da mulher à relação – escalando aos feminicídios.
Não se trata de um amor que liberta, mas de um amor que vigia, que interdita e, muitas vezes, que mata.
Por uma outra ideia de “amor”
Em Tudo Sobre o Amor, bell hooks afirma que o amor não é apenas um sentimento, tampouco um substantivo passivo — ele é ação, escolha e prática consciente. Quando ela diz que “o amor não é verbo; é ação”, está criticando a visão romântica e idealizada do amor como algo espontâneo e incontrolável. Para hooks, amar é assumir responsabilidade ética pelo bem-estar do outro, é agir com cuidado, respeito, compromisso, conhecimento e confiança. O amor verdadeiro se constrói com gestos concretos e intencionais — e não se sustenta apenas no desejo ou na emoção. Essa visão é representativa da posição feminista frente ao amor.
Essa formulação nos convida a romper com a ideia de que “amar é sofrer” ou que “o amor tudo justifica”, defendendo, em vez disso, uma ética relacional baseada em liberdade e respeito mútuo.
Falar sobre isso no Dia dos Namorados não é negar o amor — é reivindicar formas de amar que não machucam nem matam. É também responsabilizar o Estado, a escola, os meios de comunicação e a sociedade como um todo por educar para o afeto com dignidade, autonomia e respeito.
Segundo o MFB/Lesfem, entre 2023 e 2024, foram registrados mais de 8 mil casos de feminicídio consumado ou tentado no país. A maioria desses casos ocorreu no contexto de relações afetivas. Aproximadamente metade deles, 4.263, foi de feminicídio consumado, isto é, a mulher foi morta.
Que neste 12 de junho a mensagem seja clara: se não é livre, se não é seguro, se não é respeitoso — não é amor.